A guilhotina de Robespierre
Ética Filosóficos

Inconsistência: A (in)consistência conceitual da ideologia

I. Introdução à inconsistência conceitual da ideologia

O conceito de ideologia sempre foi considerado relevante nas questões éticas, políticas, sociais, culturais, antropológicas e em diversas outras abordagens intelectuais que visam levar ao entendimento das diversas relações da vida moderna. Mas, a ideologia nunca foi um único conceito, mas sim diversos que se alternaram ao longo do tempo, e nem sempre concordantes ou dentro de um desenvolvimento que pudesse ser percebido como uma evolução conceitual. Há a inconsistência conceitual da ideologia a ser evidenciada, desta forma.

Eis que a cada perceção do termo, há que se questionar sobre qual o conceito de ideologia está a ser relacionar. Por tal razão, abordaremos aqui uma linha geral dos conceitos mais significativos do termo, os mais comuns e que impactam no universo intelectual contemporâneo, desde a “fundação” do conceito e de suas mais relevantes modificações.

A importância da ideologia é, ou deveria ser, considerada fulcral para o entendimento real de tudo o que há, do que existe, que está mesmo antes da hermenêutica, por exemplo, e mesmo antes das próprias intenções de compreensão, como poderemos perceber nas diferentes conceituações que, em comum, buscavam não as causas primeiras, metafísicas, mas sim a compreensão do mundo tal como ele “não” é, e sim o que é por trás das aparências, quando existe uma subversão da ordem estabelecida, das questões que podem ocultar a realidade.

O historiador norte-americano Emmet Kennedy, considerado um dos maiores pesquisadores do conceito da ideologia, questiona já na introdução de seu famoso artigo sobre «como poderia o conceito da ciência das ideias, cujas contribuições foram tão amplamente estudadas para a Psicologia, a Fisiologia, Antropologia, Medicina e Ciência Política, puderam tão rapidamente adquirir um sentido pejorativo?»[1] e é sobre isto que também poderemos perceber esta disformidade conceitual que impõe uma ideologia até mesmo ao próprio conceito da ideologia, dado que faz parecer que há mesmo, em tudo, sempre alguma ideologia envolvida.

 

II. A ideologia “original” de Tracy

O termo ideologia, um neologismo criado pelo filósofo francês Antoine-Louis-Claude Destutt, o conde de Tracy, conhecido por Destutt de Tracy, entre os anos 1796 e 1798, depois de anunciada em 20 de junho de 1796, foi feito propositalmente para distanciar-se das relações causais da metafísica, por ser esta sempre desacreditada e carente de evidências, e também distanciar-se da Psicologia que, à época, era bem diferente do conceito atual e implicaria em um conhecimento que ninguém poderia reivindicar para si, dado o aspeto intimista das experimentações ditas psicológicas. A ideologia foi uma tentativa realmente iluminista, de caráter positivista, para fazer face à compreensão dos movimentos populares e políticos e com claros interesses em sustentar a revolução ocorrida em França, em um período de imenso turbilhão social e político.

Mas, a intenção de Tracy com a ideologia não era meramente política, nunca foi apenas assim, mas sim científica que poderia ser, inclusive, tal como foi, aplicada à política. Ele não quis, todavia, que a ideologia se pautasse apenas em uma busca psicológica, em especial com os conceitos de psicologia vigentes e empiristas de John Locke e Étienne Bonnot de Condillac, ambos com teorias limitadas e nada suficientes para o que Tracy desejava, ou precisava.

A ideologia mostrou-se como uma aposta importante para a compreensão das relações humanas e fez com que Tracy, um nobre que apostou na Revolução, e que inclusive lutou em suas forças bélicas, tivesse tanto destaque com suas ideias ao ponto de ter sido sentenciado à prisão[2] por Robespierre, resoluto aos “famosos” e “influentes” no período de terror que logo se seguiu. Tracy escapou por pouco da guilhotina. Assim que Robespierre provou de seu próprio remédio, Tracy foi solto e retomou à divulgação de seus estudos, e assumiu com destaque importantes cargos científicos até a chegada de Napoleão ao poder, quando sofreu novo revés e resistência política.

Não era Tracy o motivo da resistência, mas sim o poder do conceito da ideologia que sempre se mostrou um instrumento revelador das verdades por trás das aparências, de algo que está em seu ADN conceitual e que faz com que a ordem artificialmente estabelecida possa vir a ruir e, por isso, faça com que seus representantes resistam às aproximações analíticas sob uma hermenêutica ideológica. Não há como negar tal característica reacionária ao conceito da ideologia, neste primeiro momento, e que, por isso, sempre foi muito negativada por outra “ideologia” contrária.

O neologismo foi considerado, por Kennedy, muito sensato, justamente por não considerar suposições prévias duvidosas ou incertas e fazer com que o significado do que se está a propor seja claro para todos, ao buscar apenas as ideias centrais do pensamento e explorar suas conexões como uma verdadeira “ciência das ideias”. Mas, por trás de todo homem, há a sua própria ideologia, para além da ideologia que julga possuir. Afinal, uma das características da ideologia é que nunca se percebe que se está sob a influência de uma, e apenas se consegue perceber a ideologia que está para além de si mesmo, nos outros. Preso, Tracy conseguiu perceber melhor.

Assim, Tracy foi gradativamente migrando seus estudos para uma aplicação política das possibilidades da ideologia, ao se cercar de seguidores e estudiosos afins, que lhe colocaram no centro de um movimento em que se afirmava como um “ideólogo”, termo que logo passou a ser pejorativo, pelas ações reacionárias de Napoleão Bonaparte, após o seu golpe de Estado de 18 de brumário. Percebemos assim que sempre, para os governantes, o estudo da ideologia é, no mínimo, “desconfortável” ao prometer “enxergar” a verdadeira realidade, ao “desnudar” o Rei.

E por isso a ideologia passou a ser também uma forma de política social, sustentada tanto por intelectuais nobres como burgueses, que tinham influências no poder estabelecido e que desejavam transformar a França pós-revolução gradativamente, com claros interesses ou propensões republicanas, que causou o temor de Napoleão, obviamente, pois estes estavam infiltrados em muitas das hierarquias. Habilmente, Napoleão se posicionou a desvalorizar e a tornar pejorativo os conceitos de ideologias e levá-los ao ridículo, com declarações que passaram a fazer com que fossem reconhecidos como tolos, subversivos, ateus e antipatrióticos. E parece ter funcionado muito bem, a sufocar-lhes os campos de atuação e a serem obscurecidos com acusações de serem eles próprios metafísicos, justamente o que estavam a tentar combater.

Napoleão, em discurso aos prussianos, em 1808, alertou sobre os ideólogos: «Tenho alguns em Paris. Eles são sonhadores e sonhadores perigosos; são todos materialistas disfarçados, mas não muito disfarçados. Senhores, os filósofos se atormentam para criar sistemas; eles procurarão em vão um melhor do que o cristianismo que, reconciliando-se consigo mesmo, é o que nos assegura tanto a ordem pública quanto a paz dos Estados. Estes ideólogos destroem todas as ilusões, e a era das ilusões é para os indivíduos o que é a era da felicidade para os povos.»[3] e por tais ações constantes e ultrajantes, foram gradativamente segregados politicamente.

Neste momento, já com Napoleão ao acusá-los de ateus e contrários à moral cristã, podemos perceber o mesmo gancho sobre a ideologia cristã que o filósofo prussiano[4] Karl Marx irá desenvolver, algumas poucas décadas depois.

 

III. A ideologia de Marx

Entre os anos de 1845 e 1846, Marx e o filósofo, também prussiano, mas com educação inglesa, Friedrich Engels, escreveram a obra «A Ideologia Alemã» que não foi publicada até o ano de 1932, em Moscovo, e somente traduzida e publicada para o inglês em 1962 e, para o alemão, em 1968. Este gap entre a escrita e as traduções e publicações levou a um facto muito interessante e curioso: a própria utilização do conceito ideologia vislumbrada por Marx e Engels e uma utilização distinta, feita pelos seus seguidores, que desenvolveram suas próprias perceções conceituais mesmo sem terem acesso ao pensamento original da ideologia de Marx e Engels, que trataremos na próxima secção.

Sobre o conceito da ideologia, em Marx, podemos perceber este não pretende criar ou destruir nenhuma ideologia, a princípio, mas apenas a evidenciar o que é a ideologia, a expô-la e, a partir destas evidências, elaborar uma crítica sobre os elementos constituintes desta ideologia. O texto finalizado em 1846 não foi publicado, como sabemos, mas em 1859 Marx publica uma obra importante em sua Filosofia, que é “Para a Crítica da Economia Política”, em que apresenta a definição de superestrutura[5], a justificar uma dimensão em que as estratégias de dominação se fazem presente com instrumentos que capacitam a manutenção do poder como este se constitui.

Assim, a superestrutura passa a ser o mundo das criações ideais, do conjunto de representações de conceitos e de simbologias que formam a ideologia e é justamente isso que leva a uma “falsa consciência”. Mas, afinal, Marx não condena nada, nem censura de imediato, como dito, mas apenas oferece uma crítica que permite, através da própria ideologia, perceber as inconsistências e incoerências que há nas relações econômicas e sociais, quando só assim se é possível deparar com as contradições existentes. Por isso é que Marx ampliou bastante sua conceituação e levou o ideólogo a uma nova fase de sua funcionalidade, que é o de investigar tais contradições, ainda que seus seguidores tenham trilhado outros caminhos, por não saberem dos fundamentos conceituais.

A mentira, desta maneira, passa a ter uma diferença clara em relação à “falsa consciência”. Digamos, por exemplo, que Adam Smith, ao prescrever sobre as novas formas de mercantilismo que estava a presenciar, em que havia uma formação de um mercado baseado em capitais capaz de facilitar e escalar as trocas mercantis que antes se baseavam no escambo, agora facilitadas pelo dinheiro circulante e com um ponto central, chamado mercado, em que as negociações fossem possíveis, percebesse que todos por lá tinham interessem meramente individuais, egoístas, a serem investidos de uma necessidade de obterem o máximo pelo que tinham.

Isso, todavia, levaria a uma necessidade de minimizar os custos e os tempos de produção e maximizar as receitas obtidas com as mercadorias. Decorreriam, daí, novas relações de otimização de produção, a exploração da mão-de-obra alheia, processos com uso de novas tecnologias e tudo o que fosse possível para que se pudesse produzir mais rápido e barato, em escala.

Smith, ainda assim, considerou que tais formas egoístas e individualistas dos capitalistas fossem intermediárias, mas não finais, ao dizer que haveria uma mão invisível do mercado que lhes orientariam a uma direção racional em que as individualidades fossem, elas próprias, instrumentos de tal força do mercado. Um precursor “altruísta” do espírito racional de Hegel e da astúcia da razão, afinal.

Mas, para Marx, o pensamento de Smith deveria ser encarado como uma falsa consciência, subvertida pela ação da própria ideologia na qual Smith estava inserido como também estava a produzir e a reproduzir, pois ele acreditava mesmo no que estava a dizer, e isto era algo que representava seu momento de vida. A mentira ocorre, a partir da própria ideologia, pelas manipulações conscientes de que tudo é usado para proveitos da manutenção do status quo. Atualmente, por exemplo, atribuir à mão invisível do mercado um poder de equilíbrio, como muitos ainda fazem, é algo inaceitável, pelas evidências que tanto corroboram contrariamente e pela desproporcional concentração de riquezas que podemos perceber, estatisticamente. Esta é a diferença fundamental entre a mentira e a manipulação versus a falsa consciência que há. Adentra-se, então, às questões éticas e morais, e não apenas de críticas ideológicas.

Pois, em Marx, há o conceito restrito da ideologia, bem fundamentado e cirurgicamente dirigido para as muitas formas de interpretação da alienação que ele acusa ser o efeito mais contundente das relações de poder com base nas relações econômicas estabelecidas. É por isso que ele fundamenta a ideologia com base em quatro pontos bem distintos entre si, que levam a uma conclusão, a um quinto ponto em que baseará toda a sua conceituação de superestrutura.

Os quatro primeiros qualitativos da ideologia são: o (1) ocultamento[6] da realidade, pois ele próprio ironiza o iluminismo ao dizer que a luz também cega e que a ideologia, assim, infantiliza a mente humana; há a (2) inversão[7] da realidade, ao defender que o Estado e a Religião são uma expressão invertida do mundo porque são a expressão de um mundo invertido, dado que não é a sociedade que gera o Estado, mas é o Estado que torna a sociedade possível; e há a (3) naturalização[8] do que é artificial, como quando o capital é apresentado como uma necessidade natural; e, por fim, a defesa mantenedora de tudo o que existe, quando a ideologia passa a ser uma (4) justificativa para que as coisas sejam como são, como se fosse ela própria a expressão do melhor dos mundos possíveis de Leibniz, ou talvez, mesmo de Deus.

Estas quatro dimensões de caráter se afunilam e levam a uma quinta dimensão, que é a (5) subversão ideológica, como podemos perceber em muitas das teorias de Marx, como a própria alienação, em que a ideologia se mostra capaz de fazer com que tudo o que seja particular passe a ser considerado como se fosse algo universal.

Assim, podemos perceber que os valores particulares da classe dominante, como os da burguesia, passam a serem considerados até mesmo relevantes para os desprovidos de capital, como se o capital passasse a ser a realidade naturalizada e a justificativa para todas as ações que se fazem em função deles, de tais valores. Por isso, a ideologia passa a ser reproduzível e estabilizadora das relações sociais, pela subversão conceitual que é capaz de ela mesma produzir, pelos agentes investidos de tais ideias que ela representa e que consolida em torno de si mesma.

 

IV. A ideologia dos marxistas, pós-Marx

O tal gap ocorrido entre um conceito restrito de ideologia, de 1846, desconhecido até 1932, e outro, mais amplo, de 1859, dado pela superestrutura, aos quais os marxistas tiveram acesso a pautaram todas as suas fundamentações e desenvolvimentos, inclusive na Segunda e na Terceira Internacional, sem considerarem os escritos então inéditos de Marx, levaram a uma sintetização, ou uma redução conceitual, muito consubstanciada pelo filósofo húngaro György Lukács, em que a ideologia foi basicamente reduzida a dois tipos[9] de ideologias: a do proletariado e a da burguesia. A bem da verdade, todos os seus contemporâneos tomaram a mesma medida, mas Lukács foi o mais evidente de todos, em relação aos temas reducionistas sobre a ideologia. Fechou-as, talvez intencionalmente, provavelmente para exauri-las conceitualmente, a explorar ao máximo as duas dimensões mais relevantes para a perceção do marxismo. E, talvez, tenha feito isto muito bem.

Assim, deixou de haver uma crítica à ideologia, tal qual era a intenção de Marx, e passou a existir uma desconstrução da “ideologia da burguesia” e uma construção da “ideologia do proletariado”, em que os novos ideólogos passam a serem tanto construtores quanto reprodutores ideológicos, a atuarem tal qual Marx afirmou ao registar que «os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo» em seus escritos encontrados nos diversos rabiscos que poucos conseguiram entender bem, dada sua difícil grafia, e que este trecho foi considerado a décima primeira das teses dedicadas ao filósofo Ludwig Feuerbach.

Lukács levou isto a sério ao fazer evoluir o “marxismo ortodoxo”, como definiu em um dos capítulos de seu livro[10] e, juntos com os demais marxistas, em especial dentro do período da Terceira Internacional, com Lênin[11], que buscou levar o projeto adiante com a formação de um partido formado por todos os partidos comunistas do mundo, e buscou a construção de uma nova forma ideológica que transpassasse fronteiras e alcançasse todo o proletariado mundial[12].

A ideologia, assim, passou a ser considerada parte da instrumentalização contemporânea do Estado e das classes dominantes, tendo o capital por trás desta superestrutura montada para, institucionalmente, garantir a continuidade de exploração da classe proletária e apropriar-se, assim, da mais-valia em prol da reprodução capitalista, a falsear a História e a realidade em prol do establishment. Ainda atualmente, os marxistas que restaram, em sua maioria, possuem esta dualidade tanto conspiradora quanto instrumental frente à ideologia: tanto uma busca para desmontar a ideologia burguesa como para construir uma nova ideologia proletária.

 

V. A ideologia Psicanalítica de Lacan, Žižek e Althusser

Para percebermos a transformação da ideologia em um conceito capaz de ser abordado pela Filosofia sob uma hermenêutica psicanalítica, será preciso perceber a inserção de novos conceitos realizados pelos filósofos Louis Althusser e Slavoj Žižek, e entre estes dois, o psicanalista francês Jacques Lacan.

Até então, antes de Althusser, a ideologia era, mesmo com suas diferentes formas, conteúdos e intenções, conceituada como os sinais que o ser identifica com a sua própria existência, mas aqui apenas em níveis imaginários, representativos das ordenações simbólicas existentes no mundo.

Althusser passa a inserir o conceito de relacionamento, com a qual o indivíduo se relaciona com uma ou mais ideologias, que deixa de ser uma mera representação imaginária e passa a ser a própria relação do indivíduo com as suas próprias condições de existência, a dotar a ideologia de movimento, de fluxo e, também, de instabilidades, de possibilidades de mudanças e transformações. Surge a possibilidade de rutura[13] na ideologia, que Lacan irá explorar profundamente. Althusser modifica[14] sutilmente essa noção. Para ele, a ideologia não é uma representação imaginária, mas a representação das relações imaginárias dos seres humanos com as condições sociais de existência. E acrescenta, aproximando-se ainda mais de Freud, que “eis porque me considero autorizado, ao menos presuntivamente, a propor uma teoria da ideologia em geral, no mesmo sentido em que Freud apresentou uma teoria do inconsciente em geral[15] e prossegue ao reafirmar, tal como os marxistas anteriores, que elas são concessões de mundo, ao estabelecer que «contudo, embora admitindo que elas [concessões de mundo] não correspondam à realidade, portanto que constituem uma ilusão, admite-se que fazem alusão à realidade, e que basta [interpretá-las] para reencontrar, sob a sua representação imaginária do mundo, a própria realidade desse mundo»[16]. E isso é possível ao considerar a ideologia como uma ilusão ou alusão, mas que antes de tudo é uma relação entre o próprio indivíduo e o mundo.

Žižek, afinal, vai para além de Freud e chaga a Lacan, mas com base em Hegel, e nesta mistura nada ortodoxa, fundamenta-se no conceito da fantasia, em que Lacan estabelece que a pulsão humana nos relacionamentos ocorre não apenas pelo desejo, basicamente, mas sim pelo desejo do desejo, em que o desejo é ser desejado pelo outro, pela esfera relacional. Se, em Althusser, a ideologia passa a ser um ente relacional, em Žižek, na leitura lacaniana, a própria ideologia passa a ser o objeto da fantasia, na qual se deseja que ela deseje ao próprio indivíduo.

A ideologia passa a ser uma práxis, o fazer, numa dimensão mais mundana e menos epistemológica, e profundamente relacional. Se, em “O Capital”, Marx escreveu que «disso eles não sabem, mas o fazem»[17], Zizek demonstra que, de forma geral, “eles sabem, mas fazem da mesma forma” e usa de diversos recursos, inclusive musicais de Hollywood, para além da teoria, para demonstrar que há uma certa subserviência voluntária e consciente à ideologia e que ela é uma forma, inclusive, de autoexpressão por parte do indivíduo. Não há uma inconsciência falseada, mas sim o que pode ser considerado como um espírito obsessor que determina a forma como se vê e se percebe o mundo, com a ordem que este quer que seja estabelecido como tal. Ainda que pareça algo metafísico, não é este o propósito conceitual de Žižek, ainda que não use de tais termos, como “espírito”, mas que ainda assim está bem próximo de Hegel, na qual ele fundamenta suas investigações e teorizações filosóficas.

A ideologia, assim, configura-se, antes de tudo, como uma espécie de abrigo para que o indivíduo passe a se sentir “bem” no mundo, para que possa perceber-se como seguro e dono de si. E, contrariamente, os sonhos não são feitos para se atingir ou expressar a própria realidade, mas sim para fugir da inexistência que é dada pelo real, pelas inconsistências que existem para além da ideologia, na qual os sonhos são feitos para que se possa fugir justamente da realidade desconhecida e hostil. A ideologia, assim como os sonhos, é um abrigo seguro e confiável para o indivíduo e, desta forma, passa a ser desejada, e passa a ser fantasiada[18] como algo que deseja a si próprio.

E é assim que a fantasia liga o indivíduo às ordens estabelecidas, nas diversas esferas da vida política, social, cultural, religiosa, etc, o mesmo que se configura como a superestrutura de Marx.

 

VI. Conclusões acerca dos hiatos conceituais (gaps) e a formação da inconsistência conceitual da ideologia

Há, assim, que se perceber a ideologia no sentido amplo e no restrito, mas restrito não na dimensão que Marx estabeleceu. Aqui, contemporaneamente, a ideologia precisa a voltar a uma dimensão restrita e isto significa dizer que será preciso percebê-la em sua multiplicidade, quantitativamente.

Existe a necessidade de se estabelecer diferentes ideologias, ainda que hierarquizadas, para que possamos perceber que há algo a afetar as relações, como um todo, nos aspetos diversos que existem nas relações estabelecidas, em teias e com diversas prioridades entre elas. Há tantas ideologias amplas, quase universais, como o neoliberalismo, como há inúmeras microideologias, aquelas que podemos perceber nas unidades familiares, por exemplo. Se há relações constituídas, há ali alguma ideologia formada para sustentar tais formas de relacionamentos.

Por isso, urge que a ideologia seja reatualizada e reintegrada nos mais diversos campos da Filosofia, a partir da própria Metafilosofia, na qual exige-se que se perceba, ao logo da própria história, as diferentes formas ideológicas que a Filosofia incorporou em si, e que continua a incorporar, ainda hoje. É preciso uma crítica, mas antes de tudo, uma autocrítica ideológica nas formas de pensar. Não se busca uma pureza, mas sim uma isenção e um afastamento necessário às questões que são desafiadoras atualmente e que refletem, basicamente, a diferença, a desproporcionalidade e a desocupação sobre os novos tempos vindouros, quando teremos que lidar, não apenas filosoficamente, com os desafios que já começam a aparecer como verdadeiros e graves problemas.

Não seria este retardamento em verificar a própria realidade do mundo uma ação ideológica na qual a Filosofia passou, sob certos aspetos, a ficar igualmente desprovida de atenção ao que é realmente relevante? Que mundo, afinal, deixaremos para as próximas gerações? E sobre a realidade, o que é e o que está nela? As questões são muitas, mas o que nos impede de respondê-las, talvez, seja apenas a ideologia que ainda não conseguimos revelar, totalmente. Uma nova hermenêutica se faz necessária ser elaborada, para uma nova Filosofia.

Sim, afinal se faz necessária uma nova Filosofia, a Filosofia do Legado. E a ideologia é o que nos separa desta nova necessidade investigativa. Voltemos, portanto, as atenções novamente à ideologia, como meio de se atingir algo maior, a leitura da realidade de forma que possamos, a partir dela, atingir as verdadeiras questões que se fazem relevantes em momentos de grandes incertezas em que vivemos.

 

VII. Bibliografia

Althusser, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, 2ª edição.

Bergson, Henri. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Tradução de Nathanael G. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

Carvalho, Bruno Leal Pastor de. Antoine Destutt de Tracy: o “pai” do termo ideologia (artigo).  In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-pai-do-termo-ideologia/‎. Publicado em 05/05/2018. Acedido em 29/05/2022.

Eagleton, Terry. Ideologia. Uma introdução. Tradução de Silvana Vieira e Luís Carlos Borges. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo,1997.

Engels, Friedrich & Marx, Karl. Marx, A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Supervisão editorial, Leandro Konder; Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. – São Paulo: Boitempo, 2007

Kennedy, E. (1979). “Ideology” from Destutt De Tracy to Marx. Journal of the History of Ideas, 40(3), 353–368. https://doi.org/10.2307/2709242

Leiter, Brian (2004). The Hermeneutics of Suspicion: Recovering Marx, Nietzsche, and Freud. In The Future for Philosophy. Clarendon Press.

Lukács, György. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. Tradução de Rodnei Nascimento. Revisão da Tradução de Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Marx, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

Spinoza, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

 

Notas: A inconsistência conceitual da ideologia


[1] Kennedy, 1973. P. 353

[2] Esteve preso nos anos de 1793 e 1794, quando foi solto e passou a fazer parte do Instituto Nacional de Paris, que estava a substituir a Academia Real que foi abolida pelo Robespierre, avesso a quaisquer fontes de ameaças e questionamentos sobre o seu poder. Em 1796, Tracy passou a chefiar a Divisão de Moral e Ciências Políticas, com o objetivo de avançar em seus estudos sobre as sensações e as ideias e foi neste ano, inclusive, que apresentou o termo ideologia. Percebe-se que mesmo sem a intenção de ser uma aplicação política, o conceito de ideologia sempre esteve no centro das questões e emergiu justamente a partir de quais questionamentos.

[3] Kennedy, 1973. P. 359, em minha livre tradução.

[4] Fica a questão lúdica se o discurso de Napoleão não teria influenciado a ideologia prussiana, ao ponto de Marx, nascido dez anos após tal discurso, não tivesse recebido este mesmo conteúdo ideológico com o qual desenvolveria parte considerável de sua crítica à ideologia com especial dedicação ao Cristianismo.

[5] A superestrutura é a face mais evidente da ideologia, para Marx, composta pelo Estado, religiões, artes, Direito, meios de comunicação e muitos outros que levam à inserção ideológica dos valores, ideias, juízos e representações das classes dominantes. Marx evoluiu o conceito de ideologia e foi este que foi absorvido pelos seus seguidores, muitos deles sem nunca terem conhecido as ideias embrionárias da ideologia que estavam a sustentar tais seguimentos.

[6] «Essa solução, essa “negatividade absoluta”, dá-se apenas – como se percebe desde já – com a condição de que o homem confie cegamente nas ilusões tanto da criança quanto do adolescente, acreditando, com isso, ter dominado o mundo das coisas e o mundo do espírito.» Engels & Marx, 2007, p. 132.

[7] «Ele se livra de seu incômodo ao exprimir de forma invertida a representação habitual do pequeno-burguês e ao introduzir a aparência de que a posição dos indivíduos em relação ao poder do dinheiro é uma coisa que depende puramente do querer ou do esforço pessoal.» ibidem, p. 383.

[8] «Mas, ao mesmo tempo, imagina que a exigência moral que ele faz aos homens para que modifiquem sua consciência seria capaz de produzir essa consciência modificada, e nesses homens modificados por condições

empíricas modificadas, que naturalmente passam a ter uma outra consciência, ele não vê outra coisa que uma [consciência] modificada.» ibidem, p. 245.

[9] «…não se deve esquecer que as ideologias nacionalistas permaneceram vivas não apenas nas camadas pequeno-burguesas (cujo comportamento, sob certas circunstâncias, podem ser muito favoráveis à revolução), mas também no próprio proletariado, especialmente no proletariado das nações oprimidas.» Lukács, 2003, p. 495.

[10] Idibem, p. 63.

[11] Como Vladimir Ilyich Ulianov era conhecido.

[12] Missão que Leon Trótsky tomou para si, no campo. Incrivelmente, tais movimentos foram oficialmente desmontados por Josef Stalin, mas extraoficialmente sabotados pelo próprio, até mesmo no que se refere ao assassinato de Trótsky. A ideologia é sempre mais perturbadora, sempre, para o poder estabelecido. Até mesmo os ideais “afins” passam a serem combatidos se a legitimidade do sistema é colocada em pauta.

[13] Deixa de ser um estatuto e passa a ser algo que pode ser negociável, mas sempre presente ao estabelecer de forma freudiana que “a ideologia é eterna, exatamente como o inconsciente”.

[14] «Tese 1: A ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência.»

[15] Althusser, 1985, p. 85.

[16] Ibidem, p. 86.

[17] Marx, 2008, p. 312.

[18] Por exemplo, na ideologia religiosa, o conceito de deus, ou dos deuses, é baseado no desejo que este deus terá para o indivíduo que ele supostamente deseja cuidar e proteger. Assim, surge uma função de um “grande outro” que Lacan posiciona como aquele que é o mantenedor da ordem simbólica e para o qual todos os crentes passam a servir, supostamente, mas que é justamente o contrário, quando a máxima “eles sabem, mas fazem da mesma forma” se faz pertinente. Com deus, até mesmo os seus mandamentos, como não matar, podem ser executados se em nome dele, pela sua causa. A permissividade se faz possível, assim. E isto é a função da ideologia, a justificar as ações, as pulsões e a vida organizada.

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