Galáxia em espiral
Estrutura & Ocupação Filosóficos

A impossibilidade simbólica da universalidade

I. Introdução: O Universo, o universal, a universalidade

O Universo é o “conjunto de todas as realidades criadas[1] ou o “conjunto de quanto existe”, ou “o mundo” ou ainda “o todo; inteiro[2]. Tais definições passam a assumir, necessariamente, uma dimensão cosmológica, astronômica e delineada por dimensões espaciotemporais do Universo como conjunto de tudo o que há, do que conhecemos ou podemos conceber existir. Assim, em algum momento da História da Humanidade, surgiu uma pergunta considerada necessária para o saber, ainda não respondida de todo, que é perceber a origem deste “tudo o que há”, o que está a formar este inteiro, este Cosmos, a despeito  da impossibilidade simbólica da universalidade.

Logo apareceram as teorias mitológicas; depois vieram as considerações filosóficas pré-socráticas, acerca dos elementos, um a um, e depois em conjunto; depois veio Platão com o seu Demiurgo e as ideias suprassensíveis; Aristóteles com o motor imóvel e sua hipótese de “incriação”, da eternidade do todo e sempre; mas tudo se desenvolveu ainda mais e depois veio o Uno de Plotino; e, em seguida, a Teoria da Criação Divina, em que Deus criou o Universo, ou os deuses, ou a dualidade, ou alguma outra origem metafísica ou sagrada. Buscou-se sempre, e ainda hoje, uma explicação sobre a origem, pois é muito mais fácil perceber sobre a “origem” do que sobre o “destino”, se é que existem tais conceitos causais ou instanciais válidos em relação à existência deste “todo”.

Eminentemente, a mente humana busca sempre por respostas ou por perguntas, nunca ambas simultaneamente, pois o saber é desafiador, e a cada pergunta respondida, novas questões são realizadas e, assim, as perguntas acabam sempre por serem mais valorizadas enquanto ainda não respondidas. Por não se conseguir responder sobre o futuro, sobre algo que ainda não aconteceu, pergunta-se mais abertamente pelo passado. Mas, ainda assim, o futuro não é desprezado, pelo contrário, mas sim projetado pelas capacidades indutivas da mente humana, que busca sempre preencher um vazio dado pela indeterminação e que só é possível ser completado por incertezas imaginadas, pela própria pressuposição de que haverá mesmo futuro, para começar. Por isso, o Universo passa a assumir uma certeza de sequência, do tempo considerado como linear que sempre existiu assim e ainda existirá, mesmo depois de Bergson o desconstruir e o reconstruir como duração, como também do espaço que ainda poderá ser ocupado, pois também existirá, tal como o futuro. Tais questões, antes mitológicas, depois filosóficas e religiosas, atualmente são científicas, pois foram absorvidas pelas ciências[3], que têm se debatido para chegar a alguma resposta consistente em que possa assegurar a explicação da “origem” e “destino” do Universo.

E nelas, nas ciências, desde que a famosa Lei de Hubble foi proposta, defende-se que o Universo ainda está em expansão e que por este conceito teorizado e desenvolvido, pode-se considerar também que, em algum momento do passado, esteve em completa retração, em máxima concentração e densidade que foi denominado de ponto de singularidade. A Teoria do Big Bang, uma das mais aceitas e defendidas atualmente, se baseia nesta singularidade original do Universo. Mas, de onde veio este ponto singular supermassivo? Assim, percebemos que já há uma nova pergunta, e que não será a última.

Alguns cientistas argumentam que havia possibilidades de um outro Universo existir, antes desta singularidade, outros argumentam que pode esta ter surgido do nada, e ser o universo um efeito sem uma causa. Ainda há quem diga[4] que o Big Bang existiu mesmo, mas foi criado por Deus, ou pelo impacto entre outros universos, em outras dimensões.

Mas, o que poderíamos considerar como Universo, enquanto conjunto de tudo o que há? Há “dois” destes Universos, ao menos, o primeiro é o que é conhecido, e que aumenta constantemente, por sabermos mais e mais, progressivamente; e o segundo, o que é desconhecido, que nutre o conjunto do que é conhecido, mas que não temos a dimensão exata do que está contido neste conjunto com elementos desconhecidos. O Universo que se conhece, e apenas este que se conhece, pode então ser conceituado assertivamente.

Mas, e sobre o que não se conhece? Uma definição aceitável para o Universo, como conjunto, é a concentração nele de todos os espaços e todos os tempos, para além da matéria ou energia que existe inserido neste conjunto. Há a matéria, há a antimatéria, há a energia e a matéria escura, que é a maior parte do Universo conhecido, há tanta coisa, mas há também coisas que nunca param de serem descobertas, com o avanço das investigações científicas. O facto é que temos, na realidade, uma vaga noção do que existe no Universo. E a isso chamamos de todo. O Universo é somente aquilo que conhecemos e que supomos existir, e nada mais para além disso.

Não sabemos se houve um tempo zero, inicial, ou se nunca houve isso. Mas, admitamos que sim, que o Universo tenha surgido como a Teoria do Big Bang descreve, que há mais de 13 bilhões de anos uma singularidade “expandiu-se” e deu origem ao tempo e ao espaço, e continua a se expandir, mais lentamente e que, no futuro, poderá voltar a se contrair, para uma nova singularidade[5].

Não há certezas sobre o Universo, e provavelmente nunca as teremos enquanto vivos. Mas, e sobre os adjetivos e as qualidades que derivam desta instabilidade e incerteza? Eis o ponto: são subvertidas e passam a serem atribuídas como as qualidades mais estáveis e certeiras.

É sobre isso que a maior parte da Filosofia tem se empenhado em provar, em fundamentar o conhecimento particular em questões universais[6]: estáveis e certeiras, enquanto nosso Universo nem é estável nem certeiro, ao menos ainda. Mas, afinal, como uma qualidade dita universal pode ser tida como estável se o Universo é ele próprio instável? Como podemos estabelecer uma ordem consistente dentro do caos?

Pode-se, afinal, se conceituar o universal, ou até mesmo as condições para uma universalidade. Pode-se tudo, conceitualmente, mas não sem prejuízo aos resultados que advirão de tão frágeis conceitos. Se há algum conhecimento e delimitação do “Universo” possível, ele é restrito ao tempo conhecido, que se limitará sempre ao devir realizado na componente do tempo, e à componente do espaço, e será esta resultante o máximo que as observações humanas podem alcançar, e que são ínfimas, frente às dimensões incomensuráveis de condições e particularidades que existem, que nem mesmo as teorias científicas conseguem calcular e prever todas. O passado faz parte, pois é capaz de ser lembrado ou deduzido. O futuro, lamentavelmente, ainda não é uma possibilidade epistemológica, mas apenas considerações da esperança humana ou das suas inferências racionais, mas sem as certezas asseguradas.

E, sobre os adjetivos, sobre o significado do que é considerado como universal, é o que “abrange tudo, que é geral”, “que se aplica a tudo” ou “que provém de tudo ou de todos”, ou ainda “que é o mesmo em todas as partes”, “de todo o mundo, mundial[7]. E logo chegamos ao mundial, a uma determinada dimensão limitada, reduzida ao que se é conhecido ou conhecível. Entre o Universo e o universal, já há uma drástica redução conceitual e de abrangência. O universal, portanto, somente se aplica àquilo que se concebe que seja conhecido, ou que se possa conhecer, dedutivamente. O universal incorpora, em si, a fé na existência do futuro.

Mas e sobre a universalidade? A universalidade é “o caráter do que é universal ou geral, como totalidade ou universidade” e também “caráter daquilo que abrange todos os conhecimentos” e, por último, em Lógica, é um “caráter de uma proposição universal[8]. Assim, entre o universal e a universalidade, há uma nova redução conceitual, quando a universalidade é ainda mais restrita e se refere sobre apenas o que é conhecido e provável de ser comum a tudo, ao menos sobre o que já se conhece.

Se algo é conhecido, poderá integrar, ou não, uma dada conceção de universalidade. Mas o conhecimento das coisas passa a ser requisito para se atribuir uma universalidade à determinadas qualidades comuns. Portanto, a universalidade é uma construção epistemológica e um conceito que é estruturado ontologicamente. Se o universal atua no sentido epistemológico lato, a universalidade atua no sentido ontológico stricto.[9]

 

II. Favoráveis, Desfavoráveis, Indiferentes: A impossibilidade simbólica da universalidade

Na Filosofia, em especial na Ética, a questão acerca do universal foi mais contundente a partir de Immanuel Kant e de seus seguidores, dentre eles Jürgen Habermas.

Kant foi o grande incentivador moderno do universal, e isto fica claro quanto percebemos as relações dos imperativos categóricos, em que pressupõe que toda a ação deve ser dotada de uma racionalização suficiente para que dela resulte algo que deva ser universalmente tido como o melhor que se conhece, que se pode ser feito. Assim, ao fazer algo, o sujeito deveria, segundo Kant, considerar tudo o que é “conhecido”[10] por ele e discernir sobre todas as questões e consequências que advirão de suas ações, para que isto seja incorporado ao universal. É, antes de tudo, um exercício das relações causais.

Não é o agir, portanto, um mero ato conservador, mas sim um ato criador[11] do próprio universal, de melhoria, de rumo a um ótimo coletivo. É o agir uma alteração do universal que se busca empreender, pelo dever outorgado pelos imperativos. É verdade que Kant pode ser lido por diversas formas, e isto é também um sintoma característico por se buscar o universal, e por isso sua Filosofia perde uma única perspetiva[12], ou melhor, permite que todas as perspetivas possam ser acondicionadas quase que indistintamente se tiver alguns elementos centrais em comum, pelas diferentes leituras, mesmo as contraditórias ou conflitantes, a invalidar o próprio universal originalmente pretendido. É mesmo paradoxal.

Habermas, como bom kantiano, mas também menos crente e mais cético, percebeu os problemas que existem nos argumentos com base na razão, estritamente, e passou a buscar uma solução definitiva, ou melhor, universal, no Direito. Foi uma espécie de materialização forçada da moral, que passa à ética, que passa à deontologia, que passa às leis. Por isso, escreveu que «um terceiro problema, resultante do caráter universalista da moral da razão, é dado pela imputabilidade de obrigações, especialmente com relação aos deveres positivos, os quais exigem frequentemente, especialmente nas sociedades complexas, esforços cooperativos ou realizações organizacionais»[13] e isso é um decreto de falência, muito sutil e disfarçado, dos imperativos como suficientes.

Por isso, Habermas buscou também que houvesse essa ação universal, mas com base no Direito como intermediário do diálogo, e também finalidade última, a partir de seu princípio do discurso, em que presume que exista uma racionalidade emergida da comunicação de todos os que compõem a sociedade e, assim, esta composição racional e universal atinge um patamar de acordos morais e proporciona um status estabelecido de ideal universal de convivência, sempre com base na moral individual que passa a ser compartilhada entre todos os que habitam a sociedade, que é o Universo considerado.

Por isso que ele se pauta no Estado de Direito como resultante desta interação “racional”, em que as formas legais, juridicamente estabelecidas, tanto servem para apontar as ações mais desejadas, visto que foram fruto das inspirações “universais”, quanto para coibir o que não seja desejado e até mesmo a penalizar os infratores deste acordo coletivo, através das formas de aplicação da justiça. O Direito é, para Habermas, a materialização deste universal instituído pela racionalidade coletiva, a partir da moral individual. Por isso, o Direito assume uma função diferenciada em Habermas, pois ele passa a ser a formalização dos imperativos – tanto os categóricos que passam a ser mediados, quanto dos hipotéticos que passam a serem orientados. As leis passam a ser uma forma de relação causal para as ações humanas, pois as leis são consideradas universais e, como Kant sonhou, assim também devem ser as ações humanas: universais. Um mundo perfeito que nunca chegamos a conhecer, afinal.

E até poderia ser mesmo perfeito, mas apenas a uma esfera muito reduzida, e por tempo limitado. Ou seja, espaço e tempos limitados, restritos. Pois as transformações[14] sempre trazem novas condições, novas questões, demandas e logo levam a conflitos, pois nada é estável, imutável e previsível para o irracional humano que ainda coabita o mundo racional. Não fosse por isso, seria perfeito por todo o sempre. Mas os kantianos e os habermasianos argumentarão que o processo é cíclico, e é sustentado pelos imperativos do dever e pelo Direito estabelecido. Assim, subvertem o caos e estabelecem um ciclo, talvez uma sutil dialética para perceber que a instabilidade é o único e legítimo universal, e poderá ser equiparada às problemáticas semânticas oriundas da declaração cíclica e irresolúvel de Sócrates, que afirmava saber que nada sabia. Duas oposições, epistemológicas e ontológicas, afinal, a conflitarem entre si. Eis aí os conflitos[15], sempre existentes e sem que dediquem a eles nenhum universal.

Os esforços existem na busca da tal universalidade, mas que nunca se atinge por completo, pois o Direito não é a resposta final, nem nunca foi, nem nunca será, pois o universal não é o todo, mas sim uma parte, uma delimitação espaciotemporal com início e fim que entre estas duas posições pode haver uma universalidade, finita, limitada e breve. E, talvez, em algumas situações, poderá ser mesmo o Direito a resposta, mas não uma resposta universal, todavia, pois ele incorpora apenas um potencial de universalidade. O Direito se frustra.

Por exemplo, as questões mais atuais, ainda, como o aborto e a eutanásia, ainda estão fora de um universal, mas possuem potencial de universalidade. O universal são as possibilidades; a universalidade, as probabilidades.[16] A cada momento podemos dizer que evoluem as universalidades, mas nunca ao ponto de uma posição universal, pois existe a diferença, a contrariedade e até mesmo novas questões que são colocadas. Tudo é instabilidade. E a questão evitada pelos kantianos é: Como é possível fazer uma Filosofia do universal se tal universalidade é meramente uma parte, uma fatia espaciotemporal de uma pequena parte do todo?

Se Habermas foi heroicamente favorável à Universalidade kantiana, embora a subvertê-la, ao ponto de tentar um reparo na liberdade defendida por Kant, na autonomia humana, e foi buscar no Direito a resposta que não se mostrou consistente, que é desprover o humano de imensa autonomia e, no ótimo de sua proposta, torná-la mesmo obsoleta. Outros filósofos contestaram a universalidade desde logo. Um deles foi o filósofo italiano Norberto Bobbio, já em sua crítica a Kant ao dizer que «definindo o direito natural como o direito que todo homem tem de obedecer apenas à lei de que ele mesmo é legislador, Kant dava uma definição da liberdade como autonomia, como poder de legislar para si mesmo»[17]. O Direito, assim, não deveria ser a resposta primeira, nem para Bobbio, nem para ninguém.

Mas, pelas teorias sustentadas por Habermas, algo como a Declaração Universal dos Direitos Humanos não é apenas possível de existir de forma totalmente funcional, como também é desejável[18] que assim seja, pois pautaria as ações tanto políticas, quanto individuais.

Bobbio já argumenta uma impossibilidade do universal, em especial no que se refere aos Direitos Humanos, ao colocar questões que, quando respondidas, expõem as dificuldades[19] percebidas por ele para logo chegar à conclusão da impossibilidade de uma universalidade pretendida pelo senso compartilhado dos defensores do universal. A cada uma destas respostas, a universalidade se dissolve como açúcar em água insaturada. Bobbio é favorável aos Direitos Humanos, mas apenas diverge de Habermas na forma como pode ser atingido, quando busca superar a impossibilidade do universal pela troca por um sentido de intersubjetividade.

Bobbio rapidamente identifica a dialética[20] disfarçada ao acusar que «a Declaração Universal contém em germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas também ela concreta, dos direitos positivos universais. Quando digo “contém em germe”, quero chamar a atenção para o fato de que a Declaração Universal é apenas o início de um longo processo, cuja realização final ainda não somos capazes de ver»[21].

Há que se perceber a poderosa argumentação sobre a contraposição entre o que é considerado universal e a História, em Bobbio, pois o atribuído universal está limitado não apenas espacialmente, mas também temporalmente, como argumentado na seção de introdução, em que Bobbio extrapola ao afirmar que o conceito de homem, na Declaração, é eminentemente histórico[22] e, assim, nada universal, a partir do momento da assunção dos determinantes, quando se alteram os espaços e os tempos.

Eis que, até o momento, tanto Habermas quanto Bobbio apostam nos Direitos Humanos, o primeiro pela universalidade atingida pelo Direito, o segundo pela intersubjetividade possível de ser construída, em perspetiva de relações humanas e geopolíticas. E neste ponto surge Slavoj Žižek com sua investigação às causas primárias que fazem tudo ser o que é, uma espécie de genealogia realizada não no passado, mas no presente, nas transformações oriundas dos tempos que consolidam uma base conhecida de causalidade com consequências diretas nas questões políticas relevantes.

Em Žižek tudo sempre terá uma avaliação com base na ideologia, e assim podemos considerar que ele poderia ser o responsável pelo surgimento de uma hermenêutica ideológica que sempre suporá apresentar como resposta as verdadeiras razões por trás dos feitos.

Seu primeiro ataque será ao próprio conceito de liberdade, que era, para Kant, a máxima posição que a racionalidade humana poderia atingir, com o governar-se a si mesma, a atingir uma máxima autonomia racional. E isto não foi uma novidade introduzida por Kant, pois vem originalmente dos filósofos gregos da antiguidade clássica, em que Michel Foucault, em seus últimos trabalhos, resgatou de forma sublime quando conceituou o “cuidar de si”[23] e percebeu que o poder verdadeiro é aquele que emerge do autocontrole.

A liberdade, assim, assume uma versão diferenciada na modernidade, em que o poder da escolha passa a ser considerado individual até que ocorra a decisão, mas logo deixa de ser considerada uma escolha e passa a ser uma manifestação fundamentalista. Žižek desenvolve um raciocínio, por exemplo, nas manifestações religiosas dos muçulmanos, na França, em que o governo proibiu as vestimentas muçulmanas em escolas, no passado. Assim, se alguma menina, com base em suas crenças, escolher pelo véu, a lei que foi produzida para lhe “garantir” a liberdade não permitiria a sua escolha feita, pois depois de escolher algo assim, ela será tida como fundamentalista, ao supostamente abnegar de sua “liberdade” de expor o corpo. São tais incoerências[24] que percebemos no universal.

Portanto, para a ideologia neoliberal, que tem pautado as questões “universais” contemporâneas, percebemos que as invocações ditas desejáveis são as que se opõem ao que seja considerado como fundamentalista, a partir de uma naturalização ou substancialização dos traços historicamente resgatados como contingentes e condicionadores da ação humana e política.

A segunda questão será sobre o direito de escolha. Pois, se escolhe para consumir e é preciso que a escolha seja uma atribuição elevada ao homem, que precisa ser livre para consumir o que deseja, desde que consuma. Obviamente que para se consumir, precisa trabalhar e produzir para adquirir recursos, capital, e assim, precisa ter liberdade para produzir o que deseja ou trabalhar com o que se quer. Isto é o culto ao livre-mercado em que o sistema político passou a ser um instrumento garantidor desta liberdade contemporânea que não leva à autonomia kantiana, em si, mas à dependência consumista e produtora, que Marx acusou como o fetiche da mercadoria. Houve uma subversão do conceito de liberdade. E tudo se dá em nome da busca do prazer, do gozo de tudo o que há. Os excessos vêm daí, e são incentivados, exceto um.

Pois o único excesso que não pode ser permitido é justamente o excesso de poder. Pois o poder precisa vir do único ente capaz de equilibrar tudo, que é o mercado. E este é o terceiro ponto da contemporânea universalidade dos direitos: restringir o que pode restringir o mercado, que é a liberdade neoliberal. E não é mesmo isto a pós-política feita pelos instrumentalizadores eleitos para tal, que tanto podemos perceber também em Habermas e Bobbio?[25]

As questões de intersubjetividade de Bobbio e a universalidade de Habermas, do consenso, passam a serem sustentadas, antes de suas manifestações, pelas ideologias neoliberais realizadas pela pós-política, em que a interpassividade[26] existe em todos, contrariamente à astúcia da razão hegeliana. Afinal, onde há a liberdade atualmente? Eis o ponto de incoerência mais contundente para os defensores da universalidade[27].

 

III. Conclusões: o relativismo versus o perspetivismo

A questão, afinal, passa a ser perceber que as formas e conteúdos precisam ser revistas. O que são as formas? A universalidade, a intersubjetividade, a interpassividade, a astúcia da razão, etc. Busca-se na forma a universalidade, que é impossível de se obter, como suposto ser suficiente pelos argumentos apresentados.

Os conteúdos são, afinal, as questões que possuem valores. Pois, dos conteúdos saem os verdadeiros valores que pautam o que se está a pretender conceituar. Estamos a tratar de valores: direitos, humanos, universais, liberdade, autonomia, vida, propriedade, etc. É sobre isso que devemos nos debruçar, afinal.

Abrir mão de tudo o que existe é um desperdício, todavia, pois é isto que somos, ainda que neoliberais e servis ao mercado livre. Se é para ser assim, que haja ao menos uma lucidez sobre o que se está a fazer e a quem se está a servir. Ou passamos a um relativismo, ou a um perspetivismo, contra o absolutismo universal.

Mas, o relativismo leva ao niilismo, ao vazio e à impotência. Não seria uma opção. A questão mais acertada é o perspetivismo, de manter os conteúdos, valores e formas mas interpretá-los de forma lúcida a perceber o que se está em causa, a extrair pós e contras, e a partir deles perceber as verdadeiras razões dos existentes.

Até mesmo o contrário, o indesejado conceito de universalidade é valioso, pois dele podemos perceber sua utilidade, sua função e formas de estabelecimento e manutenção da ordem social estabelecida, das pretensões e promessas que fazem manter a coesão política, social e econômica como a conhecemos. A resposta, assim, talvez esteja no perspetivismo, consoante a perspetiva adotada, obviamente, no resgate das premissas cínicas dos desapegos e minimalismos conceituais.

Mas não se deveria nunca perceber que adotar um conceito de universalidade, sem perspetiva, seria incorrer no erro da parcialidade da crítica, da desconsideração de todos os fatores que devem ser considerados e, portanto, é continuar às cegas em uma dialética dentro do caos. Portanto, a perspetiva é também uma salvaguarda para a análise mais assertiva filosófica, se assim considerada.

E, finalmente, podemos conceituar o que seja o bem comum. O bem, afinal, tanto como propriedade tanto como adjetivação, será sempre, e necessariamente, algo em perspetiva ao conjunto compreendido como comum. Portanto, o comum, neste caso, se configura como um pleonasmo, pois o comum passa a ser a própria dimensão do universal, na práxis filosófica. O universal e a universalidade assumem-se dentro do comum, ontologicamente e epistemologicamente. Desta forma, as inconsistências se tornam ultrapassáveis e surge uma hermenêutica alternativa que parece bastante promissora com uma escala de valores.

 

IV. Bibliografia: A impossibilidade simbólica da universalidade

Bagdonas, Alexandre, Zanetic, João e Gurgel, Ivã. Quem descobriu a expansão do universo? Disputas de prioridade como forma de ensinar cosmologia com uso da história e filosofia da ciência. Revista Brasileira de Ensino de Física [online]. 2017, v. 39, n. 2

Bergson, Henri. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Tradução de Nathanael G. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

Bobbio, Norberto, A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Apresentação de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

Bobbio, Norberto & Matteucci, Nicola & Pasquino, Gianfranco. Dicionário de Política. Tradução de Carmen C. Varriale etc. Revisão geral de João Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cacais. Brasília/DF. Editora Universidade de Brasília, 1998. 11ª edição.

Foucault, Michel. Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. Coleção Ditos & Escritos, v. 5.

Habermas, Jürgen, Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro, 1997.

Žižek, Slavoj. Against human rights. New Left Review, 2005. 34. 115-131.

 

Notas: A impossibilidade simbólica da universalidade


[1] “universo”, in Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa, acedido em 27-05-2022 no link https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/universo.

[2] “universo”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/universo [consultado em 27-05-2022].

[3] Na Física, por exemplo, há diversas “Físicas” dentro da suposta Física, em que a Física relativista não se aplica às questões atômicas, tampouco a Física Quântica se aplica às questões Cosmológicas. A Física Newtoniana não se aplica a nenhuma das duas e a Física teórica nem sempre pode ser “evidenciada”, embora seja considerada argumentativamente. E assim, nem mesmo há uma ciência dita universal.

[4] Há diversas teorias, para todos os gostos mas, em nenhuma delas, há um modelo completo que não tenha brechas ou inconsistências. Há também os multiversos, há todos os “versos”, todas as formas, mas nenhuma certeza, nenhuma assertividade “universal” sobre o Universo, este mesmo ainda uma incerteza epistemológica e ontológica.

[5] Se supormos que tenhamos um tempo inicial conhecido, teremos um espaço nulo, singular, da dimensão teorética de um ponto euclidiano, unidimensional, em que tudo emergiu tal como conhecemos, para diversas dimensões. Assim, teremos um tempo e um espaço inicial. Podemos chegar ao presente, ao devir, e perceber que o Universo é instável e mutável constantemente a cada unidade de tempo adicionado ou a cada unidade de espaço percorrido. Mas, o que ocorrerá no próximo segundo? Acaba-se por aí qualquer possibilidade de certeza. Apenas pela indução, um ato de fé, poderemos estabelecer que tudo irá se manter estável, da mesma forma. Mas, não há certezas, não há nada além de processos indutivos, inferenciais, e por isso o Universo é apenas Universo no devir realizado, na fluidez dos tempos e dos espaços, mas sem garantias de que ainda haverá algo dele no futuro.

[6] O conceito de ideologia, desde que estabelecido por Destutt de Tracy, a passar por Karl Marx e até os dias atuais, é justamente algo que sempre busca sair de um particular para um universal. Todavia, ainda que tenha em conta que este processo seja mesmo fruto de intrincadas relações ideológicas, não as abordei desta forma, por estar fora do escopo da proposta de investigação. Mas, fica o registo sobre um nível maior de profundidade que esta abordagem pode alcançar.

[7] “universal”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/universal [consultado em 23-05-2022].

[8] “universalidade”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, https://dicionario.priberam.org/universalidade [consultado em 23-05-2022].

[9] O universal e a universalidade se sustentam, mutuamente. É um vício de pensamento comumente compartilhado, por isso que aplicar um ou outro, por vezes, passa a ser indiferente para uma leitura não hermenêutica. Mas a verdadeira questão não deve ficar restrita apenas às conceituações de significações conceituais e por isso será preciso abordar as questões filosóficas mais comuns para percebermos as inconsistências.

[10] O “conhecido” é fruto de uma investigação e conceituação profunda, categoriais, a nível de uma proposta epistemológica. Por isso, o conhecido, aqui, não é algo vulgar, mas sim devidamente conceituado como parte necessária do processo racional.

[11] E assim o agente precisa ter uma pressuposição de que: o que será feito, o que deve ser feito, deve ser levado em conta que se torne uma máxima universal, que poderá ser usada por ele próprio. Pois, para ser racional, para Kant, deve-se partir mesmo do conhecimento fenoménico, e não do numénico, obviamente, inacessível, mas que lá está. Há também para ele, dois Universos, um conhecido, ou cognoscível e outro desconhecido, ou não cognoscível. Por isso, o universal kantiano não é realmente universal, pela limitação do cognoscível dada pela existência no não cognoscível. Assim, a universalidade só poderia haver nos fenómenos, e não nos númenos, a grosso modo. Uma universalidade não universal. Se for possível, conceitualmente, é isto o que ela é. Pois, o que é desconhecido, poderá a vir a ser um fenómeno? Eis o ponto dúbio e indigesto para os kantianos e profundamente frágil, afinal, para a defesa do universal. Há alguma universalidade mesmo dentro de uma mesma vila isolada? Dentro da Filosofia, há algo realmente universal? Não há, mas é algo que se precisa atingir para suprir a instabilidade das coisas e da própria suposta razão.

[12] Um movimento semelhante acontece na Filosofia, em geral, em que a busca pelo universal levou, sempre, à fragmentação da própria Filosofia. Há, atualmente, “filosofias” para tudo, em secções que muitas das vezes são antagónicas ou incoerentes, mas sempre todas em busca de um universal, a tentarem se compor, muitas das vezes como a personagem Frankestein, de Mary Shelley. A cada tentativa de unificação ou aproximação, mais segmentação acontece, e uma “nova” Filosofia surge. É um paradoxo que até pode levar à dedução de que o Universal é mesmo a fractalidade, ou a segmentação contínua, e não uma unificação que emerge da unicidade. Pode ser o efeito do distanciamento e da corrupção de uma pureza inicial, ou não, até porque uma resposta universal deve ser colocada em suspeição, necessariamente.  

[13] Habermas, 1997, p. 152.

[14] «Sabemos hoje que também os direitos ditos humanos são o produto não da natureza, mas da civilização humana; enquanto direitos históricos, eles são mutáveis, ou seja, suscetíveis de transformação e de ampliação. Basta examinar os escritos dos primeiros jusnaturalistas para ver quanto se ampliou a lista dos direitos: Hobbes conhecia apenas um deles, o direito à vida.» Bobbio, 2004, p. 20.

[15] Os conflitos, mesmo em tratados internacionais e amplamente fundamentados nos mais potentes instrumentos jurídicos podem ser simplesmente serem rasgados e levar um político que preside um país a invadir outro, contra tudo o que está estabelecido. E crimes ocorrem em todas as esferas civis e militares, e tudo deixa de ser tão claro na hermenêutica jurídica. Há que se perceber que é exatamente o que está a ocorrer na atual guerra entre Rússia e Ucrânia, mas não apenas isso, mas em todos os níveis, como nas questões que ocorrem na Cidade do Porto, por exemplo, nos diversos ajuizamentos que existem sobre as questões de concessões imobiliárias que a Câmara do Porto concedeu no passado, e que é fruto de questionamentos legais, a abrir um abismo entre o que é legal e o que é escândalos, com a ética a se perder entre estas duas dimensões, sem nada concluir. Não podemos afirmar que exista sequer uma instância comunitária sem conflitos, sem particularidades, por menor que seja.

[16] A homossexualidade ainda não é fruto de um consenso discursivo, mas o Direito estabelece que sim, que há igualdade, mas não é o que ocorre, na prática, pelos crimes e discriminações que existem. Mas é certo que as perspetivas destes temas mudam, a cada dia, em que a sociedade evolui e a probabilidade aumenta, ou seja, há mais potencial de universalidade, mas sem alcançar o universal.

[17] Bobbio, 2004, p. 27.

[18] Se foi assim, algum dia, foi somente durante as comemorações de sua promulgação em 1948, pois, instantes depois da festa, algo se passou, que não percebemos mais do que alguns poucos avanços parciais, diminutos se comparados com os progressos científicos e econômicos obtidos desde então. Há uma correlação que a aplicação de tais Direitos seja uma forma de aferição do nível de progresso. Mas a realidade está a gritar e as desigualdades saltam todas aos olhos de todos, de tão plurais e graúdas que são, enquanto todos ainda continuam com a mesma «imputabilidade de obrigações».

[19] «Parece-me, antes de mais nada, que é preciso distinguir duas ordens de dificuldades: uma de natureza mais propriamente jurídico-política, outra substancial, ou seja, inerente ao conteúdo dos direitos em pauta». Bobbio, 2004, p. 22.

[20] A dialética acusa a instabilidade, a mudança e a racionalidade possível. Mesmo em Hegel, a dialética triádica proposta é atribuída como resultado da razão absoluta, mas não especificamente da razão humana, que fica subjugada ao espírito racional da História, dentre tantas outras dinâmicas, até mesmo capaz de oferecer uma “astúcia da razão” para que os humanos possam crer em suas próprias capacidades, por alguns momentos da vida. Este é o ponto em que Žižek contestará, quando apresenta a interpassividade contemporânea como o contrário desta astúcia da razão hegeliana, como veremos.

[21] Bobbio, 2004, p. 19.

[22] «Ora, a Declaração Universal dos Direitos do Homem que é certamente, com relação ao processo de proteção global dos direitos do homem, um ponto de partida para uma meta progressiva, como dissemos até aqui — representa, ao contrário, com relação ao conteúdo, isto é, com relação aos direitos proclamados, um ponto de parada num processo de modo algum concluído. Os direitos elencados na Declaração não são os únicos e possíveis direitos do homem: são os direitos do homem histórico». Bobbio, 2004, p. 20.

[23] «O cuidado de si constituiu, no mundo greco-romano, o modo pelo qual a liberdade individual – ou a liberdade cívica, até certo ponto – foi pensada como ética». Foucault, 2006, p. 268.

[24] Há uma menção sobre os amishes da América do Norte, que perto de seus dezoito anos passam dois anos em contato com a “civilização” capitalista e consumista, que é o ícone do conceito neoliberal de consumismo, de liberdade de escolha. Depois destes dias anos supostamente “livres”, poderão escolher se continuarão “livres” ou se voltarão à vida comedida nas aldeias, que nem energia elétrica possui. A maioria, quase a totalidade, decide voltar. Seriam estes fundamentalistas? A resposta será sempre positiva, para os ideologizados pelo neoliberalismo aplicado. Eis a questão central do argumento žižekiano.

[25] Por isso, os direitos universais passam a assumir uma pretensão ideológica neoliberal, de proporcionar o status quo dos produtores e consumidores e a liberdade é, assim, pautada em diversos exemplos dados por Žižek, como a invasão do Iraque para garantir a “liberdade” do povo. E sabemos bem o resultado. São inúmeros exemplos que temos em que os antagonismos são colocados com base na instituição do direito que leva à legitimação de atos políticos em prol do livre mercado, e não do homem, em si.

[26] A interpassividade é não fazer o que cabe a si, o que se é esperado, de forma cidadã, por acreditar que o outro o irá fazer e assim o sujeito passa a se considerar desobrigado de suas obrigações estabelecidas. Deixar de ser cidadão para ser um anuente convicto de tudo o que há, e é assim que Žižek sustenta que a esfera pública está a esmorecer, gradualmente, frente à argumentação de que a vida privada esteja ameaçada, em tempos de ultra exposição nas redes sociais e na vigilância digital que cada um passou a ser vítima.

[27] «A atualidade é demonstrada pelo fato de hoje se lutar, em todo o mundo, de uma forma diversa pelos direitos civis, pelos direitos políticos e pelos direitos sociais: factualmente, eles podem não coexistir, mas, em vias de princípio, são três espécies de direitos, que para serem verdadeiramente garantidos devem existir solidários. Luta-se ainda por estes direitos, porque após as grandes transformações sociais não se chegou a uma situação garantida definitivamente, como sonhou o otimismo iluminista. As ameaças podem vir do Estado, como no passado, mas podem vir também da sociedade de massa, com seus conformismos, ou da sociedade industrial, com sua desumanização. E significativo tudo isso, na medida em que a tendência do século atual e do século passado parecia dominada pela luta em prol dos direitos sociais, e agora se assiste a uma inversão de tendências e se retoma a batalha pelos direitos civis.»  Bobbio, 1998, p. 77.

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