Sentir nada: este era o seu “problema”.
Muitas pessoas chegam ao mapeamento existencial por sentirem várias coisas, boas ou más, mas Diana nada sentia.
E foi por isso que decidiu se perceber melhor.
Há sempre, para muitos, uma indiferença completa por tudo o que a vida pode oferecer, mas este não era o seu quadro.
Ela dava valor às coisas, tinha apreço por muito do que havia no mundo, mas nada sentia a respeito. Sua reclamação é pelo excesso de anestesia, que lhe tornava completamente insensível para tudo.
Ela só sentia algo em caso extremo. E daí percebemos que a sua própria “doença” era não sentir nada… era sua insensibilidade, que lhe causava uma dor insuportável.
Tão contraditória quanto surpreendente. Mas nunca poderíamos dizer que ela era indiferente.
Pois, para o indiferente extremo, há a qualificação de niilista.
Quando tudo é igual a tudo, e nada é igual a nada, e tanto faz se é assim ou assado, que sempre terá o mundo um gosto de mesmice.
O niilista é o completo indiferente, não sente prazer por nada em específico, e Diana não era assim.
O niilista, por exemplo, nunca faria um mapeamento, por vontade própria.
Pois despreza qualquer tipo de ajuda externa, pois a descrença é total.
Já atendi a alguns assim, e sempre vieram por indicação e insistência de alguém: e vieram, descrentes, justamente para não ter mais essa aporrinhação.
Nunca acreditam em nada, ou raramente dão valor ao que poderá fazer a diferença.
Mas Diana sabia da existência dos prazeres da vida, da diferença entre uma coisa e outra, percebia um ideal de vida e, definitivamente, não era niilista. E veio por vontade própria.
Seu “problema”, segundo ela própria, era não se sentir como parte de nada, de ter sido completamente desalocada.
Para ela, na verdade, tudo o mais é que era niilista. Ela sentia-se o mundo do niilista, que é sempre desprezível para ele.
Em uma das sessões, abordamos os conceitos impressionistas de Hermann Hesse, quando escreveu em Demian que «a ave sai do ovo, e o ovo é o mundo, e quem quiser nascer precisa quebrar um mundo».
Tomamos esta frase como ponto de partida para falarmos de mundos, ou universos, sob uma abordagem de ideologia, de espectros existenciais e a necessidade de proteção contra o vazio, o nada. Falamos da fuga do real, e percebemos, passo a passo, a sua própria angústia.
Pois, nesta perspetiva invertida: ela sendo o mundo, e o resto sendo a ave, era como se a ave não quisesse sair dela, não quisesse nascer. Ela, como mundo, guardava tudo dentro dela, e não deixava que nada saísse de si.
Ela assumiu-se como a própria ideologia, percebeu-se como recetáculo de todas as possibilidades do mundo. Mas, como sabemos, possibilidades são transcendências, imateriais, são meras ideias. E ela percebia-se, assim, vazia, apenas com ideias, e nada de concreto.
Sim, ela vivia uma vida interior, apenas sua, e que era cópia de um passado que ela preservara a todo o custo.
O mapa é um apanhado de gráficos, bem elaborados e feito com base em uma avaliação que é pontuada. E, o que mais chamou atenção, foi a relação espaciotemporal. Ela estava a habitar um espaço fora do seu tempo.
Nunca havia visto tanta separação em alguém mapeado, e foi um caso muito particular o dela.
Ela via o mundo atual a partir de seus próprios olhos do passado, com filtros que não a deixavam interagir. Era uma voyeur do presente.
Não interagir não lhe dava emoções, nem sentimentos, nem nada. E, embora os olhos fossem nutridos pelas impressões da vida, o cérebro formava a compreensão do mundo, mas o coração nada sentia para além da frieza do mundo das ideias, dos conceitos.
Estava desalocada, a inexistir. E por iniciativa própria.
Sua inexistência autoimposta a havia transformado em uma zombie.
Por isso, seu sentimento de indiferença sentida, mas com a certeza de que havia algo ali, mas que era incapaz de sentir, pois percebia claramente, racionalmente, mas não emocionalmente.
Foi um caso belíssimo, pois ela precisou romper-se para o mundo que estava aprisionado em si, e este rompimento a fez nova, desintegrada, e capaz de se realocar naquilo que tanto lhe fazia falta: a vida.
Notas
Este relato foi também publicado também na página do Leandro Ortolan, no FaceBook.
Os casos são reais. Os nomes são todos alterados, em ordem alfabética aos relatos publicados.