O amante
Ação-Mente-Linguagem Filosóficos

A jornada funcional do agente

Parte I | Introdução à Jornada Funcional do Agente

Nos anos 40, o Dr. Kenneth B. Clark realizou uma pesquisa (relevante para percebemos uma perspetiva sobre a jornada funcional do agente) na qual eram dadas, às crianças Pretas que estavam a participar, lápis coloridos para colorirem imagens que representavam crianças, com a “pele” à mostra também para ser colorida, impressas em uma folha de papel. Havia também a apresentação de bonecas idênticas em tudo, exceto pela tonalidade da pele, a variar entre a preta e a branca, para que  as crianças participantes pudessem avaliar as bonecas qualitativamente, pelas questões objetivas colocadas pelos pesquisadores, em relação às cores das bonecas, a provocar uma análise supostamente deslocada do eu, da própria imagem/identidade pessoal em questão. “Surpreendentemente”, à época, chegou-se à conclusão[1] de que há uma “discrepância entre a própria cor de pele percebida e a cor de pele preferida como grande demais para ser ignorada”. As crianças Pretas, assim, conseguiam se identificar com tais, a partir dos quatro anos, e acreditavam que as qualidades mais desejáveis (ser “bom”) estavam nas crianças brancas, a consolidar tais crenças na idade de sete anos. A partir dos dois anos, crianças passam a perceber o conceito dos estereótipos.

Este estudo foi pragmático e importante para o processo de desintegração legal da segregação racial nos Estados Unidos, pela aceleração da abolição das leis que a legitimavam e a sustentavam, e que veio permitir a “igualdade” legal entre as pessoas de colorações distintas, nos aspetos físicos, mas ainda com alguma segregação viva e presente, pelo racismo instituído, nos aspetos mentais, em eventos que pululam no cotidiano, excessivos e lamentáveis, estatísticos e resistentes às mudanças de uma sonhada utopia de igualdade, a dissipar-se de geração em geração, mas sem atingir uma neutralidade que talvez seja apenas possível nas utopias, dada a natureza humana.

Algumas destas crianças, quando foram confrontadas para hierarquizar qualitativamente as colorações das peles, em sua maioria atribuíram os melhores adjetivos à pele branca. Umas até mostraram-se imensamente constrangidas e abandonaram a pesquisa, emocionalmente abaladas, por terem tido a (falsa) consciência de que ter cor de pele Preta seja mesmo algo ruim, lamentavelmente. Portanto, estiveram a concluir, durante a infância e provavelmente toda a sua vida, falaciosamente, pelas manifestações feitas que: (1) ter pele Preta é ruim, (2) eu tenho pele Preta e, portanto, (3) eu sou ruim. Eis o efeito.

Isso não passa, afinal, de um reflexo do sistema de crenças, desejos e vontades instituídos e compartilhados, aceitos e defendidos, até mesmo por quem sofre os efeitos nocivos de tais eventos, compartilhados no espaço-tempo, com significações e valores intrínsecos, em si mesmos e para além de si, inclusive. Como pode uma criança julgar-se mal, apenas por conta das crenças externas, sem validar seus próprios estados mentais e juízos? O que, afinal, se mostra mais poderoso e/ou precoce: as crenças externas (introjetadas) ou os próprios juízos humanos, ditos racionais (e cultuados como a máxima expressão humana) e capazes de atingir um determinado estado isento / autónomo?

Aquelas crianças eram confinadas[2] a espaços limitados e aprenderam que não poderiam passar de certos pontos e adentrar (invadir) ao espaço dos brancos. Nasceram, portanto, plenamente inseridas nas impossibilidades, enquanto os brancos tinham, consigo, todas as possibilidades. Mas, afinal, quais os limites existentes? Onde estavam os muros? Não havia muros, apenas existiam “convenções” de que deveria haver uma restrição de acesso aos pretos a alguns lugares, até que Rose Parks, Preta, se recusasse, em 1955, a ceder seu lugar a um homem branco, no Alabama, que implicou nos movimentos de igualdade civil.

O tempo, afinal, progride e, supostamente, provoca consigo algumas transformações nos suprimentos de descrições de eventos factuais e/ou históricos, a produzir novas crenças, desejos e vontades individuais e coletivas, em constante transformação[3].

Assim, pelo decorrer do tempo, houve, também, algumas outras replicações destes estudos, como um feito em 1976, pela Dr.ª Juneau Mahan, com bonecas, pretas e brancas, que eram apresentadas a diversas crianças Pretas, mas também com participação de crianças Brancas. Este estudo foi realizado doze anos após a Lei dos Direitos Civis[4] estar vigente, que terminava definitivamente com a segregação racial, desde que foi assinada pelo Presidente Lyndon Johnson, em 1964.

O que mudou no resultado, afinal, em três décadas, entre estas pesquisas, foi que a Dra. Mahan não identificou[5] um percentual tão “significativo” de uma autoimagem negativa detida pelas crianças Pretas, mas não foi nula, nem irrelevante, todavia. Deixou, apenas, de ser tão “significativa” o que mostra alguma modificação supostamente positiva. Havia parte do grupo analisado, de crianças Pretas, que ainda estava a ver-se como, falaciosamente, “ruim”, mesmo que menos intensamente do que no passado. O que mudou, mesmo, naquele momento histórico, foi o orgulho (merecido, necessário e justo) de ser preto começar a ser reconstruído, pelas manifestações na moda e no modo de se expressar, do movimento Black Power, a maior (e nova) representatividade dos pretos na sociedade, em especial, ao nível das crianças, nas novas bonecas produzidas, já com peles Pretas e, assim, percebeu-se a importância de um evento em que existe, ou passa a existir, um produto que leva a uma identificação grupal, identitária, em similares ou iguais condições do que os outros, com menor diferença, e com isso (a representatividade) gera uma significação individual e compartilhada sobre o que se considera identidade percebida, a alterar o sistema de crenças, desejos e vontades, próprios e compartilhados.

Não há, todavia, como dissociar o ente indivíduo da entidade sujeito, que será defendido aqui, a partir de conceitos filosóficos de ação para Donald Davidson e Elizabeth Anscombe, principalmente. A presença ou a ausência de conteúdos mentais, são abordadas sempre, mas nunca a origem, a posse e a hierarquia destes conteúdos com significações na agência. Afinal, há deliberação, quase consensualmente aceita, mas e sobre a autonomia? Há, de facto, o indivíduo, para aquém do agente?

A questão toma fôlego quando percebemos uma conceituação com pretensões ontológicas, dada a impossibilidade de ser ôntica, do tipo “individuo como unidade autônoma de deliberação”. Impressiona pelo quantum de energia empregada para conseguir formar tal explosiva expressão, quase surreal e digna de estrelar um filme de Luís Buñuel, pois primeiro precisamos definir o que é cada coisa, e todo o resto:

O indivíduo: não há, todavia, o indivíduo sem alguma relação com um todo. Um indivíduo é, essencialmente uma parte separada de um todo, uma delimitação em relação ao externo a si, que o permite ser uma individualidade, a compartilhar apenas parcialmente do ethos do que está para além de si, com autossuficiência mínima para se movimentar (agir/existir). Há, obrigatoriamente, algo que seja preciso ter em comum entre a parte individual e o todo geracional, pois então não haveria o sentido de existir tal individualidade, e por isso que é necessário haver alguma implicação[6] entre o ethos do indivíduo e do mundo exterior.

Unidade autônoma: autonomia em relação a quê? Ou a quem? Está totalmente fora de alguma cadeia de implicações, mas de qual? Não está sob sujeição de um determinismo ou limitação de agência? O que é, afinal a autonomia? Como separar uma autonomia objetiva de uma autonomia subjetiva, tal qual ocorreu (e ocorre) com as crianças que possuíam determinados conteúdos mentais que levavam a certas deliberações nonsense, contrários a seus próprios juízos empíricos? Afinal, a autonomia precisa ser conceitualmente situada e definida parametricamente. Mas, ainda assim, para o que quer que se consiga estabelecer, não se poderá garantir que seja o suficiente para produzir os efeitos esperados, visto que não existe uma estanqueidade em nada no que se refira à existência, ou à capacidade de existir, pois tudo é, necessariamente, relacional, até mesmo a perceção de existência assim o é, em relação ao vazio absoluto, ao próprio “nada”.

E, finalmente, a deliberação fica, assim, condicionada a se definir como resultante de um processo em que, necessariamente, seja preciso perceber não apenas todas as variáveis que levarão à determinada ação, ou consideração sobre a ação, ou mesmo à acrasia, seja qual for o desfecho de um processo de um ente cindido entre a individualidade e a parcialidade, ou entre a autonomia e a influência total ou parcial. Para a deliberação, é necessária perceber o quantum de individualidade[7] e autonomia existe, na condição do agente, pois este quantum definirá, necessariamente, sua capacidade de estar a exercer algo genuinamente racional, ou apenas um reflexo natural das condições existentes.

A questão, todavia, será sempre, no que tange à arquitetura da ação, do projeto do agir que vai para além da ação, e que se configura como o [ato do agir], e que seja algo que precisará emergir de um contexto em que existe um suposto indivíduo sempre alocado e a considerar em igualdade de condições as teias conectivas e estruturais às quais este esteja a integrar[8] – ativamente e passivamente, simultaneamente.

O indivíduo só é indivíduo para ser funcional, pois a individualidade é também um efeito da funcionalidade, em última instância. A funcionalidade é movimento, ação, mesmo que seja um peso morto de papel, está a ser funcional, como o próprio motor imóvel de Aristóteles, como um deus inconsciente que contenha em si todo o objeto de desejo em puro ato que move tudo apenas por lá estar, referencialmente. A funcionalidade[9] está na essência da existência, da autonomia e da utilidade.

Há sempre uma necessidade de um fim (oculto ou desconhecido) para além do fim (supostamente conhecido), da manutenção da existência em função de uma associação[10], do cumprimento de regras, dos contratos estabelecidos e das tensões produzidas. Isto é, necessariamente, o ato de agir configurado a partir das ações, desde sempre, e não deveria estar dissociada da forma de perceber por que agimos como agimos.

Muitos chegam, afinal, a algum ponto da vida em que a força existencial se mostra plena, no topo do mundo, a conquistar posições e acúmulos que deveriam ser tudo para elas. Quando supostamente era para se sentirem muito bem, como todas as promessas que são feitas para quem conquista tudo o que há para ser conquistado, mas nada vem com o gosto esperado, e percebem-se como uma fraude, como se fossem falhadas, e talvez até deprimidas[11]. E, com isso, há o vazio existencial, a falta de pertencimento, como se não estivessem a viver suas próprias vidas, e sem perceberem o que as levou até onde estão.

As bases históricas deste erro conceitual vem mesmo da Filosofia, na busca desenfreada de se estabelecer a eternidade como uma base em que possa se responder (com pretensão de estabilidade conceitual a ser buscada dentro do caos impenetrável da realidade) a diversas questões, pois apenas, e só assim, é que se pode pensar em um conceito tão frágil como a “universalidade”, que não resistiria a dez segundos de explanação da Física Teórica, por exemplo, nos campos da cosmogonia, mesmo no mais básico modelo da teoria do “big bang”, em que defende que algo surge do nada, a partir de uma singularidade massiva e disfuncional, aparentemente. A universalidade é um erro conceitual, em que se supõe justamente construções que foram sobrepostas até que se atinja coisas como o equivocado conceito de indivíduo para além da utopia, que é, no máximo, um estado, um ente, um dasein, empurrado unidireccionalmente para um sentido em que não lhe restará opções de exercer nenhuma autonomia ou exclusividade comportamental de agência, pois nunca virá a ser uma entidade ontológica, mas sim um ente que acredita ser realmente autônomo, crente e devocional a si mesmo como um projeto dado, até que a morte venha, bem menos temida do que a desintegração do dasein[12].

 

Parte II | Fantoches negacionistas?

As teorias de Davidson assentam-se a partir, quase em agoniante desespero, de se buscar um conceito para se estabelecer uma razão primária que possa ser aceita como causa das ações, um marco fundamental da qual a ação ganha vida. É uma forma de assunção da universalidade herdada da eternidade, em que tudo é o mesmo sempre, na completa estabilidade que leva algumas áreas da Filosofia a um marasmo incomensurável, em que nada se atinge, exceto a própria regurgitação conceitual. Uma forma inconsciente de se fugir ao caos das possibilidades prováveis, latentes e dispostas a arrasarem toda a teoria universalista. A universalidade é a grande muleta conceitual fetichista: robusta, forte e imponente como um búfalo, atualmente. Mas, afinal, é um búfalo manco, que logo se destacará dos outros e será, possivelmente, a primeira presa de um grupo de leões famintos a procurarem algo para saciarem sua natureza finita e desejosa de nutrição, na rica e vasta selva, exuberante, da Filosofia. Quem são estes leões? Seria a primeira pergunta do incauto filósofo regurgitante, a temer que seu mundo conceitual desabe, em que todos estamos inseridos, afinal, neste terceiro milênio da máxima racionalidade. Talvez esta não seja, todavia, a pergunta mais pertinente e urgente, que é: Onde estão estes leões? E quando estarão com fome? Qual o ponto de rutura que levará ao ataque?

Há uma inteligência muito louvável em toda a lógica apresentada por Davidson, realmente genuína e sofisticada, sutilmente colocada a soar como precisas notas harmoniosas, como as das melodias lounges das salas VIP do Diners Club ou através das sensações oferecidas pelos melhores vinhos Romanée-Conti, conforme a preferência causal do leitor, ou da leitora, exceto pelo facto de que o mecanismo apresentado por Davidson não considera válido escrutinar os conteúdos considerados no esquema proposto. Para ele, não importa a ambientação das salas VIP, nem a qualidade das uvas.

Estabelece as formas, mas não os conteúdos, como se buscasse construir um prédio capaz de durar milênios (eis novamente o fetiche pela eternidade), mas que, por acaso, fosse utilizado para estocar explosivos e, numa fatalidade qualquer do acaso, de uma acrasia do fiscal de segurança ou um autoengano do estoquista, explodisse, e tudo fosse pelos ares. Os conteúdos, portanto, sempre podem demolir (ou eternizar) as melhores construções, de dentro para fora, assim como os leões podem destruir os búfalos mancos, de fora para dentro, até chegar às vísceras, ou ao filé. Nada há de mais “naturalista” do que isto.

O foco davidsoniano[13] foge, sem deixar vestígios, da matéria-prima (conteúdo, qualia) e vai para a máquina (procedimental), como se buscasse tangibilizar tudo a um mecanismo reducionista e previsível, a uma forma de registo causal a partir de evento, assim definido. Evento que possuirá duas descrições, sempre, e que isto representará o melhor dos legados da teoria de Davidson, mesmo que ele não tenha conseguido tirar todo o proveito destas descrições que estabeleceu, deixando-as em potência, e que agora buscamos atingir o ato.

Para o búfalo manco, a bem da verdade, não importa os leões, mas sim o leão, apenas um, aquele que decidirá seu destino. É este que o atacará na jugular e o levará ao chão, e apenas depois virá o resto do bando a buscar sua parte do banquete, sua “individual” fração de sobrevivência. Individual é isso: sobrevivência, funcionalidade, finalismo.

Para este búfalo manco, potencialmente morto nas próximas horas, não importa nem mesmo o leão, mas sim os outros búfalos que estão por lá, e que passam a se distanciar[14] dele, para que deixe claro para o faminto leão quem deve ser primeiro atacado. Portanto, para este búfalo manco, está claro que não precisa correr mais rápido do que um leão, mas sim mais rápido do que, apenas, ao menos, um outro búfalo, e ser o menos vulnerável do bando. Mas, por ser manco, e impossibilitado de correr tão bem quanto quem não seja manco, todo o resto, não se focará em adquirir uma impossível capacidade de voltar a correr[15], mas apenas fingir que não é manco, e vender ilusões aos demais, para que não seja o alvo mais óbvio a ser evidenciado, e passar a ser incólume para o mundo. Precisa transferir sua mórbida vulnerabilidade para o resto do bando e, assim, diluir sua exposição ao destino final de toda a vida, a ganhar tempo e, portanto, possibilidades, o que todos, afinal, estão a buscar. Este é seu modo de existir, seu dasein. Eis os encadeamentos do ato de agir, dentre tantas razões dadas.

Mas a verdade, verdade mesmo, daquelas com cerca de 99% verdadeiras, dada a impossibilidade de ser 100% provável de ser verdadeira, mas, dita assim mesmo, inegável, para o búfalo manco, é que não importará nada disso, mas sim a angústia da vida que concentrará toda a sua atenção, como resultado de todas as possibilidades, que o levará inefavelmente à morte, à finitude, aos fins naturais de toda a existência. Mas o búfalo manco não pensará em nada disso, nem na ameaça do leão, nem dos leões, nem da concorrência com os outros búfalos, nem na dissimulação e nem na própria morte, nem na natureza. Pensará em quê? O que elegerá para ser fruto de suas angústias, de uma forma menos angustiante? O búfalo manco, assim, se inserirá na ideologia vigente de seu bando, e poderá até aceitar passivamente seu sacrifício, ou não, conforme o que determinar as formas de organizações vigentes. O problema verdadeiro é que elegeram este ser, o búfalo manco, o resultante deste processo de razões, como o indivíduo autônomo e deliberativo, capaz de racionalizar. Não é, apenas o pós-bufalo manco será.

Eis o ponto. Autonomia não está na angústia, mas está nisso, verdadeiramente (com 99% de verdade): ser autônomo é se estar consciente e ter consciência desta consciência e, portanto, não pode estar distante dos qualia, mas nem mesmo apenas se ater a estes. Ser indivíduo, finalmente, é “saber” que se é autônomo, ao testar a si, mesmo que seja em benefício próprio, de terceiros ou de ambos, sem nenhum véu nem nada, completamente despido de todos os conceitos que se mesclam como vestes, e ter apenas sua “consciência consciente de si”, e da diferença que possui, positiva ou negativa, ativa e capaz de perceber claramente as regras do jogo que se está a jogar, por vezes a atuar como agente, por vezes a se camuflar em busca de uma invisibilidade, como diferencial estratégico, mas sempre a jogar. Autonomia é um estado mental, de independência, complexo de se alcançar, e nada banal.

Vale, apenas, ressaltar, ou talvez não, ainda sobre John Rawls, que a escolha por um véu da ignorância foi justamente pela impossibilidade de constituir o que muitos filósofos clássicos, tal qual Aristóteles, consideraram como o homem dotado de sabedoria (e virtudes), quando em atividade contemplativa, superior a tudo em valor de ação enquanto atividade, em que uma ação se basta a si mesma, tal qual a contemplação se configura como um fim em si mesma, pelo conceito da energeia. Um estado de sabedoria total (universal) considerada por Aristóteles, afinal, para Rawls, não levaria a um estado de justiça, pois talvez a justiça não se baste a si mesma e precisa do contraponto negativo, da injustiça, para se levar a algum estado de negação da negação (o que aqui é diferente da afirmação, para fustigar a ira fundamentalista dos lógicos), em loop infinito. Assim, a justiça não seria energeia, mas apenas kinesis, um movimento que precisa levar a algum fim para além de si mesma, pela sua inferioridade, afinal. Justiça é uma razão provável, afinal, que emergirá do filtro da racionalidade, conforme veremos, doravante.

Rawls, ao castrar o homem de sua humanidade, nem mesmo apelou para criar ele mesmo alguma utopia, pois terceirizou esta criação utópica de um mundo justo a um ente que não seja humano, talvez com pretensões divinas de onisciência, que resultou do “homem do véu”. Nem mesmo a utopia neoliberal, de todo, e talvez sua precaução de privar o homem de sua humanidade (que implique em justiça) prove o fracasso do próprio projeto humano e de todas as utopias criadas por estes, para além do Jardim do Éden, já superado pela intervenção da cobra falante, e que deveria ser uma leoa, afinal. E, talvez, a partir deste fracasso se justifique algo como o neoliberalismo, afim com as falibilidades humanas e do potencial pelo culto à diferença, que leva à idolatria exacerbada das possibilidades.

A humanidade, obviamente, nunca deixa de participar do humano, sempre, pois é o seu ethos, e a estranha criatura ralwsiana resultou em algo que pode ser tudo, até mesmo deus ou um justo neoliberal (nonsense, e cá, entre nós, os “neocínicos”, percebemos bem a definição mais apropriada para o termo “esdrúxulo”?), mas nunca será humano, pela falta do que se chama a integração do ser com a existência, necessariamente alocada no espaço-tempo, da agência, que vai do conceito de indivíduo ao materializado sujeito, que age, sempre, em função de algo para algum lugar[16].

Portanto, Davidson não poderia ter afirmado que não somos fantoches. Pois, sim, o somos na maior parte de nossas ações, enquanto movimentos fazemos, finalistas e funcionais. E há algo igualmente funcional que nos leva a negar isto, o que somos fantoches, e a nos responsabilizar por agirmos unicamente por sermos definidos como indivíduos autônomos com possibilidades. Assim, somos fantoches, mas negacionistas. Pelas graças divinas, ou do grande outro, atualmente está na moda ser negacionista, e já não se é tão estranho como antes. Portanto, vamos a isto!

 

Parte III | O Monismo “Multiplamente” Anômalo

Após a abolição conceitual da estanqueidade da ação, que busquei elaborar, resta perceber que as “razões primárias”[17] das ações, ou causas, defendidas por Davidson deveriam ser renomeadas para “razões prováveis” (ainda falta o 1%, pois estamos nos 99% da verdade).

Pois, para ele, para toda ação, sempre haverá uma razão, seja conhecida ou não, mas nem sempre haverá uma causa, necessariamente. Afinal, só teremos tais crenças e querências (razões principais) a partir de certos efeitos que foram obtidos, por si mesmo ou por outros, e que retornam à mente como um suprimento de conteúdos mentais que ele acredita ser possível segmentar individualmente e independentemente. Como passar toda esta confusão conceitual, obscura, mal-ajambrada, que fundamenta a teoria de Davidson, a limpo? A Implicação e a Explicação podem ser a alternativa viável para sair deste loop infinito com alguns gaps ocasionais.

A implicação é, conceitualmente, tudo o que precede a ação concernente, em si. Ainda não há agente na implicação, pois não é uma ação concretizada, mas há o ator, que assume determinado papel a ser cumprido, a ser funcional ao representar algo que ainda não se sabe bem o que virá a ocorrer. Se há o ator, há o papel, a função, o espaço determinado e limitado para este: uma determinada posição. O ator interpreta um papel, coloca seus conteúdos aos serviços do que lhe foi estabelecido. Mesmo dirigidos, os atores são livres para criar, para incrementar cargas emotivas, características peculiares e efeitos que levam aos melhores desempenhos em que se atinge a tão desejada verosimilhança, na qual não se percebe a diferença entre o ator e a personagem, o agente e a ação. A ação, todavia, se não pode ser considerada um acontecimento isolado, pois não surge do nada.

Mas Davidson exemplifica: (1) liguei o interruptor, (2) acendi a luz, (3) iluminei a sala e (4) o ladrão fugiu. O “querer” acender à luz o levou à crença de que ligar o interruptor era necessário e suficiente para tal, e assim o fez, ao realizar a ação de ligar o interruptor. Aqui a causa se equipara à razão da ação, mas nem sempre é assim. Eis aí uma estanqueidade explícita e obscena, em seu máximo estado de existência, como diz Žižek. É obsceno não pela falta de pudor, mas por incorporar tanto, mas tanto pudor, conceitual, que por este excesso atribuído a si, se vulgariza, se expõe, e se desnuda como o Rei.

A implicação, aqui defendida ontologicamente, contém mais do que isto e contém, necessariamente, as respostas para estas outras questões: Por que a luz estava apagada, visto que se estar no escuro não é agradável, exceto ao dormir? Ou qual, mesmo, o motivo por que se deve economizar energia, visto que a circulação de recursos financeiros seja algo bom para a economia como um todo? Por que que considerou ser um ladrão, necessariamente, e não algum pervertido e lascivo voyeur? Se não houvesse a propriedade privada, acreditaria primeiro no quê, ao invés de estar lá um ladrão? Enfim, muitas questões que formam um sistema de crenças em que levou a luz a ficar apagada, e que havia um interruptor para ser funcional, quando necessário, assim como o agente, ao pressioná-lo, igualmente funcional, atua como parte do sistema (como ator) em que o dedo, ao tocar no plástico, ao pressioná-lo e gerar um efeito, seja parte de uma máquina esperada a produzir um certo resultado previamente determinado. Seja apertar um interruptor ou levantar um braço, nada é estanque, afinal, e tudo faz parte de um ato, a partir de um conjunto de ações possíveis e a deliberação para uma ação provável, que não necessariamente será executada.

A implicação, portanto, é o não-acontecido. Na implicação residem todas as razões possíveis, a concorrerem para serem “eleitas” como a razão primária de Davidson, que estamos a considerar como razão provável. A ação é o acontecimento, no devir, no instante – e apenas nisso. Depois, já não é mais ação, assim como não era antes. A ação é a kinesis, o movimento para se obter certo resultado, seja esperado ou não, que tenha causa clara ou não, que tenha razão clara ou não. O ato é mais do que isso, e pode representar a energeia, e ter valor em si mesmo, como a contemplação aristotélica ou ainda a disposição de algum objetivo elevado na vida, como uma causa ou mesmo a “prática” da própria metodologia da Filosofia, argumentativa, que encerra valor em si mesma, enquanto se busca racionalizar sobre questões consideradas relevantes.

As ações involuntárias, por exemplo, como respirar, beber água, dormir, se alimentar são feitas com base no automatismo, do condicionamento biológico, das necessidades acusadas pelo mecanismo estrutural do corpo humano, mas ainda assim passam pelo devir, pelo filtro que definirá as formas de se beber água, o horário de se dormir, etc, a atender às exigências impostas, externas, mas inerentes à existência. Passam de uma forma diferente, com maior pressão, mas atuam dentro de uma mesma funcionalidade[18].

Entre o não-acontecido (a implicação) e o acontecido há um filtro, em um ponto de tensão, em que os recursos do mundo exterior e das próprias capacidades físicas se limitam e se concentram a encontrar a viabilidade para o que se busca nas possibilidades. A este filtro chegam todos as razões possíveis (no plural) e passa apenas o que se chama, aqui, de razão provável, não necessariamente a mais “influente”. Isto não significa que as outras razões não sejam razões ou causas, mas apenas o que o mental elege como a “primária”, ou provável, a mais ajustada à ideologia vigente, moral, ética e normativa. Se não houvesse algum juízo de valores, para além da pura racionalidade, como Rawls considerou ser possível, e também Davidson, poderíamos chamá-la de razão primária, um nome realmente simpático. Mas, não podemos, nem devemos. O “querer acender a luz” não pode ser uma razão para a ação, e talvez seja apenas a aversão ao escuro, ao desconhecido, ou o medo de fantasmas ou de espíritos do mal, de predadores, ou apenas não “querer não ser roubado” por algum “sujeito miserável”. Os juízos morais, que podem estar a privar a autoimagem de ser politicamente correto, por pensar tal “disparate” na igualdade social rawlsiana, apenas restringe a forma de pensar e atribuir ao ladrão o fugir com uma consequência inesperada. A desigualdade social nunca seria considerada como a causa, todavia, mas lá está ela, mas não só, a originar ladrões. A fuga do ladrão não seria pela descoberta de seu crime, mas pelo orgulho ferido ao fracassar em seu intento “profissional”. Ou não, talvez Davidson esteja mesmo certo. O que está em causa é: não é possível ter certeza de que uma única razão seja a causa da ação, nem mesmo um conjunto de razões seriam suficientes para justificarem a causa de uma ação, mas apenas um conjunto de causas mais algum grau de considerações externas (juízos estabelecidos, éticos, no mínimo) ao próprio agente, que interfere ao influenciar. Sim, a ideologia como parte ativa no processo de implicação, da ação e da explicação. Somente para indivíduos, pós-búfalo manco, dotados de consciência da consciência. Fosse hoje, Diógenes sairia às ruas, de dia, com uma lanterna, a procurar o homem pós-bufalo manco. E faria muito bem.

E, finalmente, chegamos ao grand finale, que é o modelo realmente sensacional (aqui sem ironias) em que Davidson pôde contribuir para superar as teses[19] antagônicas de que de (1) o mental é parte de um mundo regido por leis estritas e (2) o mental é anômalo e escapa a tais leis. Eis que os eventos são, assim, registos tangibilizados de entidades não-abstratas, concretas, alocadas no espaço e no tempo. Dos eventos, existem duas derivações, também ontológicas, de descrições físicas e mentais. As descrições físicas, todavia, são dadas no mundo, compartilhadas e acessíveis a todos que presenciam ou saibam da ação. Um nascimento de uma criança, por exemplo, é uma descrição de um evento com data, hora e demais informações associadas. Mas, há, todavia, as descrições mentais que diferirão para cada pessoa: a mãe que gerou a criança e a carregou, por nove meses: o pai; os avôs e avós; a equipe médica e muito mais. Pra cada um destes, conhecedores deste evento, encerra em si uma descrição mental relativa ao nascimento.

É sobre esta separação e independência entre as descrições mentais e físicas do acontecido, ou seja, do evento, da ação, do ato, que existe algo que Davidson não explorou devidamente, nas relações do que emergirá como pensamentos individuais e pensamentos compartilhados e equalizados, a gerarem conteúdos mentais para além de si próprios.

Entre as descrições físicas e mentais, ele defende que tanto poderá haver leis de causalidades, correlacionais ou não, a buscar alocar os três princípios como válidos, ainda que contraditórios, em alguns arranjos. Mas, o que emerge daí, destas descrições físicas e mentais? Pode não haver, necessariamente, uma correlação entre estes, mas há sempre um espaço, ainda que vazio, a ser considerado, pois a descrição mental não é sempre a mesma que a descrição física, pois daí derrubaria a teoria do monismo anômalo, e tudo o mais. Um espaço entre algo privado (mental) e algo público (físico) é o que consideramos ser o que pode ser seletivo, acessível parcialmente, mas não necessariamente a todos. E isto, é, em si, o espaço em que a ideologia surge.

A ideologia, como um sistema organizado (causal) ou caótico (anômalo), é basicamente todas as crenças, desejos e vontades, e mais, compartilhados e comuns a todos. Desta interação, que ocorre em um espaço seletivo para quem divide a informação do registo do evento, e acumula-se como em um banco de dados, inter-relacional, cria uma vida própria em que emerge para o espaço público, ou físico, como uma pulsão de morte, e para o espaço íntimo, ou mental, como uma pulsão de vida.

O que ocorre não apenas neste espaço seletivo, mas em todos os espaços seletivos são as comunhões do que seja o desejável, o bem, o querer, mas também o que seja o indesejável, o mal e o não querer. São critérios, juízos e valores, atrativos ou repulsivos, passados pelo crivo individual e que se manifesta como coletividade, como a política entre iguais, entre os que comungam das áreas comuns, como se fossem as descrições funções como os condomínios. Assim, portanto, temos aí o ambiente compartilhado e otimizado em que surge a ética, os conceitos em que se produzem os critérios de convívio ideais, formatados pelas experiências e de forma extremamente dinâmica, pulsantes, sempre a evoluírem.  Eis aí Rawls a promover, como um síndico, sua ética utilitarista, a maximizar os condôminos em prol deles mesmos, e tratar “bem” os que estão fora, com um mínimo suficiente para que não venham invadir a área privada compartilhada e estragar a “festa”.

Quando esta ética busca emergir-se do espaço seletivo para o espaço público, o faz na forma de uma deontologia, de uma aspiração a ser uma máxima “universal” (sic), uma lei em que todos possam (e devem) se pautar. Eis aí Kant com sua ética do dever, dos imperativos categóricos a fazer disto algo “universal”, como se fosse possível ou viável.

Quando esta ética é introjetada no privado, no mental, é o que se chama de valores individuais, da moral em que se basearão todos os juízos racionais do sujeito. Eis aí Aristóteles[20] a promover sua ética das virtudes, a buscar a felicidade como bem último.

Eis que, historicamente, primeiro surge uma ética das virtudes, oriunda dos estados mentais, com pretensões individuais. Depois, surge uma ética do dever, dos estados físicos, com pretensões universais. Por fim, surge uma ética utilitarista, intermediária, com pretensões condicionalmente limitadas, com algum pendão de atender a um condomínio, apenas, preferencialmente neoliberal e com crenças na meritocracia, uma forma de religião capitalista. Portanto, a ideologia é, antes de tudo, a origem e a sede da Ética, enquanto ciência. A ideologia está em tudo, sempre, e de forma ativa. A Ética, nem sempre consegue tal presença. O que deveria, então, ser a “razão primária” da Filosofia?

Mas, a retornar ao tema central, as atitudes favoráveis e as crenças das razões primárias evocadas por Davidson, por não estarem na implicação, são formadas na explicação, mesmo nas ações mais vulgares, e se instanciam na racionalização, depois do acontecido, da ação, e retroalimenta todo este sistema ideológico que age tanto no individual quanto no coletivo. Esta é a aderência do humano, enquanto humano, para além do búfalo manco. Por isso, não se pode, nem se deve, dissociar as razões prováveis deste filtro, que é, essencialmente, ideológico. A ideologia está, maioritariamente, nas implicações.

Para enriquecer a construção conceitual, poderíamos, ainda, agregar ao conceito de evento o que Jacques Lacan denominou como o Real; ao conceito da descrição física agregaríamos o Simbólico (a ideologia aplicada ou a Ética Deontológica, Normativa, além das leis e toda a forma organizacional da sociedade e do mundo, com as leis científicas e as relações de causalidades, etc); e ao conceito da descrição mental, o Imaginário, em que a ideologia assume um importante papel, criativo, cognitivo, comportamental, social, político, etc, a ponto de configurar-se como parte significativa[21] de todos os conteúdos mentais do aspirante a indivíduo, principalmente a parte em que diz que todas as ações são mesmo suas, em última instância. Eis a morte definitiva da suposta estanqueidade davidsoniana, ainda que disfarçada, por vezes.

 

Parte IV | Conclusões acerca da Jornada Funcional do Agente

Além de Davidson, Anscombe também busca uma solução, mas antagonicamente, ao não tangibilizar o mental. Acertadamente, aposta nos processos linguísticos, mas desconsidera que os estados mentais, renegados por ela, se organizam conforme a mesma linguagem que ela prioriza, mas sem existirem, por lá, regras simbólicas, apenas o imaginário. Deste universo mental, ou “psicológico”, que ela optou por lutar contra (a partir de seus próprios estados mentais filosóficos), emerge a “fala”, que se insere nas entrelinhas da comunicação, através dos conceitos linguísticos. Ela, lamentavelmente, também está em loop infinito, como Davidson, ao renegar um papel de participação do mental no processo ideológico, mas se aproxima mais da ideologia do que ele, ao negar uma neutralidade às descrições ou eventos mentais, mas ainda de forma insuficiente, tacanha e suspeita. Ela se concentra no pensamento, na racionalização das descrições físicas, no simbólico, nas regras objetivas do mundo. Mais um búfalo manco, afinal.

Frankfurt, lamentavelmente, ficou atado às questões de movimentos, em si, do corpo, das causações e de forma ainda mais superficial do que Davidson. A forma da ação não deveria ser o foco, novamente, da Filosofia da Ação. Parcial, distante e incompleto.

Portanto, a conclusão é mesmo que as teorias acerca da ação são inconclusivas, mas não de todo reprováveis ou incorretas, que mereçam ser refutadas. Há, todavia, pela ausência conceitual da ideologia como parte ativa na ação, tanto na implicação como na explicação, uma necessidade de reposicionar o foco das teorizações e, assim, buscar alocar cada teoria filosófica sob determinado ponto de vista, restrito, mas não incorreto pois, afinal, foi defendido que o universal, e sua impossibilidade, não deve ser um objetivo a ser buscado.

Por isso, não há contrariedade ao abordar a obscuridade em determinado autor e, ao mesmo tempo, a validação de suas teorias, ainda que em linhas gerais, e limitadas a alguma parcialidade do Real, que remete ao Simbólico ou ao Imaginário, pois cada um destes é um “universo” em si, talvez sejam os mundos possíveis leibnitzianos, resta saber qual o melhor deles., afinal A ideologia, e apenas ela, é que dará a métrica necessária para se alocar as teorias da ação, e que aproximará, ainda mais, as Filosofias da Ação, da Mente e da Linguagem, como únicas e inseparáveis, como deveriam ser, desde sempre.

 

Bibliografia

G.E.M. Anscombe, Intention, Harvard University Press, Cambridge/MA, 1957, p. 106.

Aristóteles, Ética a Nicômaco, trad. L.F. de Souza, Editora Martin Claret, São Paulo/SP, 2005, p. 300.

K.B. Clark – M. P. Clark, «Emotional Factors in Racial Identification and Preference in Negro Children», The Journal of Negro Education, 19(3) (1950), 341–350.

D. Couto, Donald Davidson: subjetivo-objetivo. O retorno ao cogito, University of Porto Press, Porto/Portugal, 2018, p. 206.

J. Mahan, «Black and White Children’s Racial Identification and Preference», Journal of Black Psychology, 3(1), (1976), 47–58.

J. Rawls, Uma Teoria da Justiça, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo/SP, 1993, p. 708.

S. Miguens, «Identidade pessoal e posição original Rawlsiana», Revista Portuguesa de FilosofiaUniversidade Católica Portuguesa, 59 (2003), 139-170.

S. Miguens, Acção e ética: conversas sobre racionalidade prática, Colibri, Lisboa, 2011, p. 310.

 

Notas


[1]The discrepancy between identifying ones own color and indicating ones color preference is too great to be ignored. The negation of the color, brown, exists in the same complexity of attitudes in which there also exists knowledge of the fact that the child himself must be identified with that which he rejects. This apparently introduces a fundamental conflict at the very foundations of the ego structure. Many of these children attempt to resolve this profound conflict either through wishful thinking or phantasy-expressing itself in a desire to escape a situation which focuses the conflict for them. By the seven-year level the Negro child seems to be developing some stabilizing ideas which might help to resolve the basic conflict between his racial self-image and the negative social evaluation of his skin color.” Clark – Clark, «Emotional Factors in Racial Identification and Preference in Negro Children», art. cit., p. 350.

[2] A verdade é que não estavam fisicamente sitiadas, mas estavam mentalmente bloqueadas de se movimentarem e expressarem o que eram, manifestarem seu ethos, o que é muito pior, afinal. É como se este reflexo mental, de cerceamento compartilhado, estivesse a assumir a voz destas crianças e a falar por elas, a-racionalmente. Tais conteúdos mentais, por estarem nelas, por falarem por elas, ou por influenciarem o que elas falam, o que pensam e como agem, eram, todavia, delas? E nos adultos, eram deles tais corroborações para que a ordem estabelecida se mantivesse em pleno funcionamento?

[3] Visto que tudo na natureza ou na physis pode ser considerado eminentemente movimento, finalista e funcional.

[4] Ou seja, era algo que o poder simbólico, das normas que regem os Estados Unidos da América, já supostamente tivesse “exterminado” toda e qualquer diferença entre os antes considerados “diferentes” e passado a todos como legalmente “iguais”. As crianças que participaram, obviamente, nasceram inseridas em uma comunidade em que suas leis estabeleciam tal igualdade, como conquista oriunda dos esforços dos pretos, a duras penas, de forma sangrenta, por vezes e revolucionária, que levou a um estado de orgulho e da exaltação das características, na moda e nos penteados, na cultura e nas interações sociais dos pretos, que passaram a existir fortemente como expressão identitária e representatividade, não igualitária, todavia, mas legalizada e orgulhosa de si mesma. Tais crianças nasceram nestes tempos e, assim, ao menos sem os limites físicos impostos. Mas, ainda assim, eram filhas dos que viveram tais tempos segregados, da geração que fez a transição, pela luta revolucionária e profunda, sem estarem muito distantes deste passado.

[5]Statistically, it has not been proven from the limited sample that Blacks hold a negative self image of themselves, however, other positive implications have emerged between the thirty years. There are indications that Black awareness, Black history, the Black media, and the production of Black dolls in a positive image have had major influences in the new trend of a more positive Black self-image. The most significant and positive contribution is the fact that those children who own Black dolls identify more strongly with them than those who do not. This supports the hypothesis that the rise in Black awareness and the production of attractive black dolls has increased the Black’s self-acceptance and mental hygiene. This point should be stressed and each Black family should equipt their children with a Black male and female doll. Thus, it is essential to reinforce positive self-acceptance in the developing attitudes of young Black children.” Mahan, «Black and White Children’s Racial Identification and Preference», art. cit., p 53–54.

[6] Ao não haver compartilhamento deste ethos, ou seja, similaridades, o conceito indivíduo perde, em si, a significação semântica, e todo o sentido linguístico, portanto. O indivíduo é, portanto, sempre conectado, por algum aspeto.

[7] O mero e utópico “indivíduo”, o que se encerra em si mesmo, não deve ser considerado suficiente como ponto de partida analítica para uma ação, pois todos os seus “conteúdos” (como a intenção, de Davidson) ou a “linguagem” (como a de Anscombe) não são, necessariamente, seus, mas sim algo que apenas existe relacionalmente. Como poderia, então, a Filosofia da Ação não olhar para tais relações e alocar no indivíduo todo o necessário para agir, com todos os critérios exclusivos alocados neste último “elo” da cadeia de agência? Há algo a ser chacoalhado para se perceber o que está “oculto”.

[8] E que somente assim, a partir destas conexões expostas e definidas, referencialmente, pode ser chamado de indivíduo autônomo e deliberativo, em diferentes graus de intensidade e comprometimento, mas que responderá sempre em função desta posição, a ser uma parte funcional para si e para, ao menos, a realização de ações que visarão não somente a um objetivo, mas também à manutenção de sua situação.

[9] Qual o sentido, afinal, para que existam os grupos sociais se não o da sobrevivência individual, em que existam vantagens competitivas para o sujeito que se transforma no indivíduo que se transforma em agente, ao ser funcional e se “objetificar”, em prol desta funcionalidade gregária? Não deveriam existir pontos isolados no espaço, para além da Geometria Euclidiana, mas sim grafos, sistemas conexos de pontos em que são estruturalmente relacionais e funcionais. A Filosofia da Ação aspira ser, todavia, a Geometria Euclidiana, a aspirar pontos isolados e batizá-los como “individualidade autônoma de deliberação”. Ou, talvez, apenas alguns filósofos da ação.

[10] Mesmo o mais egoísta dos sujeitos precisa se relacionar, de alguma forma, com entidades externas a si, desde que não seja um astronauta ermitão isolado de todo o contato humano direto, a viajar no tempo e no espaço em sua nave rumo ao desconhecido. Apenas assim, não estará subordinado a nada para além de si e sua sobrevivência. Mas, afinal, se tiver algum dispositivo de comunicação e, por algum motivo objetivo ou subjetivo, sentir necessidade de se comunicar com alguém, já adentra a uma estrutura relacional que exigirá dele uma perceção de que precisará agir para que esta comunicação seja possível e não lhe desprezem suas mensagens. Precisará da empatia, da linguagem, dos conteúdos. Precisará estabelecer e sustentar o diálogo. Sim, viver pode ser angustiante, conforme os existencialistas consideram, mas é mesmo pela angústia da sujeição do dasein ao ente “subjetificável”, em que a utópica projeção do ser no mundo não se dá, de facto, mas é dada sob certas condições determinadas e determinantes, e a se afastar da subjeção mas ainda estar preso a ela, sempre, contrário às crenças objetivas em que o dasein mostra repugnância, que tira a possibilidade de uma individualidade como se aspira, intimamente, de ser algo sem ser nada mais. Eis que os existencialistas são os que mais lotam, provavelmente, os divãs psicológicos em busca de uma superação conceitual. Buscam, em verdade, e repito, apenas supostamente como alegoria argumentativa, sem dados que sustentem esta afirmação, uma cura para o que não é uma doença, mas sim uma obscena inconsciência ideológica, e nada mais.

[11] A depressão, elevada à condição do mal do Século XX, conforme o Plano de Ação de Saúde Mental Abrangente da Organização Mundial da Saúde (OMS) 2020-2030, acedido em 22 de janeiro de 2022 no link https://www.who.int/publications/i/item/9789240031029. Também como a mais provável doença de ser também, no Século XXI, o mal do século, faz parte do que é considerado como doenças mentais, que respondem por 13% de todas as doenças existentes e 1/3 das patologias não-transmissíveis. E pressupor as origens deste mal não é evocar nenhuma análise psicológica, astrológica, esotérica ou de autoajuda, pelo contrário, é justamente observar para a dissonância cognitiva entre o modo de ser e o modo de existir de uma funcionalidade que passa a ser ideologicamente exacerbada e leva atos em que se busca uma individualidade extrema que é suposta não existir, de forma saudável e natural e, assim, o indivíduo fica tão aderente ao sistema vigente estabelecido, da ordem simbólica, que perde sua própria identidade, imaginária, pela desconexão racional com a realidade. A ideologia, ignorada e desprezada, é que leva a tal condição, mas com a convicção de o indivíduo ter consigo a responsabilidade de suas decisões, que nunca foram suas, exclusivamente, nem nunca será. Nem indivíduo, nem autônomo, enquanto dasein.

[12] Alguns, para não ter o “seu” dasein desintegrado, afinal, optam pela morte, ao cometerem suicídio. Eis que é preciso perceber não a ação, em si, do suicídio como primordial, mas sim o ato de agir. E assim podemos dizer que não é preciso perceber o suicídio, em si, mas sim as razões de viver. É por aí que julgo ser o caminho verdadeiro e teleológico da Filosofia da Ação, pois a ação deveria ser o ponto central e de partida para todos os conceitos de estudos, principalmente da Filosofia, como um todo, em lato sensu.

[13] Eis, aqui, o anticlímax comum em toda a Filosofia da Ação, sempre, ao partir da pressuposição de uma existência de um “indivíduo autônomo e deliberativo”, tal qual Rawls o considerou ser possível a buscar um conceito de justiça, sob um salvador e instrumental véu de ignorância que supostamente isentaria a deliberação das condições de vida ideal dos interesses próprios, supostamente parciais, injustos ou talvez, no extremo da falibilidade humana, comunistas. Mas isto não será fruto de análise aqui, visto a limitação imposta. O anticlímax ocorre ao considerar a ação como universal, como o próprio universo que, como toda ação suposta pelos filósofos, surge de um buraco negro, do nada, da completa inação, da mais profunda e estática zona filosófica, e que Davidson denominou como evento, como se conteúdos mentais emergissem separáveis, isolados atomicamente, estanques e sem origens conhecidas e fora de toda a gama de hierarquia possível de constituir algo diferente do “sujeito autônomo e deliberativo”, uma das melhores das ilusões que a Filosofia conseguiu produzir, afinal, mesmo antes do advento do Power Point como forma de uma hercúlea tentativa de reificar a expressão semântica das ideias estanques, capazes de fazerem Sócrates se remexer em seu túmulo, a partir de uma suposição de um reducionismo operante e suficiente em tudo o que há, para além da oralidade interativa da maiêutica. Pobre Sócrates!

[14] A banalidade do mal está, assim, também inserida na natureza, e entre as próprias “vítimas”, tal qual acusou Hannah Arendt e foi, por isso, atacada publicamente em sua teorização acerca do julgamento de Adolf Eichmann, que acompanho para a escrita de artigos para a revista The New Yorker, e que depois evoluiu para seu livro Eichmann em Jerusalém. Afinal, tanto as vítimas quanto os algozes são animais, humanos ou não, e assim, acima de tudo funcionais, inseridos na natureza, que é finalista e determinista.

[15] E há, na ideologia capitalista, razões em formas de produtos e serviços para tudo, mas sempre de acordo e em direção à própria aderência à ideologia, como se esta tivesse – e tem – um fim em si mesma. Neste caso, o búfalo manco poderia até contratar um life coach para atingir seus objetivos mais arrojados, e assim “passar ao próximo nível”, pelo seu novo mindset, a partir das superações das “crenças limitantes” que apenas o CrossFit© é capaz de prover, com banhos de imersão em água e gelo, a moda do momento.

[16] Aristóteles colocou um ponto superior, eterno e imóvel como objetivo inalcançável, motriz em puro ato, para justificar a razão do movimento, do agir, pela diferença, a partir de uma perceção da falta, a levar ao desejo platónico do amor de Eros. Tal perceção é, todavia, a causa primária (e funcional) aristotélica para a ação humana. Esta função, todavia, é o que estamos a buscar perceber nestes argumentos, que aspira pretensiosamente a ser filosófico, mas que se saciará, em verdade, se for apenas realista.

[17] De todas as razões possíveis, Davidson chega à empolgante definição de “razão primária” ao atribuir valor de verdade (aos impressionantes níveis de 100%) ao “querer” (atitudes favoráveis) e às “crenças” na efetividade das ações que serão empreendidas. O detalhe é que o “querer” e a “crença” são identificados por processos não estabelecidos, para além de certos juízos básicos supostos existirem, claramente, para dar todo o valor de verdade que corresponda aos 100% atribuídos. Eis o grande esforço que ele busca fazer a separar conceitualmente razões das causas.

[18] Daí, o individuo pega um copo com água sobre a mesa e levanta o braço em direção à boca, para que possa beber. Há diferença entre este levantar de braço para se beber água com o levantar de braço para sinalizar que virará à esquerda, ao dirigir? (Se sinalizo, ao levantar o braço para virar à esquerda, é para comunicar a alguém que farei algo, e isto é estabelecer uma forma de expressão, de declaração intencional). Mas, afinal, por que preciso avisar? Para que não tenha prejuízos material em provável colisão? Por algum automatismo que me leva a fazer isto até quando não há ninguém por perto? Por temer que alguém se machuque? Ou por que nada disso é importante, e apenas quero chegar ao destino o mais rápido possível, sem contratempos de nenhuma natureza que possam me impedir? Querer virar à esquerda, afinal, não é uma ação isolada, assim como apertar o interruptor, ou beber água.

[19] Couto, Donald Davidson: subjetivo-objetivo. O retorno ao cogito, op. cit., p. 49.

[20]I’m old, not obsolete” foi a famosa frase viral do exterminador do futuro, personagem cinematográfica de Arnold Schwarzenegger, e que Aristóteles poderia falar, da mesma forma, de forma igualmente eficiente, caso pudesse retornar do limbo vislumbrado e descrito por Dante Aliguieri, destino daqueles que não são maus, mas também não estão inseridos na ideologia católico-cristã, ou seja, não são bons.

[21] Para os cristãos católicos, por exemplo, o nascimento de Jesus foi o evento central. A descrição física foi enriquecida com os dados e condições plausíveis, pela época, ou não, como a manjedoura ou a virgindade de sua mãe, atualmente dada como improvável ou mesmo impossível. Mas, afinal, a descrição mental é algo que remete à chegada de um salvador (mas, salvar de quê? E acarretam novas narrativas enriquecedoras), de um messias (enviado por quem?), um mensageiro (qual a mensagem?) ou mesmo um deus, a realizar algo superior para a humanidade eleita, sua personificação e libertação do sofrimento. Os espaços entre estas descrições, físicas e mentais, não ficaram restritas à época e aos contemporâneos. A história seguiu adiante, no tempo e no espaço com estas informações, foi registada e escrita, difundida e cultuada. Daí o compartilhamento deste evento (pela fala e pela linguagem) e estas descrições físicas (pelos Evangelhos e pela oralidade não-neutra, e portanto sem a necessidade relacional com a “verdade”) fez surgir o que se chama de ideologia cristã, em que conceitos como o bem, o mal, o certo, o errado, o justo, o injusto e tudo o mais emergissem para uma Ética em que o próximo seja um fim, tanto quanto a si mesmo, dentre tantas riquezas cognitivo-comportamentais que há nesta ideologia que emerge para uma Ética do dever cristão (que Kant, inclusive, tangenciou em seus disfarçados imperativos, de católicos a categóricos, muito próximos)  compartilhada e aceita, em que normas emergem desta, dentro de uma organização cristã, como a Igreja Católica e que se posiciona, dentre tantos, contra o aborto, adultério e outros tipos de constrangimentos denominados pecados, aos menos para os fiéis. Para além disto, há a interiorização da ética, introjetada, em cada sujeito, no que tange à moral cristã, que é individual, contínua e que forma uma ideologia atuante em cada ação que efetua na vida, ou busca efetuar, ou justificar suas “razões primárias” (sic) para o agir. Eis a dimensão moral do agente estabelecida, nutrida pelas ideologias e sempre a se consolidar fortemente nas bases comuns. Talvez, seja por isso, que o indivíduo que tenha ligado o interruptor, acendido a luz, iluminado a sala e que, finalmente, fez o ladrão fugir não o perseguiu e o matou, pois residia nele a piedade cristã, um valor pautado na ideologia, que a partir do evento do nascimento de Jesus, e todos os demais, relativos a isto, desde então, ganhou vida própria e comanda as ações tão fortemente e mais do que se possa imaginar. O ladrão Barrabás, afinal, foi também perdoado.

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