servidão voluntária na contemporaneidade - fantoches sob os dedos
Filosóficos Medieval

A servidão voluntária na contemporaneidade

Abstract: a servidão voluntária na contemporaneidade

Ao abordar a essência filosófica de Étienne de La Boétie, da obra Discurso da Servidão Voluntária, em especial à estrutura que leva e mantém tanto a servidão voluntária como a manutenção do ‘status quo’ do poder não só político, mas além deste, como o poder econômico das grandes corporações globais. Eis as questões centrais: Será válida esta servidão voluntária na contemporaneidade, muito além das esferas políticas propostas na obra? Este livre ensaio propõe o estudo das teorias de La Boétie sob a ótica dos tempos atuais.

 

 

Introdução

O Renascimento foi caracterizado por questões centrais muito relevantes, em todas as esferas do conhecimento, e não somente a filosofia, mas também as artes, a política, as ciências e muitas das questões sociais e econômicas vigentes à época.

A transformação se fez presente e a mentalidade das elites foi redirecionada a uma área até então fechada pelos antigos sistemas teológicos, principalmente, e também do poder político que o legitimava, e dele se aproveitava, e vice-versa. Mas e quanto ao povo, às massas? O que se pode considerar de uma praxis filosófica por parte da base piramidal social?

O Renascimento foi um movimento intenso, rico e eminentemente ocorrido nas elites letradas e com acesso às mesas mais abastadas nas quais podiam compartilhar o saber e experimentar uma nova forma de conhecer o mundo e o que ele representa. As massas, como sempre, estiveram à beira das grandes transformações, como coadjuvantes da história ainda que por vezes possa parecer que foram elas as responsáveis pelas revoluções, sem que não houvesse nenhum tipo de provocação ou gestão da inflamação dos levantes populares, e isto não pode nem deve ser ignorado.

 

A partir do Renascimento…

O mundo mudou, e está a mudar sempre. O rio a passar nunca é o mesmo pela essencial mudança a ocorrer a olhos vistos.

As comunicações atuais diferem absurdamente, pois são instantâneas, em massa, ou até mesmo segmentada conforme grupos de interesses, quase de livre acesso a todo o planeta desenvolvido e organizado em nações independentes. Cada qual consegue se conectar às fontes de informações que escolher. Há o poder de escolha, o que não significa que as escolhas sejam todas puras e disponíveis. Ainda assim, as duas questões centrais do Renascimento ainda estão plenamente vigentes. A saber.

A primeira questão é a centralidade do indivíduo, ao invés de uma centralidade divinal. O indivíduo passa a receber o destaque. As sociedades, inclusive, ao decorrer dos séculos, levaram tais questões da individualidade para além das questões nobres como a filosofia, artes ou ciências, por exemplo. Há inclusive uma exploração comercial desta individualidade quase que materializada por tal sacralização da individualidade, do surgimento de um certo egoísmo oriundo do enaltecimento do eu de sucesso, superior e com destaque social. O indivíduo ainda é o centro, pois assim rege a economia – e os satélites que orbitam o indivíduo passaram a serem quase que infinitos, dada a multiplicidade que a segmentação produziu.

As redes sociais digitais são um termômetro e montra para esta afirmação, sendo um marco dos tempos contemporâneos em que a vida social foi levada à criação de um supereu, na qual a projeção do ego se revela um ponto a explorar a individualidade e a rejeitar antigos valores que não sirvam para enaltecer o indivíduo renascentista, pretensamente dotado, ou em busca de virtudes aristotélicas, a se realizar na felicidade almejada.

A era do indivíduo pode estar no seu clímax distópico, ou ainda possa haver espaço para ampliar – mas é impossível negar que o conceito de indivíduo que teve origem no Renascimento ainda existe, embora tenha sofrido mutações e seja atualmente o maior dos tiranos do próprio homem, que de certa forma na contemporaneidade alcança um status até superior a deus, para determinadas correntes de pensamento e sociedades. O indivíduo sacralizado, mas ainda indivíduo. O homem deixou de ser um microcosmo e passou a ser absoluto, pleno de si, autossuficiente e sem necessidade de definição externa. As opções de definições individuais – em especial à identidade social – está em franca expansão para a máxima liberdade[1].

A segunda questão é a mobilidade do homem. O homem como ser evolutivo ou plástico, moldável, que pode se beneficiar de sua capacidade diferenciada racional para assumir diferentes funções no mundo – a favor ou contra o progresso, à paz e a igualdade. A mobilidade renascentista que possivelmente estava nas possibilidades de o homem emergir em substituição ao pensamento teológico medieval, frente ao resto da criação e ao universo, foi eficiente na prática.

A praxis oriunda do renascimento, em especial a científica, nos levou até os dias atuais, em que o homem não somente causou impactantes transformações econômicas e sociais no planeta tanto quanto consegue ultrapassar os limites planetários e singra uma corrida espacial para a busca de novas possibilidades exploratórias no espaço. Esta praxis atual é tão distante da contemplação clássica ou medieval, mas igualmente potente no movimento incessante do homem, ainda imerso em uma busca que o leva cada vez mais à frente.

Em síntese, indivíduo e movimento em uma praxis que revalidam e reforçam os pontos mais relevantes do renascimento. E daqui parto para a análise da questão central da servidão voluntária trazida por La Boétie.

 

A servidão voluntária

A filosofia de La Boétie parte de um pressuposto de que o homem possui uma predisposição à servidão, e aceita a dominação como uma característica intrínseca de seu comportamento passivo. A partir desta proposição, La Boétie alcança as premissas necessárias à servidão voluntária.

Esta propensão, em La Boétie, surge como um desejo obscuro, oculto, íntimo e opera tal qual uma pulsão inconsciente à servitude, ao desejo de obedecer. Talvez haja uma necessidade de reconhecer algo superior a si, que complete ou oriente a perceção de existência, e leve ao movimento, à ação em busca de algo, talvez seja também a origem da infelicidade inerente do ser humano, que na contemporaneidade será rememorada[2] na filosofia.

O facto é que o homem se mostra obediente pelo hábito praticado desde sempre. A educação infantil é assim realizada. Obedecer é que faz a criança ser premiada, ser aceita e sentir-se mais amada – o mesmo amor vindo de uma instância superior. No seio do lar, a criança é colocada como uma pretensa servil de um poder maior à espera de uma recompensa pelo seu comportamento esperado – e punida quando pretende questionar a autoridade adulta. Sem desejar entrar nas questões educativas, pode-se plenamente educar com liberdade sem restringir a capacidade crítica da criança.

E assim surge um problema real: educar com liberdade é possível, mas não provável. Possível apenas para adultos esclarecidos, dedicados e com características emocionais que possa levar a cabo tal projeto educativo. Não provável pois somente uma minoria poderia estar enquadrada nesta possibilidade. Assim não poderá ocorrer tal possibilidade, exceto nos outros recintos educativos, como escolas e/ou universidades. Será?

Nas escolas, a incluir as universidades, em sequência, ocorre o mesmo ao premiar o aluno obediente e punir o aluno contestador. O termo ‘planta’, utilizado, serve perfeitamente. Aquele que possui comportamento questionador é visto como um problema e não é incentivado a desenvolver-se como crítico do sistema. Talvez suas notas não serão tão boas como os que se encaixam nos padrões, nos moldes desejados. E assim o lente repete os padrões que o indivíduo possui em casa – e o paradigma da obediência se institui.

Como a minoria dos pais enquanto educadores terão sucesso, também a minoria dos lentes terá envergadura para identificar um indivíduo que deseja trilhar seus próprios caminhos, que deseja se descolar das massas, passar pelas próprias experiências e atingir um grau maior de liberdade. Mas o facto é que o homem é educado para ser obediente desde tenra idade, na dinâmica de educação baseada na obediência e a resultar na servitude adulta.

Ao homem servil, adulto, cidadão, a estrutura de poder do líder (democrático, monárquico ou tirano) aproveita e cria em torno de si um espectro de mistério, pois o povo não conhece pessoalmente ou intimamente o líder, mas sim sua representação, sua imagem, que pode ser apresentada conforme melhor lhe aprouver a quem obedecerá passivamente.

Essa imagem projetada é sempre superior e remete o cidadão a uma condição de inferioridade inconsciente tal como no seio do lar, quando criança, tal como impossibilidade de questionar, tal como na educação formal que recebeu, ou em toda a estrutura social e econômica em que se enquadra. A servitude mantém-se ativada inconscientemente, em todos os aspetos da vida cotidiana. Punição ou Recompensa que se mostram sempre presentes, de forma excludente, como resultantes das ações.

E com isto, a estrutura de poder oferece a distração[3] para evitar a conscientização sobre a condição subserviente do homem. O poder constituído deseja manter-se no poder sem grandes obstáculos a resistir suas ações. O povo fica adormecido, sob o véu da servidão.

Outro ponto é o controle atomizado da estrutura funcional de poder, que leva o controle ao nível da individualidade, tal como uma teia de aranha que a partir de um ponto central se expande até a periferia da área. A divisão social é obtida pela estratificação – seja por uma hierarquia instituída para pulverizar o controle, e maximizar a eficiência do controle social, a estabelecer um sistema piramidal em que o líder atinge a todos pela sua teia instituída de comandos.

E assim, para La Boétie, o homem é um servil voluntário, ainda que inconscientemente, que se deixa inserir e manter em uma hierarquia servil e inelástica. Mover-se socialmente é possível, mas ainda assim dentro da servidão e da estrutura instituída.

 

A servidão voluntária na contemporaneidade

Se pudéssemos considerar que, no mundo atual, o poder está diluído entre o que entendemos como governos e grandes corporações financeiras globais, como seria a estrutura de poder e servidão?

Tomemos, por exemplo, a vida social no Estado de Direito. O cidadão possui direitos e deveres – paga seus impostos, obtém segurança, tratos da saúde, direito sobre sua vida, direito às suas propriedades e tudo o mais. Gera renda ao produzir riquezas e é descontado em impostos e outras obrigações, mas algo lhe sobra, e assim consegue sobreviver. Suas ações laborais são recompensadas com dinheiro. Pode votar, escolher seus representantes e possui até o direito de ser um destes líderes, caso seja capaz. Possui mobilidade social, ainda que limitada. É um indivíduo com a mobilidade renascentista, sem dúvida.

Mas, estre mesmo cidadão, nos tempos atuais, não é servil apenas no espectro político. Busco retomar o tema das redes sociais digitais, na qual sua individualidade se insere em um sistema de enaltecimento das individualidades, por diversos meios que não cabem a este estudo, mas o facto é que o indivíduo participa “voluntariamente” das redes sociais cedendo seus dados, seus sigilos, suas nuances comportamentais e emotivas, suas informações pessoais, desejos e pretensões.

O servil cidadão não compra um acesso, pois é “gratuito”. O produto é o próprio indivíduo que é vendido a outras corporações e passa a ser servil de um massacre comercial através de peças de marketing que o alcança por todas as formas possíveis de interação digital. A servitude é, portanto, generalizada. O circo também é a isca, pois os conteúdos distraem, anestesiam e geram dependência quase viciante nos meios digitais.

E, assim, as grandes corporações ganharam poder até maior e mais abrangente do que os meios políticos, visto as recentes influências das redes sociais nos resultados eleitorais, em diversos países em eleições e referendos.

Tal como na política que o cidadão é um produto moldado (indivíduo com mobilidade e plasticidade) para ser um servente, esta servidão se estendeu até as grandes corporações, que usou da estratégia e se fizeram emergir como grandes fontes de poder, até mesmo mais forte do que as instituições políticas, em muitos casos.

Assim, percebe-se que a servidão voluntária não só ainda existe, como é explorada e intensificada desde os tempos imemoriais da humanidade.

# servidão voluntária na contemporaneidade

 

Bibliografia: A servidão voluntária na contemporaneidade

La Boétie; Discurso sobre a servidão voluntária, Antígona, 2019. ISBN: 972-608-013-8 (Tradução e prefácio de Manuel João Gomes. 4ª edição.)

Pico Della Mirandola, Giovanni – (1496); Discurso sobre a dignidade do homem, trad. portuguesa Maria de Lourdes Ganho, Edições 70, Lisboa, 2006

Hegel, G. W. F.; Fenomenologia do espírito (1807), trad. francesa Jean Hyppolite, Aubier, Paris, 1941

Reale, G. História da filosofia, 3: do humanismo a Descartes / G. Reale, D. Antiseri; Tradução de Ivo Stomiolo – São Paulo: Paulus, 2005 – Coleção História da Filosofia


Notas: A servidão voluntária na contemporaneidade

[1] Em especial na liberdade em nações em que os direitos humanos sejam minimamente respeitados, a incluir a justiça social para minorias, por exemplo.

[2] A consciência infeliz, trazida por Hegel.

[3] Panem et circenses, a política oriunda do Império Romano que prezava por esta forma de manutenção do poder, que deixava o povo dependente da distração e apático em relação aos reais problemas comuns a todos os habitantes, relacionados com soluções políticas que não eram satisfatórias.

A servidão voluntária na contemporaneidade: conteúdo protegido.

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