O mais interessante nas sessões de clonagem e mapeamento existenciais é que nenhuma delas é típica. Por isso, não poderíamos afirmar que Aline estava ansiosa.
Pois não há coisas típicas quando estamos a lidar com universos individuais.
Cada qual é único, e por isso as sessões são sempre intelectualmente excitantes.
Não é possível responder antecipadamente nada do que o candidato ao mapeamento quer saber. Somente depois, pois só assim podemos nos debruçar no
modelo de seu clone existencial.
Justamente por isso: cada um é um universo, único e complexo. Assim foi com Aline.
Por isso: Aline não poderia estar ansiosa, à partida…
Pergunto, logo no primeiro contato, sobre certas coisas de sua vida, e compartilhou suas dificuldades. Queria que eu lhe disse algo. Não pude dizer. Expliquei a ela, e ela se convenceu.
Fez o seu mapeamento, e enviei para ela. Me disse querer agendar uma sessão, e assim fizemos, para poucos dias depois.
Naquele dia agendado, Aline havia me enviado uma mensagem cinco horas antes de nossa sessão.
Dizia que estava pronta, e a aguardar. Poderia parecer ansiedade, mas nunca vou pelo caminho destas tipicidades, como disse.
Pois, para a seita da autoajuda, tudo é ansiedade.
E viva a pessoa ansiosa! Sofre de um “mal” que sempre justifica qualquer coisa…
Se o sujeito é gordo, é automaticamente ansioso. E por aí vai. Ansiedade está ainda nas trends das tretas healings da vida coachiana, assim como autossabotagem e vitimização. Haja paciência para a autoajuda.
Aguardei a hora exata para entrar na sala virtual em que ela estava, pois estava a trabalhar em uma publicação com o prazo apertado. Ela havia entrado na sala virtual uns trinta minutos antes, pela mensagem que recebi do software.
Como disse, não considerei ansiedade. Fujo das convenções como o diabo foge da cruz.
Não penas fujo, mas procuro o detalhe dentro do todo. Por isso, o mapa, que me dá o todo da pessoa. E depois sio a vasculhar os detalhes
que a torna única. Lá estão as questões que mais importam, sempre.
Por isso não considerei nada, e começamos a conversar sobre ela, seus grilos e aspirações.
Aqueles primeiros minutos são os preciosos momentos em que estabelecemos a presença mútua e nos conectamos.
Pois só com a presença faz com que se haja a confiança. E só com a confiança é que o diálogo emerge, como deve ser.
Mesmo com um oceano a nos separar, literalmente, pude olhar nos olhos dela, pela webcam, e perceber que era mesmo aquilo que ela queria, e
que ela precisava.
Como disse, não era ansiedade, nem nada assim, era mesmo solidão. E incompreensão.
Ansiosa? Nada pode ser tão simples assim…
Ela precisava ser ouvida. Precisava de um anteparo, pois só assim que o eco se dá. Você grita num vale montanhoso e a onda sonora que é o
seu grito bate nos anteparos montanhosos e retorna para você. E você se escuta.
O outro. O anteparo é sempre o outro. O pequeno outro. Mas também o grande outro. É preciso um outro, e poucas pessoas o tem, verdadeiramente.
Algo tão simples, tão singelo, e tão raro de se encontrar. Tocar uma alma é ser um anteparo para ela, e não um mero invasor. E isso é mesmo belo: ser anteparo.
Pois Aline é casada, tem filhos e uma vida estável, e bem arrumada, sem restrições, mas nunca conseguia conversar sobre ela com ninguém que conhecia, pois não a entendiam.
Tentava expressar o que havia em si, mas nem ela mesma conseguia. Faltava-lhe um anteparo. E fui este anteparo, naquela hora em que tivemos juntos.
Perguntei a ela, logo após esta primeira fase mais tensa de nossa conversa, depois de quebrar o gelo, por que tanta urgência em falar comigo.
E veio a resposta…
– Leandro, quando você me enviou a mensagem de confirmação, me escreveu que iríamos trabalhar sobre o meu abismo. Me disse que havia uma distância entre os meus modos de ser e de existir. E, finalmente, percebi essa minha dualidade. Sempre foi sobre isso que precisava perceber. Sou uma e outra, alternadamente, e nem sempre estamos juntas.
Assim, estabelecemos logo um caminho para a sessão, e a senti rapidamente aliviada, sem a tensão inicial, e a ter seu anteparo em mim, nas suas alegações. Estávamos ali, a falar de algo que ela não conseguia expressar com tanta naturalidade. Mas estava a se soltar, a desabrochar-se como ser dual, a oscilar entre toda a sua dimensão existencial.
Permitiu-se ficar vulnerável ao conhecer sua própria vulnerabilidade.
Não fomos pelo caminho da ansiedade. Que se dane a ansiedade e todas as convenções que determinam alguma doença para darem logo alguma solução de cura.
Não há doenças, apenas incompreensão. E, também por isso, não há cura, mas sim conhecimento das coisas como são, a começar pela própria dimensão da individualidade.
Mesmo que estivesse ansiosa, que mal há nisto, realmente?
Ao final da sessão, Aline não percebeu o que ela é. Mas percebeu algo ainda melhor: percebeu o que ela não é. Percebeu que ela não é o que querem que ela seja. Saiu com algo a dizer, e a expressar.
Pois, o que somos, somos apenas no instante em que percebemos ser. Mudamos sempre, constantemente. O que não somos, é também uma referência mais confiável. Por isso, é preciso quebrar logo certas ilusões – estas ilusões que ninguém quer quebrar. Por isso, a dificuldade em lidar com a individualidade. Muitos optam pela autoajuda, que a tudo responde.
Ela percebeu que não precisa sempre se adaptar à sua estrutura, mas que será mais fácil para ela se assim o fizer.
Mas não é uma adaptação tola, ingênua e incondicional. Se adaptará quando quiser e conscientemente, e somente pelo tempo que lhe for necessário.
Ela está a retornar, finalmente, ao jogo da vida. Estivemos a prosseguir com mais algumas sessões, e tudo foi ficando mais às claras.
Mas, já há uma diferença nela no jogo que está a jogar. Agora ela começou a perceber as regras, os oponentes e os parceiros. E por isso começou a ter o prazer com as duas Alines que habitam nela.
Ansiedade? Nunca. Pois, ela demorou três meses para finalizar o seu mapeamento, que geralmente é feito em poucos dias.
Não estava ansiosa, mas sim faminta e sedenta pela vida que julgava não mais existir para ela.
Aline está a jogar, e já a vencer algumas partidas.
E isso está a ser o melhor.
Este relato será publicado também na página do Leandro Ortolan, no FaceBook.