Bruna não queria ser tocada - segredos clonados
Existência Segredos Clonados

Bruna não queria ser tocada

– O que é ser normal? Eu não consigo ser tocada.

Essa foi a primeira pergunta que Bruna me fez. Anotei esta questão logo na nossa primeira sessão individual de mapeamento existencial. Bruna estava angustiada.

Sua angústia era o resultado de dois anos de uma psicoterapia na qual a profissional que a acompanhava analiticamente insistia em apontar para ela uma normalidade a ser alcançada. Segundo ela, Bruna deveria alcançar a felicidade.

E, ser tocada, deveria ser encarado, segundo a profissional, como algo normal e necessário para ser feliz.

Bruna até desejava esta normalidade, mas não conseguia tê-la. E frustrava-se mais e mais. Pois, afinal, Bruna não entendia mesmo o que era este normal.

Assim, tivemos em nossas sessões dois “problemas” a serem abordados.

O primeiro era sobre o conceito de normalidade, causado pela profissional que supostamente ajudaria ela.

O segundo era a incapacidade que Bruna tinha de ser tocada por ninguém. Um simples esbarrão ou uma aproximação mais brusca a deixavam completamente desconfortável.

Ao ser apresentada para alguém, os beijos nos rostos era um suplício. Apertar as mãos, igualmente. Não queria ser tocada.

Nas sessões pós-mapeamentos, invariavelmente, o que são primeiro trabalhados são os conceitos. Pois, é preciso perceber o que é, para cada um que chega, o que significa, por exemplo, “quero ser feliz”, “quero ser normal” ou “quero deixar de sofrer”.

Nunca isto quer dizer a mesma coisa, para cada um que diga isso para mim.

O conceito da normalidade, por assim dizer, é quase presença certeira nas sessões iniciais.

Pois, quase todos que chegam acabam por se acharem “anormais”.

Sempre a tal da normalidade…

E sentem-se assim por terem aprendido assim, por alguém ter-lhes dito isso, desde tenra idade.

No caso da Bruna, foi sua própria psicoterapeuta que havia lhe reafirmado isso. E ela introjetou em si esta anormalidade diagnosticada pela profissional que estava lá, a lhe dizer o que fazer, e como fazer. Obviamente, “deu ruim”.

E, em algum momento, a questionei…

– Bruna, é anormal ser tocada?

– Sim, é sim.

– Você se sente anormal?

– Sim, me sinto assim.

– Pois, então, se alguém desejar invadir seu espaço, ou seu corpo, seria anormal permitir isto? O normal seria deixar que todo invasor pudesse invadir você e seu espaço?

– Não, neste caso seria normal não deixar ser tocada ou invadida, pois neste caso eu estaria a me proteger.

Pronto. Essa foi a deixa. Sua proteção foi a deixa.

A questão não era mesmo ser tocada, mas sim ser invadida. Estava a ser proteger. Ou estava a proteger algo mais? A questão era descobrir o que ela estava a resguardar?

Pois, a bem da verdade, ela não tinha objeção a qualquer toque, mas sim à invasão.

Foi preciso trabalhar isso nela, pois havia duas pessoas, sua mãe e sua tia, que lhe tocavam sem nenhuma restrição, e ela sentia-se bem com elas, e nestes carinhos delas se refazia da necessidade que todos nós, humanos, temos em relação ao afeto.

O que é “normal” para todos nós, ao ponto de nos sentirmos solitários sem um afeto, um abraço, um aperto de mão. É preciso alguma afirmação sensorial humana para que possamos nos perceber vivos, afinal.

Desconsiderar a perspetiva é sempre um erro que sai muito caro…

Assim, Bruna era “normal”, tal qual “todos nós”. Mas, voltemos à temática da proteção.

O problema de Bruna era sobre a invasão de si própria. E estava a tentar proteger algumas de suas entradas. Mas, quais eram suas barreiras? O que estava a construir como defesas?

Assim, fomos ao segundo ponto: por que razão Bruna não queria ser tocada por estranhos?

E, novamente, ela manifesta uma ideia obtida nas sessões com a mesma profissional, de que havia algum trauma escondido nela, na qual poderia estar esquecido, sublimado ou qualquer coisa freudiana assim colocada.

Mas, em todo o tempo em que estiveram em sessão, nada de relevante surgiu em Bruna. Ela escutou da profissional que era “normal demais”, segundo a profissional, em contradição à anormalidade de antes. Quanta confusão havia em Bruna, quanto conflito conceitual.

Se Bruna tinha traumas? Sim, como todos nós temos, mas nenhum deles poderia ser “eleito” para justificar o que ela adotava como comportamento reativo ao toque. Sua psicoterapeuta havia naufragado em encontrar qualquer “anormalidade”. Portanto, decretou que o problema era o excesso de normalidade.

Bruna nunca havia sido abusada, cerceada, ou nada do gênero.

– Leandro, sempre fui muito normal. Até que isto começou a surgir em mim.

Eis outra deixa.

O ponto era mesmo este. A normalidade.

E foram necessárias mais algumas sessões para explorarmos esta sua conceituação de normalidade.

E por que estou a dar esta volta toda, a explicar o caso de Bruna. Pois a obscenidade é isto: o excesso de pudor que a ideologia causa em todos nós. A obscenidade não é a falta de pudor (ou normalidade), mas sim o excesso dela (o excesso da normalidade).

A obscenidade está entre nós…

Ser anormal é ser visceral, ser marginal, e isto não é de todo o mal, psicologicamente, desde que não se cause mal a si ou aos demais. O problema está sempre na dita normalidade.

Pois, depois de algumas questões, logo Bruna perceber que não era seu medo de ser invadida, mas sim o medo de extravasar a si mesma. Ela protegia-se para continuar a ser normal, ao ponto de não dar saída de si para explorar tudo o que gostaria de fazer.

Pois, o que ela gostaria de fazer era o que ela era, de facto. Para ela, o que ela era, era anormal. E ela própria não poderia afetar a sua normalidade. Queria continuar a ser a mesma que todos conheciam. Não queria mudar, não queria alterar a normalidade que aprender a ter.

O corpo é uma estrutura, tal como uma sociedade, ou uma organização. O corpo possui entradas e saídas. O toque é o contato, a intimidade, a fluidez por entradas e saídas. Portanto, nem sempre é a entrada, mas pode ser a saída o motivo da proteção. Bruna estava a se prender a si mesma.

Não foi difícil ela perceber isto, pois bastaram as perguntas certas para que ela tivesse as respostas que tanto queria. Assim foi. E assim é.Bruna está a lidar com suas dualidades. Entre o seu modo de ser e de existir, está a perceber o que é mesmo relevante para ela: ser normal ou anormal? Ao suplantar tais limitações infantis, se encontrará, e assumirá sua vida como legítima proprietária dela.

É o seu processo, que se dará nos tempos certos. Mas, agora, ela sabe onde está e para onde quer ir, pois tem o seu mapa, e percebe o que pode ser percorrido.

Tudo, afinal, é sempre uma jornada.

Notas

Este relato foi também publicado também na página do Leandro Ortolan, no FaceBook.

Os casos são reais. Os nomes são todos alterados, em ordem alfabética aos relatos publicados.

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