Glossário Conceitual do Possível
Termos mais relevantes utilizados no livro [O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida] e que carregam algumas das citações publicadas, a servirem tanto como referências quanto para saciar a curiosidade intelectual.
- Abismo-
O abismo é o que separa os modos de ser e de existir. Nele não há linguagem, nem idioma, nem palavras, apenas sentimentos viscerais, apenas hiatos entre a subjetividade e a consciência, e a objetividade e a transcendência. É o corpo que fala, ao imaginar cair no abismo e a percebê-lo, em espírito a levitar no vazio. É no contato com o abismo que se manifesta o sagrado individual.
o vazio visceral...
"Pois são estas fagulhas temporais que fazem parecer que a eternidade se instala, nos ínfimos instantes em que ela está a durar e é um efeito tanto quanto se sente a hesitação, quando parece que o tempo para de correr e se percebe uma eternidade nos instantes em que se vive o estranhamento. É quando se abre um abismo entre o modo de ser e o modo de existir do sujeito. É o abismo, o nosso velho e conhecido abismo, também o abismo de Nietzsche, que tanto pode ser um vazio completo, de um niilismo submergente, quanto pode ser um local em que os monstros estão a aguardar o impotente e hesitante niilista para ser consumido a partir de suas vísceras.
Uma escuridão na qual se percebe olhos a nos observar, mas não enxergamos os tais olhos, mas sentimos que lá estão, a nos acompanhar sempre. Como saber dos perigos do abismo? Só há um meio: e basta pular nele. Pule! Pule! Feche os olhos e imagine-se a pular, a cair no vazio, a perceber os olhos a se aproximarem, e com os olhos as garras e bocas famintas, as entranhas de uma dimensão que a tudo absorve. Pule e sinta o que ocorre em seus pensamentos, o que irá lhe suceder…
hesita-se...
Provavelmente, neste momento, você hesitou, ou algo parecido, ao ler estes imperativos. Se hesitou, já pode perceber que este abismo é a hesitação, a brecha, a fissura que leva a lugar nenhum, que é tão desprezível que seduz, que atrai e faz com que todas as vísceras se movimentem. É o visceral, uma dimensão bem mais forte e superior ao obsceno. Enquanto o obsceno se manifesta na estrutura, como vimos e veremos, o visceral se manifesta no abismo, nos limites do caos, e é sentido nas próprias vísceras, que se remexem, a se comunicarem com o abismo.
No abismo, não há linguagem, nem idioma, nem palavras, apenas sentimentos viscerais, apenas consciência e poder sem resultados. É o corpo que fala, ou urra, a cair, e nada mais." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VI)
- Acontecimento-
Ocorrência que é apreendida pelo sujeito, que pode ser algo provocado diretamente por ele ou não. Todo acontecimento se transforma em apreensão de acordo com a interpretação que lhe é dada, por isso é sempre algo individual, em última análise. A apreensão é a interpretação individual de um acontecimento e a forma como este acontecimento passa a ser significado. A apreensão se refere a valores, e não propriamente a conteúdos, dado que é uma síntese significativa do acontecimento.
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"Assim nós apreendemos todas as nossas vitórias, pois elas passam a nossas, totalmente nossas, apenas nossas, de forma que ninguém poderá tirá-la de nós, pois, a vitória é um acontecimento e as guardamos bem no fundo do nosso ser. É o nosso troféu exclusivo e integra o que consideramos o melhor que temos e que somos.
Há as coisas que podem ocorrer individualmente, mas também podemos vencer juntamente com os esforços de outros, em diversas situações: quando nossas famílias conseguem a casa própria, ou o nosso time de futebol é campeão de algum torneio de ponta, ou o nosso candidato vence uma disputada eleição, por exemplo. Há inúmeros outros casos, e que sempre são apreendidos da mesma forma, como se fossem os nossos próprios troféus pessoais que se acumulam garbosamente em nós, todos apreendidos, pois estamos dentro da vitória e sabemos que tivemos alguma ação para que ela ocorresse.
Momentos destes, quando aproveitados intensamente, representam simbolicamente uma transição realizada, uma espécie de sensação de se ter atingido a eternidade, dado que o tempo parece ter deixado de correr nas frações de segundos que concentram todo o êxtase, ao unir passado e presente e ao projetar um futuro de excelência rumo ao topo. A sensação de leveza no corpo não deixa isto ser negado, pois é uma ultrapassagem entre dimensões.
E a sensação da eternidade que é vivida é libertadora, ainda mais para nós que vivemos sob a pressão da finitude do tempo que possuímos, dos prazos impostos no fluir do devir de acontecimentos que nunca são favoráveis. Isto faz com que toda a experiência da vitória se compare como uma pequena morte instantânea que vivemos, uma pequena morte testemunhada, sentida conscientemente, na qual parece que se deixamos de ser quem fomos, e o que foi se dissolve nesta breve eternidade que faz ressurgir uma nova versão melhorada de nós mesmo, com a sensação de sermos menos vulneráveis do que antes, ou de termos mais tempo do que antes.
Acontece como se os nossos passados fossem todos organizados e atualizados e passassem a estar muito mais próximo de nós, e isto nos renova os ânimos. Há uma satisfação consciente e poderosa pelo que se está a viver, o que é incontestável.
E é assim que todos estes acontecimentos ocorrem, exatamente desta maneira, mesmo que nunca continuem a existir nos instantes que se seguirão, mas a apreensão da vitória passa a fazer parte de nós, para sempre. Instantes que atingimos uma dimensão de eternidade, do gostinho da ultrapassagem da nossa própria finitude para se atingir novas possibilidades – somos imortais, por breves segundos.
Viver esta poderosa experiência nos faz questionar sobre a possibilidade de a própria vida ser direcionada apenas para atos como estes, como se fosse isto o próprio sentido da vida. Será? Mas, e se for mesmo isso que nos faz mover para criar tudo o que criamos?" (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. II)
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"Talvez seja por isso, ou o que o valha, que Friedrich Nietzsche escreveu[1], em suas anotações, mas que não foram publicadas, que «não há factos, só há interpretações», ainda hegelianamente, e que os pós-modernistas, em especial os franceses, dentre eles o filósofo argelino Jacques Derrida (1930 – 2004), levaram à risca a possibilidade de, não declaradamente, de limitar os Universos às possibilidades textuais." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
[1] «Que o valor do mundo está em nossa interpretação (…) O mundo, que em algo nos importa, é falso, ou seja, não é nenhum facto, mas uma composição e arredondamento sobre uma magra soma de observações. O mundo é ‘em fluxo’, como algo que vem a ser, como uma falsidade que sempre novamente se desloca, que jamais se aproxima da verdade – pois não existe nenhuma verdade”». Poderá saber mais no artigo de Vania Dutra de Azevedo, A interpretação em Nietzsche: perspectivas instintuais, disponível no linkhttps://periodicos.unifesp.br/index.php/cniet/article/view/7856.
- Aderência-
"A aderência é o nível ou a intensidade do comprometimento ideológico, independentemente se há ou não a perceção de tal influência transcendental realizada pela ideologia. Ou ainda indica quando há a manutenção voluntária do status quo quando se esteja em uma realidade artificial absurda percebida como tal. Neste caso, sabe-se que é uma ilusão, mas opta por tornar ela sua realidade, como fiz na diversão com os robôs neoliberais. Mesmo que haja algum estranhamento ou hesitação, uma boa aderência desprezará tudo isso e fará o indivíduo aderente seguir em frente, pleno de si. E sempre será assim se o interesse no que está fantasiosamente a ser apresentado for maior do que a realidade mais simplória da vida. Pois isto ocorre devido à ilusão apresentar mais possibilidades. Simples assim. E podemos afirmar que tanto maior for o deslumbramento ideológico, maior será a aderência à ideologia, pois lá estão as maiores possibilidades.
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São profundamente aderentes os devotos moralistas, mas não apenas estes, pois todos temos nossos pontos fracos, nossas vulnerabilidades, ou “botões”. Vale perceber que a aderência é voluntariosa e quase sempre consciente. Ela surge do que vem das possibilidades, e se potencializa quando há a capacidade de se perceberem as oportunidades presentes, obviamente, ao se estar aderente. Aderência é o estado e ato voluntário de legitimidade para se qualificar para receber os bônus pela própria fidelidade ideológica assumida. É a ilusão de que o bom comportamento ao longo do ano garantirá os melhores presentes no Natal. É um trade, uma barganha. Não é ela nada compulsória, mas sim fruto dos interesses mais profundos dos indivíduos, que chegam mesmo às bases morais mais obscenas.
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A fuga da aderência é impossível, pois sempre se acaba voltando para alguma ideologia, pois nunca se está totalmente fora dela. Mesmo que se adote uma nova ideologia, em detrimento de outra antiga, tal adoção se dá pela aderência maior que se terá. A aderência é inevitável, pois ela é o próprio jogo de linguagem e significações, no qual há uma comunhão com os conteúdos e valores ideológicos.
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Pois a ideologia não é a produtora primária de nada, ela é o próprio produto. Ela nasce, mas não morre. Se transforma, evolui, involui, se corrompe, é rompida, de tudo faz, mas continua a existir enquanto existir quem a reproduza. Não morre, pois mesmo se desaparecer, seu legado continuará a existir a reproduzi-la. Pode desaparecer, quando sua reprodução ocupa o seu lugar. Mas tal reprodução ainda é ela, sua origem, e que continua a existir de forma ainda mais oculta do que antes. Lá estará sempre ela, a nos acompanhar de longe. Se não há causa primeira, não há ideologia primeira, mas sim processos de causação imanente, na qual a ideologia é produto e produtora – mas não primária, e nem última também.
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Ela não vive, mas é vivida. É um produto que atrai, seduz, faz com que todos se movimentem por ela, e em sua direção, mesmo sem ser uma causa primeira aristotélica. Eis a diferença: não é causa primeira, realmente, mas assim somos tentados a promovê-la, pois sempre a personificamos freudianamente à nossa imagem e semelhança. Por vezes, é um fim. Por outras vezes, é um meio. Mas são ambos, a bem da verdade. (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XVI)
... aderência
"Mas, a cada vez que este espírito obsessor mais se sofistica. Esta determinação sutil oriunda das ideias deles se confunde como manifestação do que se entende por livre arbítrio do sujeito obsidiado. Depois de um tempo, a interagir com o espírito, a adesão é tão intensa que não se conseguirá diferenciar mais o que seja seu e o que não seja. Tudo passa a ser assumido como originário da própria individualidade, ou em alguns casos como do próprio espírito, quando se dá o fundamentalismo na vida do abnegado servo. E este deixa de ser ele próprio e assume-se como um representante que foi obscenamente cooptado. Isso é dizer, em ambos os casos, que a parte individual passa a ser o mesmo que o todo, ao absorver o espírito, o excedente exterior como a si próprio, ou ao contrário. Tudo será um, finalmente!"
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"Resta confirmar, apesar disto tudo já exposto, o que ainda mantem a estrutura coesa, o que mantem a todos grudados nela, mesmo com todas as incoerências e irracionalidades que há em todas as estruturas consideradas. Há que haver algo mesmo poderoso que ultrapasse a própria capacidade racional humana, tolhida por alguém, igualmente humano, que se diz representante de uma entidade que nunca ninguém viu, a bem da verdade, mas que “sentimos” existir. É esta a mais impressionante história já contada para a suposta humanidade, e que continuamos a consumir, vezes por vezes. Mas, em nome da racionalidade, não deve, nem pode, ser apenas isso. Há que se ter algo mais. E há.
A racionalidade nos leva, pelo seu exercício, a deduzir que tudo, afinal, são relações. Do sujeito com ele mesmo, dele com outro, da relação de ambos com a estrutura, de uma estrutura com outras estruturas. E todas as componentes que se relacionam e se interrelacionam. Relações e possibilidades. Resta saber o que é uma boa relação, e como se valora as relações em escalas de desejos. Os valores precisam ser atualizados, todos, nestas dinâmicas que ocorrem nas relações. Não à estagnação moral, mas sim à fluidez que dará acesso a uma nova dimensão, que Espinoza atribuiu à Ética." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XII)
- Ameaça-
A ameaça é o oposto conceitual da possibilidade ideológica. E quem ou o que seja estranho a este universo ideológico e não consiga ser “convertido” para comungar exclusivamente dos mesmos valores, passa a representar uma ameaça e logo será tido como inimigo.
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"O que teria em comum entre a assunção da veracidade da predicação das falsas universalidades e a visão distorcida acerca de tudo o mais que há? Como correlacionar o erro de se assumir uma universalidade e a visão distorcida do mundo?
Esta é uma conexão conceitual tão sutil de se perceber, mas ao mesmo tempo tão poderosa que nos levará a ter imensos cuidados ao desconstruir conceitualmente a forma estrutural que nos uniu até aqui através dos conteúdos que temos em comum acerca dela.
Todos os sujeitos, jogados ou criados na estrutura, são afetados pela necessidade de obedecerem a uma linearidade suposta de existir em tudo o que há, e assim, aprendem logo sobre o suposto caminho para as possibilidades, pois é o que mantém a todos unidos dentro de uma mesma estrutura. Aliás, a estrutura é mesmo justificada para que se possam alcançar as possibilidades – é para isso que ela serve, pois é o seu telos.
E todos, ou quase todos, elegerão as impossibilidades como opostos das possibilidades, pois ao estarem as possibilidades dotadas de predicados universais, seus opostos também são passíveis de terem tais predicativos, pois precisam ser correlatos ontológicos. E isto gerará um problema para todos, e uma oportunidade para o espírito obsessor que encontrará aí um ambiente propício para se desenvolver.
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As impossibilidades não fazem oposição às possibilidades, e este é um grande erro que a maioria, devota ou não devota, comete sem percebê-lo, pela irrelevância que passam a dar às impossibilidades, sempre menosprezadas ao ponto de serem desconsideradas como existentes. São desconsideradas pois o tal espírito obsessor passa a ser visto como eficiente para anular todas as impossibilidades, e deixá-las completamente sem efeito.
Surge daí a sua força, da pretensão de nada ser impossível e, frente à realidade do impossível, usa-se um recurso que o desativa, e tudo passa a ser possível novamente. Sem uma predicação universal, isto não funcionaria, pois, a mente não consideraria capaz a atuação universal de algo não universal. Assim como a confiança em uma empresa multinacional é sempre maior do que em uma local.
A mente opera um bypass quando percebe uma impossibilidade. E este bypass não é natural, mas artificial, e implantado pela ação do espírito obsessor. A impossibilidade da superação da morte, ou da vida eterna opera desta forma, como sabemos, e formas de ultrapassá-la são produzidas sem que o sujeito considere mais o que existe a afrontá-lo.
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E é um erro que é incentivado e mascarado com a ação do bypass, que opera nesta mesma maioria, devota ou não, que se afinizam nesta ilibação do impossível, pela aversão que possuem ao confronto com a realidade. Mas, o que é preciso saber sobre tal espírito, por agora? Qual é o verdadeiro arqui-inimigo das possibilidades, dos sujeitos? E como ele distrai a todos para que não percebam mais a realidade?
Os opostos das possibilidades são, unicamente, as ameaças. Começaremos a perceber que a ação do bypass é criar uma ação para que as possibilidades sejam, ao mesmo tempo, tornadas disponíveis como oportunidades e incapazes de serem impossíveis de ocorrer. Esta é a promessa implantada em todos, pelo espírito.
Toda ameaça é algo possível, obviamente, mas que pode ser provável ou improvável de ocorrer, ou seja, é algo real que pode ou não ser atual, mas que sempre estará próximo de sê-lo. É o mesmo processo de incerteza que há nas predicações universais, a mesma construção mental que vem deste esforço de prever e controlar o devir. Eis o ponto crucial da diferença entre a ameaça e a impossibilidade: uma ameaça causa sensações, sempre fortes e presentes.
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Basta pensar em algo ameaçador que as sensações ruins ocorram, diferentemente das impossibilidades, sempre frias e por vezes distantes. A impossibilidade é estática, natimorta, enquanto a ameaça é dinâmica e pode interagir com a linha do tempo do sujeito. E isto faz toda a diferença para o espírito obsessor, que passa a dominar a cena quando troca um inimigo possível de vencer por outro inimigo capaz de ele mesmo produzi-lo. Cria-se o falso problema para se vender a falsa solução."
Há sempre coisas indesejadas a ocorrem nas vidas das pessoas normais, mas que parecem estar anestesiadas ao ponto de não perceberem que há mesmo algo real e impossível a lhe impedir uma vida em melhores condições. Assim também se dá na própria estrutura, como os muitos holocaustos, guerras, pandemias letais, períodos de grande escassez de alimentos, distúrbios climáticos ou geológicos, etc. Surgiram, surgem e surgirão ainda mais. Comovem a todos, e logo são esquecidos pois a preocupação é mesmo com a cenoura posta à frente, a correrem para o encontro dela, como coelhos.
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Até mesmo existem mais facilmente exemplos sobre fatalidades que expressam as impossibilidades do que as coisas consideradas boas, sejam possibilidades ou oportunidades. E por isso começamos a perceber o motivo de não ser a busca do “bem” que forma a sustentação para que ocorra a obsessão a que todos estamos submetidos, em maior ou menor grau. O bem, ou a cenoura, é algo artificial colocado à frente de todos, que passam a perseguir algo, indiferentes se é mesmo real, pois não é.
A obsessão é sustentada justamente pela ameaça às oportunidades que são disfarçadas como possibilidades, e tudo fica confuso, e já não se sabe mais o que seja uma oportunidade ou uma possibilidade – surgem nossos medos, e não pelas impossibilidades reais – que deixaram de ser considerados como existentes. A obsessão coletiva dá-se pela ignorância, ou melhor, pela inconsciência artificial acerca do real conhecimento." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
- Anestesia-
(Ver também: autoajuda) Anestesias são paliativos mentais que distanciam o sujeito incomodado pelo contacto com o real a fugir para as zonas seguras do possível, a se distanciar do impossível cruel e inegociável. As anestesias são produtos, sempre, e por isso não são gratuitas nem passivas, pois possui um mercado gigantesco que promove a dor enquanto oferece o analgésico existencial, em simultaneidade. Estimula o consumo e oferece o crédito, por exemplo, para além das clássicas religiões, esportes, etc, que fazem adormecer a todos os que se deixam encantar pelas promessas existentes. Para tudo, ou quase tudo, há alguma anestesia.
"As razões, assim, pouco importam para a abordagem que a autoajuda estabelece, assim como todas as outras seitas que denominaremos de “anestesias”. O que importa, como anestesia, é que se deve prosseguir e ignorar esta mensagem considerada autodestrutiva, negativa, sem nenhuma razão para ser significativa, pois tudo o que deve importar realmente deve ser completamente objetivo, deve estar na estrutura material do mundo e das posições estabelecidas na estrutura vigente.
E assim, tudo o que está contido no conjunto das anestesias, passa a emitir as poderosas mensagens sugestivas – as mesmas ideias “positivas” que são artificialmente compartilhadas pelo marketing eficiente das maiores marcas[1] mundiais: «vá em frente, mantenha-se a caminhar», seja para a vida ou para o mundo dos whiskeys, «apenas faça isto», a correr em seus novos tênis em mundo cada vez mais acelerado. As mais poderosas mensagens publicitárias sempre são grandes sínteses dos imperativos objetivos que estão na ordem estabelecida do mundo. Tudo direcionado para a positividade, que alguns mais esclarecidos já acrescentaram um sobrenome, e virou a «positividade tóxica», que felizmente começa a ser combatida, mas que infelizmente pela forma como se combate a toxicidade a fortalecerá ainda mais." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. III)
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"A agonia do contato com o real ocorre em três etapas, todas de impossibilidades. E por serem impossibilidades é que não são admitidas existirem, e logo são tratadas de serem abafadas pelos que são mais sensíveis às dores existenciais – a esmagadora maioria. Por isso, são abundantes as formas de anestesias oferecidas obscenamente a todos. E daí percebemos que este contacto com o real não é algo tão raro assim, até pelo imenso mercado que há de anestesias, e que todos passam a ser consumidores, mais cedo ou mais tarde, mais ou menos intensamente, mas sempre lá estarão, a se anestesiarem contra o que traz angústia e incerteza, impossibilidade e desertificação. A estrutura também é vulnerável, sob esta ótica, visto ser uma criação na qual os criadores podem todos estar vulneráveis ao ponto de deixar a estrutura ruir, quando passam a dar mais valor ao deserto do real do que à “Disneylândia” antes imaginada.
A primeira etapa é a própria experiência da descoberta, da força com que surge a fissura e o impacto que a visão causa, como se estivesse, pela primeira vez, a enxergar verdadeiramente – da certeza de que há algo mais para além das aparências desde sempre tidas como possibilidades. Nesta fase, o consumo de anestesia é realmente feito em doses excessivas, sem moderações. O sujeito embraga-se de tudo: autoajuda, religiões, bebidas, drogas, terapias quânticas, música sertaneja, chás de cogumelos, jejum intermitente, maratonas de doramas coreanos, teorias da conspiração, crossfit, grupos de Whatsapp e Telegram, coaches, e tudo o mais que disserem ser bom e capaz de aplacar os seus terríveis pensamentos que nunca chegam a nenhum entendimento ou conclusão.
e ...
A segunda vem depois dos efeitos temporários das anestesias e é a intermitência das brechas, que surgem e desaparecem. Que pululam, pela vida, a surgirem quando menos se espera. Entre estes espaços, mais e mais anestesias são consumidas, mas que parecem ficar mais fracas e por isso menos satisfatórias, pois o sujeito passa a ficar mais resistente a elas pelas visões que continuam a lhe afetar. Além de diversas histórias que são contadas para si mesmo, a abrandar as perceções. As maiores mentiras não são as que os indivíduos contam para os outros, mas as que contam para si, e que não são poucas. Há camadas e camadas de mentiras, sobrepostas, que levam às crenças diversas nas anestesias, e nos fornecedores destas, os ditos traficantes da felicidade..." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
Notas
[1] Julie Bramham, diretora global de marca da Johnnie Walker, disse «a Johnnie Walker sempre foi otimista e um exemplo de progresso - é isso que significa Keep Walking… são duas pequenas palavras que falam muito sobre positividade, possibilidade e resiliência». Acedido em 23/04/2022 no site https://www.prnewswire.com/news-releases/johnnie-walker-lanca-nova-campanha-keep-walking-para-fazer-o-mundo-se-movimentar-novamente-820753033.html. «A campanha "Just Do It" incorporou a imagem da Nike como um ícone americano inovador associado ao sucesso através da combinação de atletas profissionais e slogans motivacionais enfatizando o espírito esportivo e a saúde. Isso levou os clientes a associarem suas compras com a perspectiva de alcançar a grandeza». Acedido em 23/04/2022 no site https://en.wikipedia.org/wiki/Just_Do_It.
Anestesia: Conteúdo Protegido.
- Anomalia-
Algum acontecimento ocorrido e/ou apreendido de forma diferente do que o esperado. Um desprazer que se origina de algo que deveria dar prazer, por exemplo. Há a função que decorre das anomalias que dão uma profundidade extra aos acontecimentos como, por exemplo, o gozo, quando ocorre um prazer consciente concomitantemente a um desprazer inconsciente, ou vice-versa. Uma anomalia é sempre algo precioso e rica em dimensões interpretativas.
"O que nos ocorre então, como anomalia? Ao invés de se termos a sensação de se viver a breve eternidade nas frações de segundos, passamos a se ter algo oposto, que é sentir uma redução da própria existência, como se estivéssemos a sair de uma infinitude espacial para adentrar compulsoriamente em uma prisão temporal, numa cela diminuta e claustrofóbica que nos restringirá os movimentos.
Saímos da leveza da liberdade eterna e percebemos logo o tempo como um insensível carcereiro existencial. Nosso espaço e tempo se fecham em nós, simultaneamente, a nos dar paredes ao redor e tic-tacs de ponteiros de um relógio que começa uma contagem sem fim, ou melhor, com um fim que sabemos existir." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. II)
... eis a anomalia...
"Para algumas das Ciências, se as pudermos nomear assim, o que particularmente defendo que seja desta forma em especial para alguns dos ramos da Psicologia, mas não apenas esta, foi que o lamentável objetivo de suas ações terapêuticas passou a ser a “cura”. E a cura, neste caso, não é nada mais do que suprimir do “doente” esta anomalia percetiva: é deixá-lo insensível e dotá-lo de uma incapacidade seletiva de enxergar o real.
Quem, afinal, ainda não percebeu o quê? Quem precisa, verdadeiramente, perceber mais sobre tudo, o “doente” ou o suposto “curador”? Se não há doença, não há doente, e nem se faz necessário algum curador. Mas é preciso à estrutura criar tudo isto para que se possa se manter de pé. E o “doente” segue a vida, lado a lado com o seu curador, que seguem batendo suas cabeças, entre tombos e capotamentos, até que percebam toda tolice em que estão de forma irrefutável." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
- Ansiedade-
"Em linhas gerais, por não se conseguir responder sobre o futuro, sobre algo que ainda não aconteceu, pergunta-se mais abertamente pelo passado, como se este ficasse a martelar a mente humana para completar os buracos epistemológicos existentes na linha do tempo existencial, sempre imaginada como linear. Isto poderá derivar muitas coisas, dentre elas, a ansiedade, mas não só.
Ainda assim, o futuro não é desprezado, pelo contrário, pois passa a ser “projetado” pelas mesmas capacidades imaginativas da mente humana, racionais ou não, que buscam sempre preencher o vazio dado pela dúvida da existência do futuro, que de tão incômoda passará pela própria pressuposição axiomática de que haverá mesmo o futuro, para começar. Por isso, principalmente, pela fuga da dor mental que traz a incerteza, o futuro não é somente assegurado, ao menos mentalmente, como também passa a ser uma função vital prevê-lo para dar vida aos pressupostos inconsistentes e inventados.
E a mente continua a construir uma realidade a partir de sinais elétricos que chegam ao cérebro e que formarão uma teia que aspira ser capaz de perceber o que virá, a seguir, que já denominamos como consciência. E tudo isto se dá em nome de uma necessidade de continuidade existencial da vida e do mundo, ambos a transcenderem à possibilidade da finitude dada pelo acaso de que algo possa vir a ocorrer e que “tudo” deixasse de existir. Esperanças, apenas esperanças. Isto surge em paralelo ao problema da indução, já acusado pelo filósofo britânico David Hume[1] (1711 – 1776), em que há a “certeza” de que sempre haverá um novo dia, um amanhã, a formar uma ilusão da continuidade linear da existência. Sair desta condição intelectual é desconfortável.
O que seriam das séries realizadas pelos serviços de streaming, como a Netflix, sem a indução? Afinal, o que seria a ansiedade? Se assim considerássemos a necessidade de simultaneidade de acontecimentos que tem o ansioso, a buscar as certezas em que ocorrerão as coisas que existem com incertezas, percebemos que a inovação da Netflix, ao disponibilizar muitas de suas séries com todos os episódios liberados é algo que atende aos desejos íntimos de muitos ansiosos, aqueles que nem sempre contam com uma alta confiança na própria capacidade indutiva que possuem acerca do futuro, e por isso querem tudo no agora, no antecipar de qualquer acaso contrário possível que lhes possam privar da fruição do objeto de desejo para além do devir. Ou, talvez, contrariamente, possuam eles uma confiança em excesso ao julgarem que o que estará no devir deixará logo de existir, e assim queiram realizar suas fruições de forma imediata, a apreender o próprio fluxo da existência.
A origem da ansiedade vem também de uma relação problemática de indução, acerca dos ajustes mal feitos sobre os tempos percebidos. Mas isto não é uma teoria sobre a ansiedade, ainda, mas uma provocação para percebermos que nada fica alheio à temática, quando na selva. Maratonar uma série já disponibilizada na íntegra é uma busca por garantir chegar ao fim de algo que se deseja no imediato, mas ainda a sofrer pela dúvida que ficará acerca da existência de uma nova temporada futura, o que prenderá o assinante até que isto possa ocorrer, e que não perderá nem um segundo quando houver o aguardado lançamento.
Não há como se afirmar tal coisa, mas me parece que sempre que se assiste a assim anunciada última temporada de uma série que se gosta, a pressa deixa de ser tão intensa quanto nas temporadas anteriores, a tentar postergar o que já está dado como terminado. Em muitos casos, posterga-se chegar ao final. É uma impressão que tenho, em minha particularidade. De todas as formas, eis que nunca se pode fugir desta desgastante incerteza acerca do futuro, que também vira produto, como tudo, mas sempre se pode recorrer aos processos indutivos para se manterem as aflições suportáveis, e a continuar a produzir e a consumir, enquanto se aguarda impacientemente." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIII)
[1] «Se as ideias fossem inteiramente soltas e desconexas, só o acaso as juntaria; … Este princípio de união entre as ideias não deve considerar-se uma conexão inseparável, pois tal conexão já foi excluída da imaginação; contudo não devemos concluir que sem ela, a mente é incapaz de juntar duas ideias, visto que nada há mais livre do que essa faculdade… As qualidades em que se origina esta associação e que desta maneira levam a mente de uma ideia para outra, são três: a semelhança, a contiguidade no tempo e no espaço e a relação de causa e efeito.» HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, p. 39.
- Ascenso e Descenso-
O ascenso e o descenso são movimentos relacionais do sujeito e a estrutura. São potencializados pela intencionalidade e dão-se ciclicamente.
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"Pois se há desejos, há possibilidades. E, se há possibilidades, há sempre alguma transcendência que se pretende transformar em imanência, a forçar as oportunidades surgirem, pelas forças das realizações humanas. Haverá assim, conteúdos mentais que levarão à ação, a padrões comportamentais e mesmo às histerias coletivas a partir das possibilidades que são compartilhadas por todos, sejam voltadas para o consumo, para as celebridades, modas ou até religiões, em um nível ainda inferior ao fundamentalismo, que é o limite da obsessão." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XII)
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"Ao se prosseguir nas decisões que a vida exige rumo ao “topo”, o sujeito começa a perceber que sempre que “vence” e ascende na estrutura passa a ter menos possibilidades para exercer a liberdade prometida e desejada. Parece que terá sempre menos possibilidades, que ficará mais preso. Mas tudo isso é apenas suposições, visto que nunca poderá ser uma informação precisa e certeira, até pela dificuldade de conceber quais são todas estas restrições, especificamente.
Mas, mesmo que não consiga perceber todas as possibilidades que deixará de ter, será sempre mais óbvio perceber todas as impossibilidades que surgem imediatamente nos pensamentos. E isto se dá a partir de que precisará deixar sua atual posição para trás, e deixar de ter as possibilidades que tinha, mais facilmente acessíveis. É uma luta de suas crenças, desejos e vontades a combaterem entre si, entre os tempos que são conhecidos e desconhecidos no lapso temporal aberto.
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Ou seja, um combinado de lástimas: precisará largar as atuais possibilidades e isto gera um sentimento de perda, ao passo que simultaneamente perceberá muitas impossibilidades para onde está a se dirigir e não saberá sequer quais serão as novas possibilidades que terá no futuro imediato, mas sente que serão em menor número, o que não parece ser uma vantagem ou vitória. Tudo isso a formar uma bomba mental prestes a explodir, um perigo iminente e que se faz necessário ou correr em desatino ou ficar completamente paralisado, a fingir-se de morto, ou mimeticamente disfarçado. Pode-se lutar, e continuar, e alguns fazem, ao seguirem adiante. É uma cilada, de todas as formas!
E isso gera incertezas, mas não apenas elas. Há alguma lógica nisto tudo. Parecem existir mais determinismos sobre o que se espera que se faça quando mais alto se está na estrutura da vida, e isto é muito contraditório, pois progredir passa a significar que, ao invés das máximas possibilidades e das liberdades para curtir tudo o que há, contrariamente ocorre um aprisionamento dentro de uma estrutura que exigirá maior dedicação e que muito menos sobrará ao sujeito a ocupar uma posição “superior”, ao passo que muito valorizará o objeto que este passará a representar, ao transformá-lo exatamente neste mero agente funcional, em uma peça da engrenagem que opera tudo para ser como é." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IV)
O ascenso e o descenso: Conteúdo Protegido.
- Atualidade Kantiana-
Sobre a Atualidade Kantiana: "Mas, em resumo, independente da origem, e em prol da produtividade intelectual, o que poderíamos considerar como Universo, enquanto conjunto de tudo o que há? Há “dois” destes Universos, ao menos.
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O primeiro “Universo” é o já conhecido, e que “aumenta” constantemente, por sabermos mais e mais sobre ele a cada novo dia, pelos avanços científicos dados em todos os campus de investigações acadêmicas. Os registos deste Universo conhecido podem ser equiparados ao conhecimento científico que temos, à base de dados acumulada desde sempre. Ainda que seja um cálculo muito difícil e complexo, não seria impossível dimensionar os limites do conhecimento atual singular em um destes supercomputadores que surgem cada vez mais potentes e velozes;
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O segundo “Universo” é do desconhecido, e que nutre o conjunto do que é conhecido quando se passa a conhecer algo originalmente desconhecido, e este algo é mudado de conjunto. Obviamente não teremos nunca a dimensão exata do que está contido neste conjunto com elementos desconhecidos – pois não conseguiremos dimensionar o que ainda não esteja no campo do conhecimento humano e, portanto, na existência. Por mais que se conheça, dia a dia, não saberemos se o desconhecido terá um limite que se extinguirá pelo conhecimento adquirido. No máximo, teoriza-se sobre o desconhecido. E, certamente, teoriza-se muito mal acerca disto.
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A questão é que o que se conhece é apenas algo que seja pensado ou tido como existente. Uma qualidade, assim, universal pode estar ainda no conjunto do desconhecido e, um dia, passar a compor o conjunto do que seja conhecido? Eis a questão. Se há algo que é pensado, é um estado de “realidade”, pois pode ser possível conhecer algo a priori mesmo sem que ocorra uma experiência direta sobre este algo, mas também pelas analogias que podem ser feitas, a partir da experiência prévia que possui o sujeito, e que deve ser sempre considerada, segundo Kant.
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Mas, ainda assim, este pensamento não teria, necessariamente, a “atualidade” kantiana por não haver a experiência direta. Esta atualidade parece mesmo algo temporal, necessariamente, pois a atualidade é a existência real apreendida em um certo tempo, pela experiência, pelos sentidos, pela interação, e em síntese, de algo que deve estar a ocorrer no devir e, por isso, o pensamento fica livre para divagar entre passado e futuro, a formar sua realidade em algo que não necessariamente esteja a existir materialmente na atualidade, mas que é suposto conhecer, pelas analogias que se é capaz de fazer a partir de algo que já se conhece, pois já foi apreendido em algum momento.
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Pode ser assim, ou não. Kant é complexo, pode ser preciso ou controverso, por vezes, ou confuso, e muitos o percebem de diferentes formas, mas nesta questão ele é coerente, dado também que há aqui neste texto uma extrapolação para além de um burocrático conhecimento de um simples objeto, mas sim de complexas circunstâncias quando estão todas interconectadas.
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E há também a capacidade criativa humana, que nem colocaremos em causa, para evitar mais distrações. Então fica evidente que o Universo formado pelo que se conhece como o único que pode ser conceituado, assertivamente – pois é o único de facto real e/ou atual. Potencialmente, há o que não se conhece, que não é nem real e nem atual, e há também o que se pode criar, que atinge uma condição real sem ser, necessariamente, atual – e sobre isso não temos a menor ideia do que poderá vir daí." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIII)
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- Autoajuda-
A autoajuda é uma seita neoliberal - provavelmente a maior anestesia disponível no mercado mundial, que tudo resolve e soluciona, a formar humanos superiores e adaptados a quaisquer cenários, desde que continuem a consumir incondicionalmente o que ela propõe como problemas e soluções.
"A contemporânea e onisciente seita da autoajuda é uma destas promessas, por exemplo, sempre a ter uma alternativa de “solução” precisa e universal para tudo o que ocorre com qualquer pessoa no Universo, e talvez fora dele, se houver mercado para tal, afirma que este problema do mal – a tal inconformidade com o mundo – é um legítimo processo de autossabotagem. Pronto, resolvido! Daí o sujeito passa a acreditar que não fica feliz em prosseguir pois quer se autossabotar, se destruir, por alguma mazela não superada incrustada em seu passado ou na visão distorcida que tem na nobre e suposta humanidade. Mais um caso resolvido, mais um cliente conquistado e encantado e que continua a culpar-se por tudo, como antes.
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Ainda que fosse verdade tal hipótese e que seja mesmo um autossabotador da melhor estirpe, por qual motivo que não deseja mais prosseguir adiante rumo ao sucesso a aguardar por ele no topo dos topos? Há que se ter razões claras, no mínimo! Por que ele não consegue prosseguir ao menos movido de uma vontade forte o suficiente para reparar o que supostamente fez de mal no passado, por exemplo, ou ainda para fazer melhor e deixar a sua marca da vitória? Por que optar por um ato de terrorismo aplicado a si mesmo?
São estas algumas das questões que a autoajuda nunca permite serem feitas, pois ela funciona sempre como algo inconsciente, que apenas emite informações que são perguntas já com respostas prontas, sem nunca interagir com questionadores. A autoajuda faz a pergunta e dá as respostas. Estabelece um problema, formata-o e dá uma solução. E tudo tem de se adequar ao que ela estabelece. E, como há uma indústria para produzir problemas e soluções, sempre terá alguma que se adequará ao indivíduo. Para isso há a produção das soluções universais e incondicionais que vão direcionadas para todos os necessitados, sem deixar ninguém de fora." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. III)
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"Mas, afinal, por que razão haveria de ser todos os problemas originários deste mundo? Por que limitar tudo a nossa dimensão existencial? Para quem seja capaz de supor isso também existem outras anestesias disponíveis e igualmente bem sedutoras. Pois são muitos os que defendem, efusivamente, que os problemas não são mesmo deste mundo, e assim, todas as tretas da vida «e por que não também todas as tretas herdadas das vidas passadas?» passam a ser atribuídas ao além do mundo, ao além da vida e do existente no presente. O passado vira produto, assim como o além, e tudo é comercializado aos que desejam consumir anestesias.
Então os problemas atuais passam a ser resultantes de factos que viajaram no tempo e no espaço, por algum problema anterior que o sujeito teve algures, com o Universo – esse malvado e insensível Universo que nunca esquece do que mal que fazem nele e que, a dado momento, fará com que a justiça seja feita. E logo chega-se às questões sobrenaturais, espirituais, cármicas, astrais, astrológicas, quânticas ou equivalentes.
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Mas é preciso perceber que quem chega a procurar soluções no aquém ou além do mundo foi por não ter encontrado soluções no mundo atual, ou talvez seja mais um desiludido pelas promessas da autoajuda e que foi buscar algo mais potente para si. Se as anestesias fossem drogas como já sugerimos – e talvez até mesmo sejam – não seria errado dizer que a autoajuda é a droga de entrada, daquela que pode levar às drogas mais poderosas e inusitadas, como o terraplanismo, por exemplo, ou ainda mais hardcore, como os esquemas multiníveis e pirâmides de cryptos.
Nenhuma busca, afinal, resultará em nada concreto e acertado como uma justificativa pelo que se está a sentir, pois nenhuma lidará com o real, com o abismo. A estranheza continuará a acontecer, da mesma forma, ou cada vez mais intensamente, mesmo depois de dezenas de livros lidos sobre autossabotagem, crenças limitantes e tudo o mais que lhe recomendarem, como retiros de finais de semana com gurus, experiências de andar sobre brasas, romarias e procissões, sufocar até quase morrer em tendas esfumaçadas ou até mesmo os famosos banhos gelados às primeiras horas das manhãs que os coaches fazem para afirmarem sua superioridade térmica, pois, se eles fazem tais ritos é sinal que devem ser eficientes. Mas nada resulta como deveria ser, ao menos para os simples mortais.
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Por sorte, o mercado é imenso e criativo, e logo surge um novo produto com a promessa de solucionar através de uma nova forma de lidar com as mazelas existenciais, tais como tretas healings da vida, conspirações quânticas, constelações intestinais, conjunções astrológicas e tudo o mais, pois sempre surge algo que dará respostas “precisas” e levará ao olimpo da vida. E, para fugir da dor existencial, tudo vale. Quem quer queimar no deserto da realidade? Quem quer adentrar em um caos impenetrável? Pois, ninguém quer isso para si, nem mesmo para seus piores inimigos. Portanto, vamos às benditas anestesias." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VI)
- Busca e Espera-
Sobre a busca e espera: "Por exemplo, a crença em extraterrestres, que muito acreditam que existam, com argumentos mesmo convincentes, mesmo que nunca se tenha visto alguma evidência irrefutável de extraterrestre ou nave espacial para além das obras de ficção, ou interagido nem que fosse por, pelo menos, uma troca de e-mails ou até sinais ancestrais de fumaça – mas ainda assim há os que os desejem ocupar este espaço conceitual criado e persigam todos os indícios para que possam, enfim, atestar a máxima imanência destes. Buscam os ET’s, literalmente, na Área 51 dos desertos de Nevada/EUA, nos eventos de observação e contatos imediatos, no Google, no Tinder, ou ainda em outros lugares místicos. Tudo passa a ser suspeito, conspiratório, a dado momento em que todas as tentativas são frustradas e pensam conspirativamente como se estivessem todos os ET’s a serem escondidos.
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Onde saibam que tenha aparecido alguma nova “evidência”, há uma comoção para se investigar antes de as forças de defesa ou a NASA ocultarem os factos, há sempre uma vilã declarada que está sempre a impedir que sejam os ET’s “conhecidos”, e que assim se possa alocar estas entidades nos entes já engendrados pela consciência. E todo um complexo de indústria de divulgação extraterrestre se formou, enquanto outras destas esperançosas indústrias aguardam o retorno de algum messias, outras aguardam a primeira aparição de um sinal alienígena, mas todas a venderem algo e a captarem dinheiro, enquanto aguardam. Sempre a aguardar, pois estão todos dentro do instante, da imobilidade, em que veem ali alguma eternidade e, por bem, muito lucrativa enquanto nada ocorre, pois assim seus negócios passam a serem também eternos.
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O dramaturgo irlandês Samuel Barclay Beckett (1906 – 1989) capturou esta espera angustiante em sua peça fenomenal “Esperando Godot”[1], quando as personagens Estragon e Vladimir «aparentemente esperam um sujeito de nome Godot. Nada é esclarecido a respeito de quem é Godot ou o que eles desejam dele» e assim ficam, durante toda a peça, a aguardar por Godot, sem nunca saberem nada sobre sua aparição. Enquanto aguardam, a vida flui, e passam por eles diversas outras personagens, em diversas situações, dadas como possibilidades." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XI)
Notas: busca e espera
[1] “En attendant Godot”, na língua original, em francês. 1952. Acedido em 26/04/2022 em https://pt.wikipedia.org/wiki/En_attendant_Godot.
- Cancelamento-
"A luta fundamentalista se dá em todas as instâncias, desde as terroristas até as acadêmicas, seja através da escrita infame de livros ou mesmo produção de bombas, clandestinas ou não. Todos – sujeitos, seitas, religiões, países, etc. – acreditam serem capazes de superar o impossível, que passam a considerar como tal tudo o que há de ameaça às causas que possuem. Aos que são considerados como rebeldes, mas sem serem tidos como inimigos, estes “impuros” nunca poderão chegar perto de contestarem o que está estabelecido e, se o fizerem, mesmo que em um país com liberdade de expressão assegurada pela Constituição, lhes restarão, no mínimo, a excomunhão contemporânea mais cruel que pudemos conhecer – que é o cancelamento.
Eis a triste sina da vida estrutural, para alguns, que se veem perdidos dentre uma insanidade generalizada, e são estes que são geralmente taxados de insanos, e assim afirmados como párias pelo cancelamento. Não se anime muito, pois você talvez seja um destes “insanos”, mesmo sem saber o que está a fazer. Afinal, todos temos os nossos “botões”.
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A forma, novamente relembramos, é quase sempre única, e o que muda são apenas os conteúdos. E os valores destes conteúdos são considerados distintos para cada indivíduo na perspetiva considerada, para uma mesma ação, intenção ou proposição, que para uns são do bem, para outros não. Não se pode, e nem se deve, ser tendencioso ou pretensioso para buscar o entendimento acerca dos valores que são atribuídos para o que está para além de nossa própria realidade. Assim, seria difícil ou “impossível” algum conhecimento da realidade a qual estamos orientados a perceber.
Impossível? Sim, considerei mesmo a impossibilidade, ao ponto de escrevê-la. Então há, de facto, algo realmente impossível? Já que estamos a avançar, é preciso revisar isto, pois, se existe a palavra “impossível”, e eu próprio a usei, o que ela poderia representar?
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Eis aqui mais uma subversão semântica que serve para ampliar esta compreensão. A palavra, assim percebida, é uma impossibilidade simbólica (e não a real), e isto significa considerar que ela seja uma instância dentro das possibilidades, projetada inversamente.
A impossibilidade assim considerada é sempre aquela tola, inexpressiva e irrelevante. É uma proibição que as regras, através de seus ditames, colocam para que uma possibilidade possa vir a ser “desativada”, em nome da credibilidade do espírito obsessor, para haver alguma zona capaz de criar outras ilusões derivadas. É possível haver ali uma possibilidade renegada, mesmo que provisoriamente.
Para os cristãos, por exemplo, matar é uma impossibilidade simbólica dada pelos “Mandamentos” de deus. Não pela incapacidade de alguém matar outro, mas sim por haver uma regra em que matar seja proibido, ainda que matar seja aceitável quando as mesmas regras ou seus representantes o digam para fazer, nos casos das guerras, cruzadas, sacrifícios humanos, inquisições, jihads, penas capitais ou ainda outras situações extremas. Um impossível simbólico que se torna possível apenas quando pela ação direta das versáteis regras.
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Impossível mesmo – aquele algo ou ideia que não seja possível, realmente – é apenas para as questões fora das obsessões coletivas, ou conceituais, como por exemplo as questões naturais, em que não se possa considerar possível que uma amputação de um braço humano levará à uma regeneração orgânica, e que um novo braço possa nascer no corpo do amputado, tal como “renasce” a cauda amputada de uma lagartixa. Só assim se dá a impossibilidade, a nível natural, ou quase isso.
Ainda dentro da obsessão cristã, há a própria possibilidade de a ressurreição existir, de um morto voltar a viver, que é o mesmo do que um defunto, um corpo inteiro decrépito volte a viver, e muito mais difícil de se imaginar do que um braço, que seria apenas suposto “renascer” de um organismo vivo, de uma mesma origem. Ainda assim, é mais facilmente aceito pelos cristãos que este defunto possa virar um corpo redivivo e sair de sua catacumba a perambular por entre os vivos do que aceitar que o braço ressurja em alguém.
Mas não há uma negação total, declarada e contestatória sobre a ressurreição, pois ela já está estabelecida pela obsessão, por mais sinistra e estranha que possa parecer. Nenhum cristão contesta abertamente isto e, se o fizer, terá problemas e será atacado pelos demais, ou excomungado, ou ainda pior, será cancelado. No passado não tão distante assim, poderia até ter sido queimado vivo. Hoje, é condenado ao cancelamento." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
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- Cansaço-
"Alheio a estes argumentos apresentados até aqui, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (1959 –), argumentou competentemente, ao escrever em seu livro “Sociedade do cansaço” que «a sociedade disciplinar de Foucault[1], feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de hoje. Em seu lugar, há muito tempo, entrou uma outra sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos».
E ele atribui a um excesso de positividade a raiz de todos os principais problemas individuais atualmente encontrados no sujeito, como a depressão, por exemplo. A questão é que ocorre mesmo que a busca pelo desempenho é tão profundamente enraizada em cada um que é mesmo forte a crença de que tudo o que pode ser feito, que o topo é mesmo logo ali e completamente acessível, e tudo isto será dado pela capacidade única que cada um tem consigo mesmo. Aprofundaram-se em nossa contemporaneidade as crenças acerca da própria autonomia e capacidades humanas.
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E isso faz estragos quando a depressão «… irrompe quando o sujeito de desempenho não pode mais poder. Ela é de princípio um cansaço de fazer e de poder. A lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível». Mas, devido à transferência da propriedade da responsabilidade de agência para o sujeito, este passou a acreditar que para ele nada deveria ser impossível também. E o choque do sujeito com a realidade e as impossibilidades que esta contém, indiferente do que o sujeito acredita ser capaz ou não, o leva à inconformidade com esta realidade inflexível, e o leva ao cansaço, à depressão, e a outros males ainda piores. Tal quando a criança descobre a verdade sobre o mundo, que não é um conto de fadas, e frustra-se consigo mesma, a se culpar.
Há, ainda, nos argumentos de Han que a busca pelas possibilidades esteja presente nesta «mudança de paradigma da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho», pois «aponta para a continuidade de um nível. Já habita, naturalmente, o inconsciente social, o desejo de maximizar a produção». E, por isso, podemos perceber que a maximização da produção é apenas uma das formas que levará às possibilidades, mas não a única. Mas, indubitavelmente, produzir é ofertar mais, variar mais, em uma época em que se produz primeiro para provocar o desejo, ao criar-se a demanda artificial com base nos desejos provocados. Não há risco, pois sempre a provocação do desejo acaba por ser certeira, dado que todos os desejantes estão docilmente preparados para serem excitados a consumirem mais e mais. Um ciclo perverso, e possivelmente desnecessário." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VII)
[1] Filósofo francês (1926 – 1984)
- Causação Imanente-
"Há também o determinismo divino do filósofo holandês Baruch Espinoza (1632 – 1677), a partir de sua brilhante conceituação de causação imanente, em que a causa está no efeito, e o efeito está na causa, a contrariar as teorias causais de Aristóteles, que coloca uma causa final, transcendental, como responsável última dos acontecimentos. Assim, Espinoza constrói uma teoria racionalmente consistente acerca da imanência, em detrimento da transcendência do Uno[1] neoplatônico e da transcendência do Demiurgo[2] platônico, ao defender que o homem está em tudo, e este tudo está em deus, que tanto afeta quanto é afetado. E, dentro deste contexto, não haveria para o homem a liberdade, mas sim um estar dentro de algo maior do que ele, mas não superior, e sim integrador de tudo." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
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"Uma das necessidades fetichistas contemporâneas é a afirmação da liberdade. E a necessidade de afirmar a liberdade se faz presente justamente pelo facto de não haver liberdade para se agir como se deseja, e isto é claramente percetível a todos, o que causa um problema de inconsistência estrutural, como já vimos, e que leva à hesitação, ao final. Se o sujeito, em seu modo de existir, crê na sua liberdade e acata esta condição como um ideal de existência, este mesmo sujeito pode, em seu modo de ser, clamar pelo que não tem, pois, o abismo separa um do outro, e o que é idealizado logo sucumbe à realidade de sua vida estrutural, ou até mesmo a impossibilidade de uma alocação dentro desta estrutura.
O facto é que a estrutura não se curva às idealizações de ninguém, e é isto que leva às dissonâncias nos acontecimentos. E isto ocorre não apenas no mundo comum e popular, mas também nos campos académicos, especialmente nas Humanidades, quase que sem exceções.
Há crenças académicas profundas na máxima autonomia do sujeito que supostamente possui capacidade para deliberar todas as suas escolhas e estabelecer modos de agir, individualmente, como origem primária[3] de seus próprios movimentos existenciais causados apenas por si mesmo, sem nenhuma influência para além de si, a priori. Isto é defendido genericamente como se nada mais houvesse para além do indivíduo a interferir em suas intenções, ou ações. E vem a ser reproduzido exponencialmente, como uma forma de perpetuar a liberdade da individualidade." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VII)
Notas: causação imanente
[1] «Plotino ensinou que existe um ser supremo, totalmente transcendente o "Uno"; além de todas as categorias do Ser e Não-ser. Seu Uno "não pode ser qualquer coisa existente", nem é simplesmente a soma de todas as coisas [comparado a doutrina dos estoicos da descrença na não-existência material], mas "é antes de tudo existente". Plotino identificou o Uno com o conceito de 'Bom' e o princípio da "Beleza".
O Uno engloba o pensador e o objeto. Até mesmo a inteligência autocontemplante (a noesis do nous) deve conter dualidade. "Depois de ter chegado no 'Bem', não adicione nenhum pensamento a mais: em qualquer adição, e em proporção daquela adição, você adiciona uma deficiência.". Plotino nega a senciência, consciência de si-ou qualquer outra ação (ergon) para o Uno». Poderá saber mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/Plotino#O_Uno, de onde foi retirado este trecho, em 17/09/2022. Há também uma conceituação mais formal a partir da página 368 de: Reale, Giovanni. História da Filosofia. Volume l. São Paulo: Paulus. 2003.
[2] «O uso filosófico e o substantivo próprio derivam do diálogo Timeu escrito por Platão em 360 a.C., a causa do universo, de acordo com a exigência de que tudo que sofre transformação ou geração (genesis) sofre-a em virtude de uma causa. Diferente do deus cristão, o demiurgo não cria ex-nihilo, mas a partir de um estado preexistente de caos, tentando fazer seu produto assemelhar-se ao modelo eterno das Formas, assim a atividade do demiurgo compreende observar as Formas, desejar que tudo seja o melhor ou mais similar possível ao modelo eterno e perfeito.». Poderá saber mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/Demiurgo, de onde foi retirado este trecho, em 17/09/2022. Há também uma conceituação mais formal a partir da página 137 de: Reale, 2003, ibidem.
[3] É justamente a existência desta “origem primária” a premissa que leva ao erro conceitual de uma causação primeira, mas já fugimos deste risco ao evocarmos o conceito da causação imanente de Espinoza.
- Certezas Ontológicas-
"O facto é que temos, na realidade, uma vaga noção do que existe no Universo, e uma suspeita certeza de que haverá como descobrir mais, no amanhã, pois o amanhã é ele próprio uma outra suspeita oriunda da certeza indutiva. E a isso chamamos de todo, como sujeito, e o eternizamos e universalizamos, predicativamente, antes mesmo que possa a vir ocorrer. O Universo é somente aquilo que conhecemos e que supomos existir, são as certezas ontológicas com o acréscimo de nossas crenças e desejos, vontades e intenções. Tudo representado metafisicamente em nossa mente por algo transcendente que parece ordenar o caos, e nada mais para além disso. Somos, em última instância, torcedores do time do amanhã e devotos das nossas origens desconhecidas.
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Devotos são antecipadamente crentes, e é isso que acabamos por nos tornar por não sabermos mesmo se houve um tempo zero, original, inicial, ou se nunca houve isso. Mas, admitimos que sim, que o Universo tenha surgido como a Teoria do Big Bang descreve, e que há mais de treze bilhões de anos uma singularidade “expandiu-se” e deu origem ao tempo e ao espaço. E continua a se expandir mais lentamente e que, no futuro, poderá voltar a se contrair, para uma nova singularidade. Não há certezas sobre esta teoria e provavelmente nunca as teremos enquanto vivos (e nem depois de mortos, obviamente).
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Talvez daqui há centenas de anos, a induzir que lá chegaremos enquanto suposta humanidade, estes escritos aqui possam ser utilizados em shows de humor. A debocharem da nossa selvageria intelectual sobre nossas origens, até porque terão conhecimento das novas fotos cósmicas para além das que temos. Ou provavelmente terão já hologramas reais do Big Bang ou similar e saberão “tudo” sobre o passado, com exatidão. Mas não poderão rir sobre os adjetivos e as qualidades que derivam destas instabilidades e incertezas temporais que temos hoje, pois elas também existirão no “futuro”.
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Eis o ponto: tudo o que deriva de questões ontológicas incertas sobre o passado, por algum processo complexo, passa a ser subvertido e atribuído como qualidades estáveis e certeiras em relação ao futuro. Mas, a certeza do passado não iliba a incerteza sobre o futuro. É uma projeção desconexa. O futuro será tão perturbador quanto hoje, ou talvez mais ainda, pelo que virá do conhecimento a ser adquirido como, eventualmente, a certeza de um fim que hoje desprezamos ocorrer.
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E é sobre este emaranhado conceitual das certezas ontológicas que a maior parte da Filosofia vem se fundamentando. Para provar o conhecimento particular do presente e do futuro em questões universais supostamente estáveis e certeiras. Enquanto nosso próprio Universo nem é estável nem certeiro, ao menos ainda. Quer-se dar uma predicação topo de gama a um sujeito que pouco conhece dele próprio. Que não sabe de onde veio e nem se estará por aqui em breve.
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Mas, há a fé, e talvez isto seja o verdadeiro problema e o maior dos entraves. Estas questões dadas como incertas, para os devotos pensadores presos pela fé à estrutura existencial e intelectual, são devastadoras. Seus pesadelos ocorrem com questões assim: como uma qualidade dita universal pode ser considerada estável se o Universo é ele próprio instável? Como podemos estabelecer uma ordem conceitual consistente dentro do caos da imprevisibilidade?" (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIII)
Certezas Ontológicas: Conteúdo Protegido.
- Cinismo-
"A melhor postura do Cinismo é quando se discursa sobre algo, argumentativamente, em termos que vão á exaustão conceitual, dentro de todos os recursos possíveis, mas, ao final do seu discurso, quando todos estão convencidos de sua argumentação, como se estivessem, enfim, em contato com a verdade última das coisas, e o filósofo é aplaudido efusivamente, de pé, por longos minutos, com brados e flores jogadas a seus pés, numa comoção generalizada e, após todos cessarem os aplausos, este se volta novamente à fala, antes de deixar o púlpito, e diz à plateia que ainda o aplaude, depois de pedir silêncio, na mesma “voz confidencial e discreta” como foi descrita por Žižek que enquanto filósofo e orador, por vezes, nos discursos proferidos, ele filosoficamente mente um pouco, mas só um “pouquinho”.
Pois o verdadeiro Cínico não quer mesmo convencer ninguém, quer é que todos tenham em si todo o discernimento que ele julga ter e a dúvida, assim, é algo sempre desejável. O argumento bom é aquele contrário, que não leva a nenhuma certeza, mas sim a uma maior capacidade intelectual. Se o cético não acredita ser possível alcançar a verdade, e o sofista não acredita que exista a verdade, o neocínico acredita que os dois, tanto o cético quanto o sofista, podem estar certos conforme a perspetiva em que estejam, assim como também todos os outros que discordam destes, e possuem suas teorias acerca da verdade.
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Para o Cínico, as frases precisam estar vazias, para que haja o perspetivismo desejado. Frases perfeitas são formas funcionais sem conteúdos tidos como verdades absolutas presas a elas. Há que se perceber bem que a ingenuidade, se definida como credulidade excessiva, por vezes, é algo mais aceitável do que a presunção pela apreensão de alguma credulidade absoluta e irrefutável que, mais cedo ou tarde, acabará por cair à terra. O ingênuo é caracterizado por ter uma credulidade excessiva em algo. Um Cínico, verdadeiramente Cínico, assim, não poderia ser ingénuo, pois não se apega a nada, pelo contrário, é um desapegado por definição. Há uma inconsistência conceitual na crítica de Žižek ao atribuir ingenuidade aos Cínicos, visto que todos, exceto os Cínicos, estão atrelados a seus papéis na estrutura.
Há muitas histórias sobre os filósofos Cínicos do passado, mas de onde vem o Cinismo?
Sócrates foi, sem dúvida, o marco da Filosofia, o que a divide entre antes e depois dele. Ao aceitar passivamente sua pena de morte por envenenamento e, assim, pelas suas ações, a inspirar os pilares do que consideramos ser a Ética, teve em seus discípulos o seu maior legado, pois, se antes os desafetos políticos teriam de lidar apenas com ele, Sócrates, depois de sua morte seriam seis os discípulos que estariam efusivamente a falar por ele. Platão foi o mais famoso, obviamente, mas todos os outros cinco vieram a fundar escolas filosóficas.
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Depois de Platão, o mais relevante foi Antístenes, que veio a fundar o Cinismo. Sócrates, assim como Antístenes, tinham uma coisa em comum: não davam nenhum valor às escritas, pois desprezavam o valor de tudo o que não fosse uma filosofia prática, verbal, feita no devir, argumentativa, em que a verdade emergia tal como um parto, pela maiêutica, a elaborar questões que levariam o interlocutor a duvidar de suas próprias certezas para, assim, atingir um conhecimento mais próximo do que seja a verdade, se não ela própria. Mas, ainda assim, existem diversas obras que foram atribuídas a Antístenes, mas que se perderam no tempo, em sua maioria.
Seria o trabalho de Platão tão rico e valioso se Sócrates tivesse se dado ao trabalho de escrever seus próprios pensamentos? E o que seria se os trabalhos escritos de Antístenes tivessem sido poupados e chegados até os dias atuais, tais como os de Platão? Algo que nunca saberemos, mas a questão é tentadora, para aquém de toda a magnitude e relevância de Platão, que é incontestável. À época, havia uma predileção pela oralidade, em relação à escrita. Platão, inclusive, dividia-se entre as duas e foi assim que passou a dar relevância à escrita, felizmente, que nos possibilitou seu imenso legado. Outra questão, seria se Platão tivesse escrito tudo sobre sua Filosofia verbalizada, o quanto mais não teríamos hoje. Eis o paradoxo da oralidade: é tão mais excelente pela qualidade quanto mais efémera.
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Mas o que sabemos que tanto Sócrates quanto Antístenes e seus discípulos Cínicos davam imenso valor a uma filosofia prática, funcional e aplicada às questões reais e verdadeiras da vida, que dela surtissem ferramentas para lidar com os problemas que é o viver, tal como o que ocorreu com Sócrates, por exemplo. O Cinismo, aliás, é tido por muitos como o “pai” do que veio a ser conhecido como o Estoicismo, que atualmente é a mais “queridinha” escola filosófica, ao menos para os mais afins com o neoliberalismo, embora muitos não desconfiem desta velada dupla condição.
Por isso, o conceituado historiador da Filosofia, Giovanni Reale, destaca que «Antístenes destacou sobretudo a extraordinária capacidade prático-moral de Sócrates, como a capacidade de bastar-se a si mesmo, a capacidade de autodomínio, a força de ânimo, a capacidade de suportar o cansaço. Limitou ao mínimo indispensável os aspetos doutrinários, opondo-se duramente ao desenvolvimento lógico-metafisico que Platão imprimira ao Socratismo»[1].
Há um reducionismo natural em toda a filosofia Cínica, em que o conhecimento é colocado sempre em perspetiva, onde tudo é explicado a partir de analogia para que, assim, seja explicado um determinado contexto em que o conhecimento se dá, a partir de um nome que cada coisa particular possui, e nada mais além disso. As coisas complexas são explicadas pelas composições das coisas simples e, sempre, como dito, em perspetiva. E isto não agrada aos crédulos filósofos que acreditam na precisão conceitual e na exatidão da verdade que pode ser atingida, tal qual uma demanda pelo Graal que estão a empreender desde sempre. Mas, como um neocínico, digo que eles estão certos, ainda que sob a perspetiva deles, embora tanto eles, quanto eu, poderemos mentir um pouco, às vezes, mas só um “pouquinho”.
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O Cinismo foi um movimento, antes de tudo, de anticultura. E a cultura, naquele tempo, era a investigação teórica e abstrata, do estabelecimento de conceitos, de estabelecer modelos sobre o conhecimento e sobre o mundo. Os Cínicos queriam algo essencialmente pragmático. O mais famoso dos Cínicos foi mesmo Diógenes de Sinope, que diziam viver em um barril e nada possuir, e era este o seu marco anticulturalista, de negar todas as convenções sociais e reduzir suas posses ao mínimo possível. Foi o primeiro minimalista da história, e o precursor dos movimentos da contracultura, assim reconhecidos nos anos 60, como por exemplo os dos hippies. Para Diógenes, a liberdade para agir e se expressar era o maior bem, além da liberdade de tudo o que pode prender alguém a uma estrutura, que é fortemente negado por ele." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
[1] Reale, Giovanni. História da Filosofia. Volume l. São Paulo: Paulus. 2003, pg. 106.
Cinismo: Conteúdo Protegido.
- Compatibilismo-
Há um ensaio escrito sobre o a ação humana, em relação ao determinismo, livre arbítrio e compatibilismo, especificamente. Clique aqui para saber mais.
"Há ainda o compatibilismo, que mescla o determinismo com o livre-arbítrio, com uma “relatividade” para cada escolha que se faz, a assumir que certas deliberações serão mesmo determinadas, e assim o livre-arbítrio não será exequível. Relatividade é um termo mais conhecido, mais usual, que antagoniza com a universalidade. Pois enquanto a universalidade se aplica a tudo o que há, a relatividade pressupõe que a aplicação seja apenas ao que se está a referir. Nem um, nem outro, portanto, são lá muito assertivos.
O melhor termo para superar este problema criado pela linguagem, já apontado por Nietzsche, é o perspetivismo. Pois, nem é algo meramente relativo, vazio e individual, tampouco universal, mas contempla algum grau de universalidade (portanto, sem uma universalidade em si) e algum grau de relatividade, sem ser totalmente relativo. O perspetivismo considera sempre um contexto, um conjunto de condições e situações que são relevantes para o conjunto considerado. Por isso, os sentidos dos termos que utilizarei serão sempre estes: uma universalidade convencionada, mas em perspetiva, ou uma relatividade conceitual, também em perspetiva, ou apenas a própria perspetiva."
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"Ser livre para agir requer, então, e em síntese, ter um número elevado de opções elegíveis para si, pois se há apenas uma única opção, não há como exercer uma liberdade verdadeira, visto que com apenas uma opção há, a princípio, apenas duas alternativas: agir ou não agir. É desejável mais de uma opção, para haver uma deliberação verdadeira sobre uma delas. Agir ou não agir não é algo relevante aqui.
E toda esta mensuração da liberdade de ação se dá dentro das dimensões do espaço e do tempo acessíveis e constituídas e aceitas como as das opções possíveis, pois não se pode considerar como opções aquelas que forem futuras ou distantes ou condicionais. Devem ser opções viáveis e imediatas, prontas a serem executadas. E, além disso, há de existir a plena capacidade de deliberar sobre estas, ou pelas melhores ou pelas mais convenientes delas, e tomá-las para si como escolhidas, a partir dos melhores juízos do sujeito. Seria isto, assim considerado, supostamente uma boa escolha, uma boa deliberação, com base na liberdade e na autonomia." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
- Consciência-
"A consciência nos parece um fluxo de muitas coisas – principalmente pensamentos – e que também nos parece que não pode ser apreendida completamente em toda a sua cadeia de acontecimentos. Ela é percebida como um fluxo constante que passa por infinitos pontos, lugares e dimensões, mas é mais percebida na parte que se situa entre os conteúdos mentais apreendidos no tempo e no espaço e as possibilidades que o sujeito tenha para si, e isto significa que a consciência está na imanência, mas a buscar a transcendência dentro do possível, ou quiçá para além dele.
Neste fluxo, estar consciente é perceber tudo o que nele acontece, que é o que é dado como existente, e que se constitui tal qual a intencionalidade brentaniana – a inexistência intencional – em que a existência de “x” se dá pela consciência acerca de “x”, e não necessariamente pelo conhecimento de “x”. E, a propósito, “x” pode ser tanto imanente quanto transcendente, tanto existente quanto não existente.
É exatamente isto que é feito pela consciência, em síntese: projetar tanto o mundo como o conhecemos e percebemos, de acordo com os conteúdos mentais que possuímos e, em relação às possibilidades, o que ela faz é transcender a estes mesmos conteúdos para atingir uma previsibilidade do que poderá vir a ocorrer – a consciência define tanto as possibilidades enquanto calcula suas probabilidades, no caso de uma possibilidade vir a ser uma oportunidade. Quando prevemos algo, partimos do que conhecemos (e temos) para o que também conhecemos (mas sem que tenhamos isto, necessariamente). E prever algo é se aproximar ou se projetar às possibilidades. Por isso a consciência é uma projetora de possibilidades – e isto nos deixa presos ao devir para que tenhamos a máxima afinidade com as possibilidades que poderão ser alcançadas, oportunamente.
O tempo, assim, é percebido pelos instantes apreendidos como uma oportunidade. E a consciência se deixa enganar, a acreditar que o tempo seja uma oportunidade eterna, pois assim ela está, a se instalar dentro do instante, como se este fosse realmente a própria eternidade. A consciência, portanto, é tola, tal como o pobre tolo, de Pascoaes, pois o que realmente a consciência “quer” é adentrar ou ultrapassar o devir e isto significa ampliar sua capacidade de prever as coisas que ocorrerão, de saber antes o que está para ocorrer.
Há uma função de sobrevivência nisto, de inteligência aplicada, e nada é despropositado, mas sim fruto de milhões de anos de evolução. É disto que estamos a tratar, como já vimos, de trazer a transcendência para a imanência, de trazer o futuro para o presente, de controlar e de mitigar ameaças. É o que é, mas não adentraremos às questões mais profundas acerca da consciência e seus mecanismos, ao menos acerca do muito pouco que já foi descoberto sobre isto. Enfim.
Se a consciência pode ser conceituada assim, a autoconsciência será a consciência da própria consciência, que são as relações racionalizadas do sujeito com seus conteúdos, consigo mesmo, com os existentes e inexistentes, que são todas as oportunidades que a consciência apreende para si.
E isto inclui a consciência não apenas das representações mentais das oportunidades apreendidas, mas também dos próprios juízos e das próprias emoções.
E, se a autoconsciência se baseia nas relações, é preciso perceber um tanto acerca das fantasias envolvidas, próprias ou projetadas. A autoconsciência é uma instância superior – a única capaz do mais alto exercício racional, moral e ético – e voltada para o que se defina, se busque e se aceite como o que seja considerado o bem maior." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XI)
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"Mas, como se dá a diferenciação entre um indivíduo e a estrutura que o está a abrigar?
O que é preciso perceber são mesmo as relações percetivas e conscienciais de cada um em relação às estruturas as quais se está inserido. E o primeiro passo é definir seu estado de alocação existencial – se está a “existir” mais para si ou mais para a estrutura, ou ainda se mantém em equilíbrio entre a si mesmo e à estrutura. Posteriormente, será preciso perceber se possui uma atividade mais concentrada em sua subjetividade (sempre mais rígida) ou na objetividade (mais presente, flexível e com objetivos materiais), ou talvez tudo isto poderá estar também em equilíbrio.
São as primeiras questões cruciais para se reencontrar a si mesmo dentro de um cenário alegórico que pode ser produzido um mapa da estrutura e marcação do ponto de localização e dos trajetos que se faz dentro deste mapa, E isto significa uma possibilidade de saúde consciencial mais interessante a quem possui interesses no saber existencial.
Há que se perceber que após esta consciência acerca da própria alocação, haja a consciência da consciência, a autoconsciência, que é um afastamento de todo o relacional, pela abstração, para verificar as teias que existem entre si e todo o resto. Esta capacidade da autoconsciência é que irá definir se a relação é boa ou não – pois o que interessa, mesmo, é a forma como as relações estão estabelecidas que darão elementos para uma escala de valor do relacionamento, e não o conteúdo, que pode ser mais facilmente transformado e é extremamente volátil. E é isto que o sujeito completamente estruturado perdeu: a noção das teias que o está a prender à estrutura. Uma teia tão sutil que julga estar livre, ser livre, sem nenhuma ação para além das suas." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XII)
- Consentimento-
"Afinal, era uma relação sexual e comercial bem estabelecida, ao menos como podemos supor. E aí há o problema do consentimento, o ponto crucial de tudo isto.
Pois não se pode deixar de mencionar que se há o consentimento entre as partes, tudo é válido. A questão conflituosa, nestes casos, e gravíssima, é que para haver o verdadeiro consentimento deve haver equilíbrio entre as partes e isto significa que a fantasia não pode ser usada como relação desigual de poder, miseravelmente, e de forma covarde. Nenhuma das partes pode estar vulnerável, em desvantagem em nenhuma forma. E, por isso, são raros os casos de prostituição que sejam relações equilibradas e devidamente ajustadas e assim devem mesmo serem combatidas todas as formas de exploração sexual, caraterizadas por serem não voluntariosas ou desiguais.
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Pois, havendo a exploração, há um abuso evidenciado que transcende à própria fruição pela fantasia. Uma pessoa em condições de imensa vulnerabilidade, seja a que “paga” ou a que “recebe”, e geralmente a que recebe, pode ser facilmente dominada não pelo que está a fantasiar, mas pelo mínimo que precisa como necessário para sua sobrevivência, ou sobreviver à coerção, em uma instância em que não deveria haver nada mais do que elevar esta pessoa à uma condição de dignidade mínima e liberdade para considerar o que fazer, sem nada mais lhe exigir até que possa decidir por si, ainda que dentro de todos os pontos exteriores que sabemos influenciar tal decisão.
Por isso, há uma dificuldade para se perceber a diferença entre o que é fantasia como um jogo de sedução, em que o prêmio é o próprio proveito da relação, e o que é estritamente um jogo mesquinho e egocêntrico de poder, em que o prêmio é a mesquinha aquisição e subjugação, que não se constitui como uma verdadeira relação. É um crime, e dos piores. Mas, para os puritanos, ou puritanas, que desejam menosprezar quem se prostitui, é bom perceber antes que isso também se dá em muitos casamentos firmados nos mais “dignos” templos religiosos, lamentavelmente.
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O objetivo maior de tudo o que se está a apresentar aqui é apenas a forma como os relacionamentos se estruturam, realmente. O efeito colateral é que algumas ilusões acerca das próprias relações poderão se desfazer. Mas, também, poderão ser fortalecidas quando se passa a perceber que é possível nutrir relacionamentos de forma a aumentar sua duração e intensidade. Nós, os neocínicos, não julgamos moralmente nada, pelo contrário, buscamos expor o que há, criticamente, mas sem os juízos que devem ocorrer apenas pelas perspetivas de quem está envolvido nas situações analisadas. Pois, universalizar verdades ou procedimentos é algo totalmente oposto ao Neocinismo." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IX)
- Conspiração-
"Mas é bom perceber algo mais, desde já, e isto será contra o senso comum das pessoas mais afinadas com as teorias da conspiração. Muitas pessoas ainda acreditam que a ideologia seja algo artificial e que foi criada por algumas poucas mentes “malignas” para manipular e controlar os demais. Pensam que existam pessoas associadas assim, que desejam obter ou se manter no poder ou no controle do mundo. Algo parecido aos vilões enfrentados pelo agente secreto britânico, Sir James Bond. Não é assim que ela é “criada”. Até podem existir pessoas assim, até podem ter tais interesses, mas são incapazes de criarem uma ideologia global, mesmo sem termos o agente 007 connosco.
Tais crenças humano-criacionistas da ideologia, que mais parecem um delírio coletivo, mas que atraem a cada dia mais adeptos, invariavelmente os devotos morais, pervertem tudo. A perversão se dá tão fortemente acerca dos conceitos de ideologia que, talvez, poderia até mesmo ser uma dissimulação provocada por alguma funcionalidade dela. Como a ideologia precisa se ocultar, é coerente que existam em si funções para isto: as teorias conspiratórias são o resultado funcional desta perversão conceitual. Assim, esta função seria parte da própria ideologia que estes adeptos façam parte, mas que acreditam que estejam a combater. O que tentam mesmo é impor uma derivação ideológica mais reacionária da mesma ideologia, mas sem saberem, ao criarem ameaças que não existem.
E isto causa confusões e faz com que todos que estejam nela, e que a percebam existir e a atuar, nunca se apercebam o quanto estão sob o seu efeito. E isso se dá tamanha a insensibilidade com o que há para além deles mesmos.
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Pois, não a perceber bem é o mesmo que percebê-la de forma equivocada ou incompleta, o que lhe é muito conveniente para se manter oculta. Ou você acredita que alguém que esteja a jogar, sem conhecer todas as regras e estratégias, terá chance de ganhar dos outros jogadores que sejam exímios conhecedores? Pois é. A ideologia faz parte deste um jogo, jogado desde sempre, e sem que a maioria conheça suas regras. E, a bem da verdade, nem mesmo percebe que esteja a jogar. Só percebe quando a “derrota” é anunciada e precisa abandonar a posição que estava a ocupar. Daí, já é tarde, e a queda causa sempre seus estragos. Pois muitos destes adeptos das teorias das conspirações são parte destes que estão fora do jogo em que estavam a jogar, sem o saber.
Descobriram a ideologia, e buscam voltar ao passado, e por isso o reacionarismo extremado e conspiratório. A conspiração é, para eles, algo novo que está a lhes afetar a vida. Não percebem que sempre estiveram sob o jugo de algo que não desconfiavam.
E isto é uma das coisas mais impressionantes que há, visto que somente é mais fácil perceber a ideologia apenas quando está a se observar uma estrutura distante de si mesmo, pois nunca há tal facilidade na qual se está inserido, que parece não existir para quem está dentro dela. Sim, tal qual o nosso fantasma!" (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XVI)
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- Crenças-
"Quantos tratados morais ou éticos foram grandes promessas que acabaram por ficar destinados às poeiras das estantes? Logo ficaram obsoletos, pois tudo está nos movimentos, nas qualidades.
Pois, se há uma crença acerca de algo, como por exemplo “a vida vale mais”, há parâmetros acerca de muitas outras coisas. Pois uma crença, mesmo profunda, é sempre relacional, sempre suportada por outras crenças e desejos oriundos delas. E que igualmente vira suporte para tantas outras, sem se conseguir separar crenças absolutas, independentes e incondicionais. Estão conectadas em uma estrutura, totalmente interligadas. Não conseguiríamos tê-las, em estado absoluto, sem que as formássemos através de processos da autoconsciência: das informações, educação e experimentação, pois assim são todas as crenças que carregamos connosco.
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As crenças começam a serem formadas desde tenra idade, pela convivência e aprendizado, e iniciam a construção do que é chamado de subjetividade. Ou de mundo interior, para o que seja verdadeiro ou falso, bom ou mau, etc., seja apurado e se formem os primeiros juízos sobre a realidade. Estas crenças consistirão na capacidade consciente de se chegar ao conhecimento, ou no que seja desejável ou indesejável. As primeiras formas dos exercícios racionais dos juízos adquiridos, e que constituirão o primeiro filtro acerca de si e do mundo. Pelas crenças, surgem simultaneamente os desejos, que são oriundos das relações, do conhecimento do outro que se está a interagir, pela diferença, pela falta, como visto, na busca das possibilidades.
Como alguém poderia assumir uma crença em algo se não houvesse uma necessidade subjetiva de crer, que não deixa de ser um desejo funcional, de se fazer um juízo, ao menos, acerca de sua veracidade? E isso se dá no fluxo das oportunidades da consciência, a se ter pela contingência, ou se a desejar pelas pulsões, quando se precisa ou se quer apreender algo. É desta necessidade, de lidar com a escassez ou com a multiplicidade das oportunidades, que dá origem à nossa complexidade, ou da complexidade que passamos a atribuir ao mundo.
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Se o desejo for falso, pode-se descartar a crença prontamente, que vira periférica. Mas, o desejo de que algo seja verdadeiro, ainda que este algo seja desconhecido, mas que já exista algum conteúdo mental acerca deste algo, levará o sujeito a manter em si um vazio a ser completado pelas outras oportunidades que se apresentarão e que que precisam se adequar a tais necessidades de desejos. O que não se tem, mas se deseja, sempre se busca, ainda que seja um desejo pelo próprio desejo.
Se a crença for verdadeira, assume-se ser ela o caminho para a possibilidade, ou a própria oportunidade, e vira profunda e relevante. O processo nunca é em vão. O algo, ou o objeto considerado pelos juízos, precisa ser sempre acreditado, validado. E, se há necessidade de verificar a veracidade, já está aí um desejo constituído. Pois, se se deseja algo, é por que se acredita que há ali, no mínimo, a sua existência na mente, na intenção de existência. E, assim, assume-se previamente a sua condição de veracidade, ou validade, mesmo que a coisa, em si, não exista mesmo. Ninguém deseja o vácuo, embora muitos se sintam um. E é este vácuo a dimensão que aguarda ser preenchida, pelas crenças e desejos existentes." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XI)
- Crise Existencial-
A crise existencial é um processo complexo decorrente dos embates dos juízos críticos com os morais, a partir de certos acontecimentos (ou até mesmo com os não-acontecimentos).
"Nada mais faz o mesmo sentido, se é que alguma vez tenha feito. Assim, assumimos que nunca fizemos o que realmente queríamos fazer, mas sim o que esperavam de nós, e nos percebemos como diferentes do que somos, do que sempre fomos. Mas parece que o tempo não corre, parece que o estranhamento está a ocorrer como se tudo estivesse a acontecer no momento da vitória. Coisas de dez, vinte anos atrás, parecem que estão a ocorrer naquele exato momento que estranhamos e hesitamos. O estranhamento tardio não perde sua característica de implodir a perceção do tempo, e o passado se junta ao presente.
Alguns chamam de crise existencial, como se fosse um evento único e isolado a ocorrer uma, ou algumas poucas vezes, ao longo da vida. Ocorrem, provavelmente, diariamente e tanto mais quando a consciência é mais dotada de qualificações intelectuais preditivas mais desenvolvidas. Pois mentes assim passam a fazer mais uso de seus juízos críticos sobre a realidade que se apresenta a ela, por assim dizer. A questão é saber quando se está a ignorar os estranhamentos e os riscos envolvidos." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. II)
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"Mas isto tudo passa para o indivíduo – seus deuses se desintegram e perdem o sentido de existirem, em algum momento de suas vidas, como se o tempo diluísse anestesicamente as angústias que ficam abafadas até que se voltem a se manifestar, e a vida parece que passa a correr dentro de uma normalidade para sujeito que prossegue sem nada que denuncie ou exija assumir sua condição de vulnerabilidade evidente frente às forças estruturais. Mas até que surjam outras fissuras, que inevitavelmente surgirão, mesmo que tardiamente, entre o que a sua imaginação passa a emitir como ideal de vida, ou necessidades intrínsecas para sua existência, e a própria realidade implacável e camuflada pela estrutura.
Esta realidade, uma completa desconhecida, em algum momento é vislumbrada pelo distraído sujeito, através de uma falha na estrutura e se mostra, então, tal como ela é, verdadeiramente, sem as distorções, cores, brilhos e contrastes que foram construídas para lhe esconder, tal como um cenário que funciona para entreter, representar e iludir." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
- Dança Dialética-
"...E isto se dá e sempre se deu pela dialética. O erro foi manter a dialética apenas nas esferas filosóficas das práticas intelectuais academicistas quase sempre distantes do cotidiano. Se há uma boa razão para popularizar a Filosofia, há que se popularizar primeiro a dialética. A dialética é como a dança de Nietzsche, o que daria um ritmo mais favorável à vida para aqueles que a dançassem, pois é parte das construções, das métricas racionais, um tanto do tempero que daria gosto sedutor ao pensamento. Já bastaria este reconhecimento sinestésico para um grande progresso intelectual coletivo.
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E é a dialética a confrontação de ideias, no palco das argumentações, através do diálogo, ou mesmo do debate, que sempre abre caminhos para depurar as convenções que existem, por vezes insuficientes de explicarem o que se deseja. Por isso, entre a imanência e a transcendência faz-se necessário sair do mundo como o conhecemos, tangível, que nos foi definido como único possível, ou talvez o melhor possível, e ascender para o mundo mental, seja este próprio ou coletivo, e isso se dá pela consciência, pela abstração, pela dança nietzschiana. E é um caminho desbravador, com base na linguagem, na livre exploração, mas que nem sempre levará aonde se esperava chegar, mas também sempre leva a melhores oportunidades, no mínimo, e com consciência acerca delas.
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A dialética talvez seja a melhor ferramenta que realmente eleva a compreensão humana a níveis superiores. É ela quem dá uma dimensão entre o que seja imanente, transcendente, possibilidades, oportunidades, ameaças e tudo o mais. Ainda que não se descubra tudo, acabará por perceber que nem tudo lhe é conhecido e, assim, já não possuirá tantas certezas, que antes lhe levariam a possíveis erros. Conhecer a própria ignorância é algo mais desejável do que o conhecimento da suposta sabedoria que geralmente nunca se tem." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. X)
Dança Dialética: Conteúdo Protegido.
- Deliberação-
Sobre a deliberação: "Não se deve esquecer, portanto, que ter a consciência sobre algo é suficiente para que haja a intencionalidade acerca deste algo. Ter a consciência da existência, das possibilidades, não requer que a coisa exista como oportunidade. Assim, alguém que esteja no topo, poderá não ter mais algumas opções para si sobre algo, mas saberá que este algo existe, pois carrega consigo esta consciência e também a própria consciência acerca da privação deste algo, o que não pode ser tão confortável assim para quem julga ter condições de possuir tudo o que desejar. São as complexidades humanas, afinal, que habitam em nós em suas contrariedades.
Mas, pensemos nesta suposta vida dos que estejam alocados no topo. Quando se precisa agir, ainda que sob a tutela da astúcia da razão, o que ainda propicia uma suposta sensação de liberdade, mesmo assim pode-se sempre contratar uma outra pessoa que decidirá por si, que é um “personal professional deliberator”, alguém capacitado para escolher por alguém que não quer ter este esforço deliberativo. E supostamente, assim, o número de decisões do abastado sujeito que não quer mais decidir cairá, tanto mais se esteja no topo ou próximo a ele.
A estrutura a sua volta, pelas ações dos subordinados ou empregados, tratará da maioria dos assuntos cotidianos que lhe dizem respeito, e pouco sobrará para decidir ou escolher, como se tudo viesse automaticamente ao seu encontro. A vida no topo parece correr de forma que supostamente terá todo o tempo do mundo, ao que parece, sem as rotineiras e desgastantes decisões que todos os simples mortais precisam tomar. Mas, os decisores profissionais, ainda assim, estarão na instância de deliberarem, pois a deliberação precisa ser realizada, sempre, haja o que houver, seja por quem for.
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O estatuto de deliberar pode, então, mudar de mãos, mas não se extingue, todavia. Ainda que as escolhas não sejam feitas pelo sujeito, ele tem consciência de todas elas, e são deles as consequências, as resultantes. Ele escolheu não escolher, mas nunca poderá escolher não agir, pois, se nega uma deliberação que feita para si, já está a renunciar sua escolha anterior, de não escolher diretamente, ou não escolher nada mais, ao mudar de atitude e deliberar a favor de outras escolhas, que sempre estiveram consigo, e sempre estarão, pois não há como fugir delas. E isto pode ser considerado como ilusão, portanto, pois o sujeito sempre estará a lidar com suas possibilidades, obrigatoriamente. A vida “fácil”, sem escolhas, é uma ilusão trabalhada à perfeição pelas obras literárias e teledramaturgias.
A facilidade da vida, no imaginário popular, passa a ser considerada como proporcional à ociosidade, que resulta da menor complexidade de se deliberar sobre questões diversas. Pois escolher é sempre correlacionado aos desejos, ao que se quer. E, como se sabe, este é um campo minado e complexo de se lidar. Por isso, a felicidade suprema pode ser interpretada como o não mais desejar nada, ou não mais deliberar sobre nada, pois será assim quando tudo se tem ou quando nada mais lhe faz falta. Foi exatamente assim que os Cínicos da antiguidade buscaram como sua melhor forma de viver a vida, ao virarem as costas para todas as formas organizadas de estruturas que os levassem a ocupar posições deliberativas." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
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"O facto é que a estrutura não se curva às idealizações de ninguém, e é isto que leva às dissonâncias nos acontecimentos. E isto ocorre não apenas no mundo comum e popular, mas também nos campos académicos, especialmente nas Humanidades, quase que sem exceções.
Há crenças académicas profundas acerca da máxima autonomia do sujeito que supostamente possui capacidade para deliberar todas as suas escolhas e estabelecer modos de agir, individualmente, como origem primária[1] de seus próprios movimentos existenciais causados apenas por si mesmo, sem nenhuma influência para além de si, a priori. Uma herança da ideia da máxima racionalidade, capaz de tudo fazer e promover. E isto passou a ser defendido genericamente desde as teorias do livre arbítrio agostinianas e mais acentuadamente com o Iluminismo, a chegar aos nossos dias, como se nada mais houvesse para além do indivíduo a interferir em suas intenções ou ações. E vem a ser reproduzido exponencialmente entre a pretensão humana em relação a si mesma e a fé extrema na autossuficiência da sua própria racionalidade, tudo sempre como uma forma de afirmar uma liberdade já tão combalida de uma individualidade que nunca operou como desejada.
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Pensamentos assim são como as viagens psicadélicas coletivas com as drogas mais alucinógenas que existem ou já existiram, tomadas em dosagens concentradas, visto que estamos no terceiro milênio depois de Cristo e com todo um manancial de dados e factos que nos possibilitariam uma reveladora releitura de nós mesmos antes mesmo de buscarmos uma tese última sobre algo, ao menos nas Ciências das Humanidades.
Se assim for feito, em revisão, rapidamente poderemos perceber que o sujeito autônomo e deliberativo não será nada mais do que aquilo que sempre foi: uma utopia – e das mais obscenas que existem, pois nunca foi colocado em causa que há sempre algo mais presente nas deliberações tomadas e tidas como individuais, e que a própria autonomia seja ela mesma uma outra idealização bestial. Somos todos, mais ou menos, replicadores e reprodutores de algo que nos transcende, o que não é fácil de se aceitar, ainda mais quando se imagina profundamente racional." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VII)
Notas sobre a deliberação:
[1] É justamente a existência desta “origem primária” a premissa que leva ao erro conceitual de uma causação primeira, mas já fugimos deste risco ao evocarmos o conceito da causação imanente de Espinoza.
Sobre a deliberação: Conteúdo Protegido.
- Desejo-
"O poder dos motores-imóveis da vida, como as celebridades, é o maior de todos, pois causam sem causar, impávidas, a atraírem tudo o que há. Todas as portas se abrem, todos os tapetes vermelhos são acessíveis. E, ao atrair tudo o que há, atraem também todas as possibilidades, ou passam a serem reconhecidos pelo conjunto de possibilidades que julgam possuir. É disso que se trata, em última instância. A dimensão simbólica do poder é o da atração, numa dimensão supraerótica, que só as celebridades ou influenciadores conseguem atingir, ainda que em pequenas frações. Eis a grande síntese da atração: poder como meio, possibilidades como fim. E nisso, o desejo, e principalmente o desejo pelo desejo do outro, pois isso significa que o outro, a desejar, estará a dar ao desejado o status de poder almejado.
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Pois sempre é assim: o verdadeiro interesse pelos sobre-humanos (ou pelos sobre-pets influencers) é a fantasia dos simples mortais. Desejam o desejo dos seguidores e, assim, a relação da fantasia também é inversa. É, afinal, um relacionamento, entre os deuses e os mortais, como sempre. Ainda que atualmente, os sobre-humanos existam mesmo, que é a versão atualizada dos semideuses, diferente dos deuses, que nunca existiram realmente, até porque nunca tiveram um perfil próprio nas redes sociais, e que nossos contemporâneos sobre-humanos possuem fartamente, e todos muito bem produzidos. O homem evoluiu, ficou mais ambicioso, e está a criar os sobre-humanos, e não se satisfaz mais apenas com os semideuses. Percebe-se cá a imensa pretensão do imaginário atual.
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Pois estes seres sobre-humanos perfeitos e imperfeitos possuem também, neles, toda a transcendência gerada pela necessidade do consumo e da saciedade, em que buscam realizar-se em puro ato, de tudo o que seja legítimo e original, e querem apreender todas as outras qualidades e atributos que um produto possa ter. Mas, se assim não for possível apreender o que é autêntico, há uma transposição, feita pelos incapazes de apreender estes produtos autênticos, para uma ilusão das réplicas que podem adquirir. Se não é possível o original, busca-se um equivalente. Passam a acreditar que o que é falso e inferior em qualidade possa ser a mesma coisa do que o autêntico, desde que apreendido devidamente, quando postado nas suas próprias redes sociais.
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É sobre isso mesmo que estamos a tratar: das possibilidades, até mesmo da transposição de atributos, em que o falso possa vir a ser o verdadeiro. E tudo pela falta, pela diferença, pelas possibilidades, da necessidade de se ir da potência ao ato. Este é o nome da dinâmica principal que estamos a presenciar, dos que querem poder ter possibilidades para tudo. E é deste jeitinho mesmo.
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E assim, tudo o que existe como possibilidade é o que faz o sujeito se movimentar para chegar próximo desta aquisição – de ser ou de ter, e que passa a ser seu objeto intermediário para saciar seu desejo. A possibilidade contém em si o belo, o perfeito, o desejável e é o gatilho para fazer surgir o ser desejante.
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Mas o desejo não está na possibilidade. Pois quem deseja mesmo é o desejante, aqui considerado como humano, mas não apenas, e que tem em si a sede deste desejo, que é próprio de si, e que assume como parte de sua individualidade, pois o desejo passa pelo crivo de seus juízos mais profundos – a diferença fica, assim configurada, como a própria essência da individuação, da correlação de si para com os outros, em cujo vácuo se percebe a possibilidade, que será sempre algo que poderá preencher este vazio. Mas vale, então, uma breve consideração conceitual acerca da diferença." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VIII)
- Determinismo-
Há um ensaio escrito sobre o a ação humana, em relação ao determinismo, livre arbítrio e compatibilismo, especificamente. Clique aqui para saber mais.
"Quem defende o determinismo defende que a suposta escolha da pessoa é ilusória, pois considera que não haja opções verdadeiras ou realmente acessíveis para o decisor e invariavelmente este sempre escolherá o que já foi determinado por outros fatores não meramente racionais, antecipadamente, de forma declarada ou não, e que acarretará em uma previsibilidade total para todas as suas ações. Assim, algumas das causas apontadas para os defensores deste determinismo poderiam ser as biológicas, orgânicas, sociais, circunstanciais, educacionais, cívicas, etc. Veremos ainda que isto terá correlação com os valores morais utilizados para selecionar as melhores opções.
no Brasil...
O filósofo brasileiro Clóvis de Barros Filho (1966,-) define bem o que é o determinismo a nível biológico e comportamental, ao dizer que o sapo “sapeia”, o gato “gateia” e o cachorro “cachorreia”, visto que a racionalidade existe nos animais, mas não suficiente para ultrapassar a cadeia de acontecimentos que dão a eles comportamentos extremamente previsíveis, num nível de condicionamento que nos faz perceber este determinismo a tais níveis mesmo com racionalidade presente capaz de se fazer livre e autossuficiente. Talvez, assim, o humano seja igual, mas a um nível mais sutil, ou menos percetível. É mais uma hipótese, afinal.
Há também o determinismo divino do filósofo holandês Baruch Espinoza (1632-1677), a partir de sua brilhante conceituação de causa imanente, em que a causa está no efeito, e o efeito está na causa, a contrariar as teorias causais de Aristóteles, que coloca uma causa final, transcendental, como responsável última dos acontecimentos.
Assim, Espinoza constrói uma teoria racionalmente consistente acerca da imanência, em detrimento da transcendência do Uno[1] neoplatônico e da transcendência do Demiurgo[2] platônico, ao defender que o homem está em tudo, e este tudo está em deus, que tanto afeta quanto é afetado. E, dentro deste contexto, não haveria para o homem a liberdade, mas sim um estar dentro de algo maior do que ele, mas não superior, e sim integrador de tudo." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
Notas
[1] «Plotino ensinou que existe um ser supremo, totalmente transcendente o "Uno"; além de todas as categorias do Ser e Não-ser. Seu Uno "não pode ser qualquer coisa existente", nem é simplesmente a soma de todas as coisas [comparado a doutrina dos estoicos da descrença na não-existência material], mas "é antes de tudo existente".
Plotino identificou o Uno com o conceito de 'Bom' e o princípio da "Beleza". O Uno engloba o pensador e o objeto. Até mesmo a inteligência autocontemplante (a noesis do nous) deve conter dualidade. "Depois de ter chegado no 'Bem', não adicione nenhum pensamento a mais: em qualquer adição, e em proporção daquela adição, você adiciona uma deficiência.". Plotino nega a senciência, consciência de si-ou qualquer outra ação (ergon) para o Uno». Poderá saber mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/Plotino#O_Uno, de onde foi retirado este trecho, em 17/09/2022. Há também uma conceituação mais formal a partir da página 368 de: Reale, Giovanni. História da Filosofia. Volume l. São Paulo: Paulus. 2003.
[2] «O uso filosófico e o substantivo próprio derivam do diálogo Timeu escrito por Platão em 360 a.C., a causa do universo, de acordo com a exigência de que tudo que sofre transformação ou geração (genesis) sofre-a em virtude de uma causa. Diferente do deus cristão, o demiurgo não cria ex-nihilo, mas a partir de um estado preexistente de caos, tentando fazer seu produto assemelhar-se ao modelo eterno das Formas, assim a atividade do demiurgo compreende observar as Formas, desejar que tudo seja o melhor ou mais similar possível ao modelo eterno e perfeito.». Poderá saber mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/Demiurgo, de onde foi retirado este trecho, em 17/09/2022. Há também uma conceituação mais formal a partir da página 137 de: Reale, 2003, ibidem.
- Deus-
[1] Sempre usaremos minúsculas para designar deus, propositalmente. E isto não se dá com o objetivo de agredir a fé de ninguém ou desrespeitar qualquer crença pessoal, mas apenas para não evocarmos nenhum conceito de um deus específico, mas sim um genérico, funcional e que se correlacionará com o nosso esquema conceitual do possível. Por isso, mesmo que existam referências mais específicas com algumas das religiões mais conhecidas e adotadas, o mesmo valerá para as demais religiões, na maioria das vezes. Buscamos mesmo a fundamentação funcional de deus e, por consequência, das religiões.
"Para os crentes em deus[1], a própria dimensão divina é uma projeção deste topo dos topos, onde este deus está funcionalmente orientado para dizer sim para tudo o que se pede ou avalizar tudo o que se faz, a partir da perspetiva do devoto, que assume que a deliberação sempre será a seu favor, ou a favor dos seus protegidos e, obviamente, contra seus inimigos, como se fosse o crente a própria estrutura criadora, o verdadeiro espírito diretor, e deus passa a ser o agente outorgado a ocupar uma posição com o objetivo de dizer sempre sim aos petitórios feitos. Tal e qual, a perspetiva é apenas sobre os verdadeiros criadores e as suas criaturas funcionais que passam a serem dirigidos."
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"Esta maioria, apesar de ser ela própria a criadora de um nada substancial, nunca perde a sensação de que há algo desconhecido, completamente estranho, que sempre está logo ali, bem à sua frente, mas que é invisível, embora sempre presente, a aguardar por isto que ela está a fazer. É quando o nada substancial passa a ser sentido, percebido, mas apenas em pensamentos, em assombrações, a ditar uma nova ordem que passa a ser nutrida coletivamente. Mas a maioria não apenas aguarda esta nova ordem se manifestar, como também tem imensa atividade intencional-interpretativa deste nada, a resultar em decisões que a levará a agir, a se movimentar, mesmo que não saiba para onde ou porquê.
Mas se entrega incondicionalmente a isto: às possibilidades que este nada substancial parece possuir. E passa a ser viciada nele, pela exacerbação dos próprios desejos que veem ganhar vida e legitimidade a partir da associação deste projeto de possível não ser mais seu, mas sim do nada substancial, e isto passa a ocorrer até que se perceba sem nenhum domínio sobre suas próprias vontades, ao menos em relação às possibilidades. Já se encontra dominada pelo que não conhece, embora este desconhecido seja fruto de sua própria criação.
Em resumo: cria-se um nada, dá a ele substância própria de si e, por fim, projeta sua vida neste nada. E o nada passa a reger tudo o que há. Intrigante, no mínimo, mas é assim mesmo. É assim que formas ganham vida, a se servirem de conteúdos, e a gerarem valores que são recebidos pelos verdadeiros criadores do nada existencial.
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Por isso que a hesitação do sujeito inserido nessa maioria criadora do nada que controla a tudo e a todos, tanto pode ser imediata, quase instantânea, como pode até ser tardia. Mas sempre acabará por ocorrer. E o que o faz o sujeito se manter na estrutura, sempre que possui um momento destes, é o que mais o convence a prosseguir quando “tudo” o levará a crer que seja ele próprio o único responsável por todas as suas ações. Pois o que vem de fora é também o que ele próprio projetou, como cocriador do nada substancial.
Este “tudo” é esse algo invisível que ele já percebe a lhe orientar os passos, mas que ainda não sabe o que seja realmente, mas sente a intimidade substancial. E tampouco se questiona acerca disso, mantem-se em silêncio, como se fosse obediente ou temente ao nada substancial criado." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
[1] Sempre usaremos minúsculas para designar deus, propositalmente. E isto não se dá com o objetivo de agredir a fé de ninguém ou desrespeitar qualquer crença pessoal, mas apenas para não evocarmos nenhum conceito de um deus específico, mas sim um genérico, funcional e que se correlacionará com o nosso esquema conceitual do possível. Por isso, mesmo que existam referências mais específicas com algumas das religiões mais conhecidas e adotadas, o mesmo valerá para as demais religiões, na maioria das vezes. Buscamos mesmo a fundamentação funcional de deus e, por consequência, das religiões.
Figura: A criação de deus, por Carlos Ruas. Fonte: Instituto Claro
- Dialética Hegeliana-
"...o filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel apresenta[1] a história como a resultante da manifestação inteligente de um espírito racional absoluto – não, não é a mão invisível do mercado a que Hegel se referiu, caso algum leitor seja um neoliberal que esteja agora a suspirar, esperançosamente. E este espírito hegeliano é a própria racionalidade manifestada. E, assim, é este espírito integralmente racional que possui uma regência da vida e dos acontecimentos, de uma forma ou de outra, pela ordem que estabelece a partir de sua atuação fenoménica. Assim, perceberemos a dialética hegeliana.
Se pensarmos assim, como Hegel, a grosso modo, apenas, sem objetivos profundos de elaborar todas as questões que saíram e ainda saem destas impressionantes premissas hegelianas, podemos perceber que os grandes líderes das nações, responsáveis pelos acontecimentos de grandeza e magnitudes de transformações que fizeram “mudar” o rumo da história, sempre foram como marionetes, como atores a representarem papéis que lhes foram dados, ou quase isso, pelas mãos deste espírito e, por mais que eles quisessem “mudar” os rumos que a história tomou, nunca o teriam conseguido. Pelo contrário, eles lá estiveram, ou estão, pois fazem parte deste plano racional do tempo sucessivo, entre acontecimentos provocados para serem o que deveriam ser. Estavam no topo e, mesmo assim, não conseguiriam fazer diferente do que foi feito. Seriam eles (e nós) decisores ou meros executores?
Hegel até pressupõe que exista um limite individual para as liberdades de escolhas, supostamente ilusórias, que é representado pela “astúcia da razão”, como oferta ou graciosa dádiva deste mesmo espírito absoluto, em que permite o sujeito fazer, no campo da vida individual, pequenas ações supostamente contrárias à razão, mas que estas nunca influenciariam o macro curso da história, sempre gerida com precisão por este espírito absoluto que então estabelece uma linha de destino dos acontecimentos, previamente traçada pela razão absoluta, e que é um desenrolar de desdobramentos e acontecimentos sucessivos e dialéticos que sempre ocorrerão, independente das individualidades.
É como se a razão fizesse tolas concessões a cada um de nós, para que pudéssemos ter ilusões sobre nossas individualidades e capacidades de tomadas de decisões, mas todas inócuas, afinal. Na hesitação, ocorre algo semelhante, em que o sujeito passa a perceber que não estará a agir por sua própria vontade, ao perceber que deixará de comandar como supunha ser e passará a ser comandado, ou subjugado. É um assinte para o orgulho humano, todavia. E isto é um processo dialético, sempre, e Hegel apresenta, cirurgicamente, o mecanismo em que tudo se dá e como tudo se opera pela gestão direta da racionalidade histórica.
A dialética hegeliana é composta por três partes e pode ser exemplificada e compreendida através do (1) curso corrente, a transcorrer, como a vida bem formada, estável e sustentável, em paz, com progresso e felicidade, bem ao estilo dos comerciais de margarinas de uma família de Orlando, Flórida. Uma rotina em que todos possuem seus lugares e o mundo progride lindamente. Esta é a situação imaginada e presente nas conceituações sobre uma vida desejável. É o possível. Mas, logo, (2) haverá algo que aconteça, e que seja considerado como ruim ou mal, como negação do bem, a causar desordem na ordem estabelecida, a ameaçar o status quo ou o establishment, a se mostrar como impossível, mas que se faz necessário para, pela (3) reação e superação, se elevar ao progresso, à melhoria evolutiva dos tempos, talvez com a família a viver no Dubai.
E o que resultará de todo este processo será a síntese que supostamente será melhor do que antes, enquanto havia a suposta paz e progresso dos comerciais de margarinas, ou algo tão cringe como isto. Há sempre mais a se obter daquilo que já existe – eis a justificativa hegeliana, mas é preciso um conflito para causar o progresso. E, assim se dá a evolução, racionalmente.
A partir desta dialética hegeliana, que é mesmo convincente como processo de construção estrutural, em que as antíteses, estes “males” desestabilizadores e determinantes, que representam o mal das impossibilidades, ao chocarem-se com as teses, o establishment, provocam um nó espaciotemporal que levam a uma síntese, a se projetar como uma nova situação, que passará a ser a nova tese, e a reiniciar um ciclo melhorado e autossustentável, até que surja uma nova antítese, visto que apenas as forças objetivas ficam expressas e válidas e o ciclo se estabelece infinitamente, independente dos que atuem nesta estrutura dialética. E o mundo passa a ser operado da forma como o conhecemos, aos trancos e barrancos, muito hegelianamente. O “mal”, assim posto, passa a ser “bom” e útil, e não apenas destrutivo ou antagónico, pela função transformadora que opera na sociedade, e pelo resultado que emergirá de seu efeito.
Ou seja, é uma espécie camuflada da malfadada afirmação de que “os fins justificam os meios”, a perceber que a síntese está predeterminada e para além das capacidades de escolhas que os líderes podem fazer, sejam estes tiranos, reis ou distintos representantes eleitos democraticamente." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IV)
[1] Hegel, Friedrich. Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Meneses com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado, Vozes, Petrópolis – Rio de Janeiro, 2002;
Dialética Hegeliana: Conteúdo Protegido.
- Diferença-
"Mas há quem diga que a excessiva oferta de produtos não seja algo mal-intencionado feito como uma maléfica provocação para os humanos consumirem sem limites. Não pensam que seja do “mal”, mas sim do “bem”. Dizem que toda a excessiva oferta surge como resultante do progresso capitalista pelos benéficos efeitos das mãos invisíveis do mercado[1] que criam concorrentes progressistas que tornam os produtos mais acessíveis; e isso leva à multiplicidade, que leva à personalização, que produz as excessivas ofertas que servem para atender à própria individualidade, em que tudo pode ser customizado até se chegar muito próximo do que cada um espera de um produto, ou de um bem, e fará com que este, ao consumir, se saciará e será feliz, ainda que por instantes, e daí a pluralidade existe para atender os desejos de todos. São argumentos otimistas que ouvimos, costumeiramente, a expor a diferença.
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É como se tudo fosse produzido para alguém específico, não mais para um público-alvo, mas sim para um indivíduo-alvo, para saciar um certo gosto restrito. É o fetiche não só pela mercadoria, mas pelo gourmet, pelo vintage, pelo exclusivo, pelo customizado. Estrutura-se a individualidade através da produção de massa – pois já concluímos que a individualidade virou também um produto, anteriormente. É mesmo isso. Pois, se alguém tem algo exclusivo, deveria ser uma condição que um outro não poderia ter o mesmo.
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Mas, este antigo exclusivo, caro e inacessível, foi repaginado, atualmente. E passou a ser possível a quem não o poderia ter e, assim, justifica-se a multiplicidade da oferta em incontáveis versões diferenciadas, pois dentro delas se encontrará algo que sempre será o “exclusivo” para alguém, visto que tudo é uma versão de tudo, o obsoleto se torna exclusivo, daí o desejo especial pelo vintage, pelo original que o tempo não permite que seja confundido com algo mais novo. O sistema oferece a solução até para o que não deveria haver solução, como a exclusividade, em que o valor está mesmo nisto, na exclusividade, e na impossibilidade de replicar o que não poderia ser replicado.
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Pois, ao buscar a compreensão por tal coisa, não se deveria ignorar que humanos são movimentados justamente pela diferença entre si e os outros, ou entre sua vida interior subjetiva e sua vida exterior objetiva. A diferença é o motor que faz movimentar aquele que a percebe em si, em relação a algo ou a alguém, e que busca sair de um estado de potência para atingir um estado de realização, para se estar em ato, realizado ou a realizar-se, em que exista a saciedade alcançável de toda a sua potência que aspira estar realizada no ato que é capaz de produzir – um ato é uma ação contínua, estabelecida, realizada e em curso.
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Se alguém acredita que tem potencial de ser um grande ator, fará de tudo para transformar este potencial em ato e obter um papel de destaque para si. Pois este “destaque” é a própria diferença de algo em relação a outro algo. E o desejo vem dela e direciona para ela, para a diferença. Da potência ao ato é a jornada comum ao indivíduo, dentro de cada perspetiva, e o gatilho começa pela perceção da diferença." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VIII)
[1] Pois até mesmo a única mão invisível original deu lugar às novas versões, mais atualizadas e customizadas. Por que seria diferente com ela? Principalmente com ela, que proporciona a oferta e provoca o progresso?
- Escolhas-
Sobre as escolhas: "...O dispositivo Chromecast não possui nenhum conteúdo próprio, é bom lembrar, e apenas transfere conteúdos que você envia e o devolve de forma distinta, alterada e em novo formato projetado a partir da TV.
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Mas também os conteúdos que projetamos (ou escolhemos assistir) na TV também não são nossos, e não os possuímos, não nos são imanentes, mas sim transcendentes a todos nós, pois estão na internet ou em certas medias e sujeitos às regras técnicas e de categorizações. São todos representações que existem acerca da realidade. Formam um conjunto finito e limitado, ainda que imenso. Não expressam o que realmente eu quero, ou desejo, ou preciso, mas sim o que “julguei” que pudesse me saciar. O que quero assistir, afinal, precisa estar conforme com o que se há para se querer. Se não estiver, ficarei insaciável em relação ao que queria como conteúdo.
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Por isso que nem sempre escolhemos filmes que nos agradam, e a frustração ocorre mais facilmente do que as agradáveis surpresas que raramente temos. E geralmente as boas surpresas se dão quando não possuíamos expetativas. E é por isso que todos os processos de escolhas são feitos a partir de uma base da oferta existente, com a escassez que há nela – ainda que haja uma lista imensa de filmes disponíveis, ao menos alguns estarão indisponíveis, ou muitos com imensa dificuldade de serem encontrados no tempo útil do desejo. Quem nunca quis ver um filme que não estava disponível, e quando o encontrou, tempos depois, já não tinha mais o desejo de vê-lo? Por isso acomodamos nossas escolhas às condições de disponibilidade. Também recebemos influência das sugestões que recebemos, das críticas e avaliações, o que nos estimula ou não.
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E toda esta oferta categorizada – composta por conteúdos e predicativos – não foi construída por mim, nem por você, mas pela coletividade, de acordo com valores e predicações que categorizam e organizam estes conteúdos. Neste caso, filmes – de acordo com determinadas regras predicativas: comédia, suspense, musical, pontuações, rankings, etc. Exceto as produções indianas de Bollywood, que mesclam todos os estilos dentro de um mesmo filme, todo o resto está categorizado por um ou dois estilos, no máximo três, talvez. Mesmo Bollywood, com suas peculiaridades, virou também um estilo. Então, minha escolha já está a ser um efeito de uma causa determinadora (condicionadora e limitadora) das possibilidades. Não são possibilidades, então. O que tenho disponível como escolha, para mim, desta forma, são apenas as oportunidades." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XV)
- Espírito Obsessor-
"As regras ainda são um grande problema para as mentes contemporâneas, adormecidas e vigiadas por algo externo: por um espírito obsessor transcendente a elas, justamente a parte oculta que faz com que a soma das partes visíveis não seja o mesmo que o todo, e assim percebemos que o todo é maior do que suas próprias partes constituintes. Há algo muito suspeito nisto tudo aqui considerado.
É preciso, portanto, sempre estar dentro destas regras ocultas, pois há uma sensação de sempre se estar sob vigília deste ente oculto, ao ponto de se sentir mal se infringir qualquer uma destas regras, ainda que ninguém descubra. Este espírito, afinal, parece querer algo de si, mas ele também quer algo de todos os que vivem na estrutura. Mas a única coisa que se consegue perceber, mesmo, são que as regras dele existem, ainda que não se saibam exatamente quais sejam elas, mas lá estão, sempre na posse de seus representantes, nos quais as regras passam a serem conhecidas, a buscarem definir o que deve ser percebido nesta importante relação transcendental na qual os representantes assumem a centralidade." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XII)
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"Esta maioria, apesar de ser ela própria a criadora de um nada substancial, nunca perde a sensação de que há algo desconhecido, completamente estranho, que sempre está logo ali, bem à sua frente, mas que é invisível, embora sempre presente, a aguardar por isto que ela está a fazer. É quando o nada substancial passa a ser sentido, percebido, mas apenas em pensamentos, em assombrações, a ditar uma nova ordem que passa a ser nutrida coletivamente. Mas a maioria não apenas aguarda esta nova ordem se manifestar, como também tem imensa atividade intencional-interpretativa deste nada, a resultar em decisões que a levará a agir, a se movimentar, mesmo que não saiba para onde ou porquê.
Mas se entrega incondicionalmente a isto: às possibilidades que este nada substancial parece possuir. E passa a ser viciada nele, pela exacerbação dos próprios desejos que veem ganhar vida e legitimidade a partir da associação deste projeto de possível não ser mais seu, mas sim do nada substancial, e isto passa a ocorrer até que se perceba sem nenhum domínio sobre suas próprias vontades, ao menos em relação às possibilidades. Já se encontra dominada pelo que não conhece, embora este desconhecido seja fruto de sua própria criação.
Em resumo: cria-se um nada, dá a ele substância própria de si e, por fim, projeta sua vida neste nada. E o nada passa a reger tudo o que há. Intrigante, no mínimo, mas é assim mesmo. É assim que formas ganham vida, a se servirem de conteúdos, e a gerarem valores que são recebidos pelos verdadeiros criadores do nada existencial." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
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"Quando não se pode consumir, se sonha em poder. Quando se pode, opta-se por não se fazer como se sonhou. É, no mínimo, mais uma inusitada contradição humana.
Supor que pode existir uma gestão externa e superior sobre si, assim como sobre todos os mortais decisores e consumidores, coletivamente, a partir de um agente oculto tal qual um espírito da mão livre capitalista, é o primeiro passo para tirar de si a raiz dos problemas. Daí, pode-se livrar das culpas, dos arrependimentos e colocar tudo na conta desta divindade promotora do consumo. Exceto para as faturas das compras já feitas.
Assumir que existam, alguns ou muitos, ou apenas uma, destas entidades extrafísicas mandantes, não apenas consumistas, mas da mesma forma ativas e ocultas, como se fossem um poder superior que dita secretamente o que decidimos em nossas vidas, e que influenciam ou dirijam as nossas escolhas é perceber que existe, também, ou provavelmente, uma certa inteligência central a ditar e a coordenar estas sutis atuações que se tornam muito eficientes para nos fazer decidir sobre o que pensamos ser uma decisão individual. Deveria haver uma hierarquia.
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E, por isso, além de influenciar os indivíduos, esta suposta inteligência superior deve ser eficientemente capaz de se ocultar, pois há na maioria das pessoas a verdadeira certeza de que toda a ação é mesmo fruto de suas próprias escolhas, e raramente duvidam disto. Até muitos filósofos, a maioria monista, onde o monismo é o trend filosófico da contemporaneidade, para além dos gurus da autoajuda, e até mesmo os coaches, apregoam que seja mesmo assim, que tudo venha do indivíduo, e somente dele.
E o que surge desta certeza sobre a total responsabilidade da individualidade, supostamente autônoma, para ser a única responsável pelas suas deliberações é que sempre se possui uma escalas de valores para avaliar as escolhas que precisam ser feitas."
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"Por enquanto, o que podemos alegar é que a hipnose funciona a partir das crenças que todas as pessoas possuem acerca do que está a ser abordado. Quem leva alguém a ficar hipnotizado não precisa criar crenças na pessoa que será hipnotizada, pois usará das próprias crenças que esta pessoa hipnotizada já possui, e de seus desejos, para produzir o que se queira produzir, até chegar aos estados alterados de consciência. Isto é o básico em hipnose. A capacidade deliberativa e autônoma é um processo de hipnose coletiva, viável e sustentada desde sempre, que são utilizadas crenças comuns, já existentes, para serem trabalhadas convenientemente pelo hipnotizador. Resta perceber quem, ou o quê, é o tal do hipnotizador." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VII)
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"Em analogia, o espírito obsessor sempre dependerá do seu antagónico ameaçador para ser o tomador das almas que passam a vangloriá-lo, indiretamente, por ser quem este passa a ser, ou quem diz ser. E o antagónico é sempre subvertido pelo sistema do status social, quando o obsessor abre mão do próprio estrelato e passa a subverter a ordem para que o antagónico seja ele mesmo uma estrela renegada, famosa e cancelada, um coadjuvante marginal indesejado e temido por todos. Temido sim, mas não tanto quanto o espírito obsessor, que mesmo a se assumir como o bem sempre precisa ser o mais temido, maquiavelicamente, para se manter superior. E manipula a todos nós como se fôssemos fantoches. E, quiçá, talvez ainda o sejamos." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
Espírito Obsessor: Conteúdo Protegido.
- Esquema Conceitual do Possível-
É um modelo para que o possível possa ser compreensível didaticamente, e este é apresentado como um conjunto de camadas formado por esferas concêntricas, de diferentes tamanhos, na qual a menor é a mais densa ou imanente e a maior é a mais sutil ou transcendente. Gradações, como camadas distintas entre si, mas que na prática se fundem como uma – tal como percebemos o mundo. Para além destas esferas, há a representação de uma última – mas que não é mesmo uma esfera, pois não possuímos contato com ela – pois “é” o impossível, que permeia a todo possível e “vai” para muito além dele, e para muito além do nossa Esquema Conceitual do Possível.
Das “menores” para as “maiores”, as três esferas imanentes – materiais e linguisticamente sensíveis e escrituráveis no Esquema Conceitual do Possível:
1ª esfera – a moral – são os valores definidos e duais mais profundos e fechados que temos em nós (como por exemplo o bem e o mal, o certo e o errado, o belo e o feio etc), apreendidos e construídos a partir dos relacionamentos, da linguagem, da educação formal e informal e também em todas as convenções que existem na estrutura na qual o indivíduo esteja inserido, como as culturais, religiosas, políticas, sociais, artísticas, de construções de gêneros, “raciais”, territoriais, etc;
2ª esfera – os representantes / relacionamentos – todas as relações são basicamente oriundas das funções estratégicas de perpetuação e afirmação da vida – assim garantimos a nossa presença, que é estarmos vivos. Relacionamo-nos para mantermo-nos (a todos) bem (que já é uma ação oriunda de um valor moral que trazemos da primeira esfera), mas também para nos afirmarmos como existentes (indivíduos, psicologicamente diferenciados e supostamente autônomos). Relações são, portanto, sempre baseadas em alguma instância de poder. Uma das partes acaba por dominar a outra, e por isso, uma destas partes passa a representar algum tipo de autoridade baseada em algumas regras adotadas nos relacionamento (que estarão na próxima esfera), mesmo que sejam regras simples, informalmente subentendidas ou mesmo impercetíveis, mas sempre existem regras em todos os relacionamentos;
E...
3ª esfera – as regras – que não existem apenas por existir, pois não vieram do “nada”, mas sim pela preexistência e necessidade das relações, ao originarem conflitos e a exigirem meios para se estabelecer uma ordem viável entre todos os que compartilham relacionalmente do possível, e isto significa que foi e é necessário coibir as vulnerabilidades individuais e coletivas oriundas dos relacionamentos, principalmente a partir das diferenças percebidas entre os indivíduos, que fazem ser necessárias novas criações conceituais como, por exemplo, a justiça;
Abaixo, a esfera transitória – entre a imanência e a transcendência no Esquema Conceitual do Possível
4ª esfera – os modos existenciais – há o modo de ser, que representa a presença em vida e uma suposta essência moral de cada um, que são a expressão consolidada na pessoalidade de seus próprios valores e que assim oferece uma perspetiva própria dos limites sensíveis individuais; e há o modo de existir, que representa o que este projeta para o mundo, que é a sua própria existência percebida para si e para a estrutura na qual esteja inserido, ou melhor, alocado interactivamente; Entre estes modos, há sempre alguma separação que origina uma brecha ou fissura nas quais se dá o que é percebido como o abismo.
E, finalmente, as três esferas “maiores” transcendentes e puramente semânticas, completamente inseridas na linguagem com significações valoradas no Esquema Conceitual do Possível:
5ª esfera – o marketing ideológico – que são as oportunidades expostas como possibilidades. Assim promovidas e oferecidas pelas teias de relações que existem no mundo, e de acordo com as ideologias mais dominantes que existem. O marketing é o que faz a todos ficarem mais aderentes à estrutura, pois é o que promete, que cria demandas e que faz a todos cumprirem com as regras e com o que seja esperado ser feito como parte do esforço de atingirem o que está para além de si. O marketing é o excitador existencial mais poderoso que existe, que faz aumentar a potência de cada um para que surja a ilusão de que tudo possa ser realizado para que todos possam, afinal, estarem em ato através de algo que é oferecido como meio e fim, mas sem nunca ninguém chegar a um limite de saciedade através do marketing, visto que este é sempre de natureza continuamente expansiva e predatória;
6ª esfera – a ideologia – uma dimensão individual e coletiva quase impercetível e que possui mecanismos para que seja mesmo assim: impercetível. A ideologia representa tudo o que já foi intencionalmente vislumbrado, conhecido, percebido e nomeado – mesmo que exista apenas conceitualmente, é ideologizado da mesma forma e pertence a esta dimensão. Como cada um é limitado pela sua própria perspetiva individual, então a ideologia passa a representar o tamanho do “universo” de cada um possui para si, a diferirem elas mesmas as individualidades, logo à partida;
E também...
7ª “esfera” – o real – o impossível, que é todo o resto, para além da ideologia. Por não ser e nem poder ser conhecido, não pode ser limitado e, a bem da verdade, nem mesmo podemos considerá-lo como uma esfera, propriamente. É o caos, completamente inacessível e impenetrável, mas que mesmo assim é a direção para a qual nos dirigimos alucinadamente, para expandir a nossa dimensão do possível e também para apreender algo que não compreendemos ainda, mas que mesmo assim desejamos expandir e domar, até mesmo contra a nossa própria razão. Este caos pode facilmente nos atingir de forma impactante pelas fissuras ideológicas que temos em nossas frágeis criações ideológicas. É contra o caos a nossa maior demanda existencial.
- Estranhamento-
O estranhamento é uma anomalia, antes de tudo, de algo que diverge do esperado pela conformidade ideológica vigente. É uma quebra de fluidez que ocorre no devir, e faz parecer que o tempo pare de correr como antes e que o foco seja transferido para um acontecimento que parece anômalo, a ocorrer o estranhamento.
"Pois este estranhamento acaba com a certeza sobre o sentido da própria vida e nos faz perceber uma grande dúvida sobre a realidade vivida no instante da apreensão da vitória. Quando nossa consciência busca apurar se aquilo que se está a viver é mesmo real, a colocar nossa razão em dúvida, quando percebemos algo como um grande vazio interior e exterior, uma sensação de frio na barriga que nos diz que somos puro vácuo, e que por isso nos dificulta apreender o que se está realmente a nos acontecer em tais momentos. Ao buscarmos uma subjetividade elucidativa, somos tomados por um vácuo existencial e nos percebemos diferente de tudo o que há: como uma presa fácil e dócil a adentrar na arapuca." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. II)
...o estranhamento
"Com o tempo, o estranhamento parece não ser tão mais estranho assim, depois de tanto se conviver com ele, muito proximamente. E o sujeito, antes feliz e saciado pelas anestesias, se vê frustrado, angustiado e abalado. Até que decida pular no seu próprio abismo, que acaba por sugá-lo completamente para dentro de si. Mas por que faz isto? O pulo não é para todos, mas para alguns poucos. E não pulam atrás de respostas, pois estas já estão todas aí, aos montes, a maioria produzidas pelas indústrias das anestesias. Há respostas até boas, verdadeiras, em meio a todo o Universo capitalista-ontológico de soluções à venda.
Mas, o pulo não deveria se dar pelas respostas, mas sim pela busca das questões certas. Aquelas que precisam ser feitas, as mais relevantes, que devem ser posicionadas hierarquicamente para que o modo de ser se ajuste ao modo de existir. Estas perguntas serão percebidas apenas ao pular."(em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IV)
- Estrutura-
"A vida se dá na estrutura. Se existe alguma dualidade, tão duramente combatida pelos contemporâneos monistas, então há uma essência, ou alma, ou substância, ou uma mente separada, seja lá o que for, mas apesar da existência de uma eventual dualidade, será somente a estrutura o hub, o meio, o acesso, a manifestação possível da consciência constituída para a existência. Assim, haver ou não um dualismo, eleita uma das brigas filosóficas mais ferrenhas desde o cogito cartesiano, perde a relevância, pois passamos a ter a relevância da estrutura como prioritária. E todo o valor constituído como tal, maioritariamente, deve sempre levar em conta a estrutura. A estrutura será, assim, um quase-todo, que é um “todo” dentro de cada perspetiva.
A estrutura, aqui, assume uma conceituação diferenciada da tradicional, como já deve ter sido percebido, mas nem tão distante assim. Percebemos que muitos filósofos já se referiram linguisticamente a esta forma de organização, sem citá-la, abertamente. Ultimamente, ela tem sido relegada aos porões da Filosofia, já com bastante poeira sobre si. Mas as formas das relações do que é a existência não nos deveria deixar insensíveis às formas de constituições e organizações de tudo o que há, de tudo o que existe, desde as formações estruturais das combinações dos elementos químicos até as nossas relações sociais, tais quais todas as nossas organizações. Os autores sabiam, e ainda sabem, percebem, mas não explicitam, talvez pela esperança da universalidade exterior e superior.
E a relevância da estrutura é tão forte e evidente que Nietzsche fundamentou seu trabalho filosófico a partir do máximo valor de tudo o que representa a vida estrutural, ao defender todos os valores imanentes, toda a potência de uma vida que precisa ser vivida, com vontade máxima, tragicamente, a aceitar tudo o que há nesta estrutura, mas sem nunca prescindir de qualquer imanência em nome de qualquer transcendência, herança clara que absorveu de Espinoza, em que a estrutura (se pensarmos na relação entre deus e a natureza) é tanto o que afeta, quanto é afetada.
Desta herança de forçar a transcendentalidade, de aspirar a uma vida santificada e distante da estrutura que suga a tudo e a todos para ela, surgiu o último homem nietzschiano, vazio, transcendente, eminente, niilista, impotente frente ao ideal do além do homem, este sim completo, imanente e totalmente dotado da vontade de potência. O além do homem não vive uma vida, ele é a própria vida, com todo o seu esplendor e exuberância.
Vive a tal ponto que tudo o que faz, não o faz como dever, pois não lhe interessa o dever moral, e atá despreza isto, mas o faz por um valor imanente, de viver o instante como se fosse ali a eternidade que, caso se repetisse infinitamente, ele estaria pleno de si, estaria realizado. É a justaposição do homem em relação à estrutura, pois enquanto o último homem é alguém absorvido pela estrutura a sonhar sair dela, o além do homem se vê como a própria estrutura, e busca ser mais forte do que ela, e absorvê-la, em si, por completo, ao ascender por todos os caminhos que o levarão ao topo.
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E por isso, é preciso perceber, historicamente, como o conceito de estrutura foi concebido e percebido. E, assim, podemos destacar quatro fases bem distintas, pois o que estará em causa, agora, é que a soma das partes nunca alcança a totalidade. Sempre há algo mais, impercetível, e é sobre isto que aparece o algo mais que estamos a buscar..."
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"E o sujeito passa a acreditar que, assim, ao cumprir o que está estabelecido pelas regras, eliminará todos os riscos existentes e decidirá se comprometer ao máximo com a estrutura, sem sequer perceber o que este compromisso significará, exatamente, pois tudo ainda lhe é completamente ignorado, mas lá está, como se passasse a existir uma comunicação telepática, ou mediúnica, completamente inconsciente, em que o indivíduo é possuído por este espírito que irá lhe impor o que se deseja que se faça, simbioticamente, mas de forma sutil e disfarçada, sem infringir o que os representantes determinarem, a dirigir sua atenção e os objetivos de suas ações sem que este consiga resistir ou aceder à sua própria força de vontade e à própria autoconsciência, que fica muito comprometida pela incapacidade de perceção ampla que esta exige. Fica obsidiado. E viverá assim, até algum dia, ou para sempre, enquanto viver."
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"E isto espelha o que é uma estrutura, em linhas gerais no aspeto da motivação, pela sua faceta transcendental, política, mística, a oferecer cargos e posições em que cultuam uma forma organizada de vida coletiva, sejam religiões, comunidades, países, empresas, famílias, etc. Tudo segue um padrão em que há uma versão atribuída a este espírito diretor, com representantes, eleitos ou autoproclamados, que falam por ele, e que, a partir de certas condições, passam a ser o próprio, quando os espíritos dos deuses passam a serem considerados vivos entre os simples mortais.
E é exatamente por isso que a democracia ateniense foi tão combatida, e completamente extinta na era cristã, pois era estruturalmente contrária aos privilégios ao considerar a igualdade de todos. A pseudodemocracia que ressurgiu, dois milênios depois, já não era mais a mesma e só foi viável depois de considerar espaços para os representantes, ainda presentes, se não na estrutura, como elementos agregados que ainda possuem imenso poder sobre todos, sejam governantes ou governados. Mas, o espírito existe, ainda, muito mais forte e poderoso, a despeito de seus representantes." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XII)
- Eterno Retorno-
O eterno retorno é uma escala de validação da vida apresentada por Nietzsche, a partir exclusivamente das forças que há em você e que devem sair do mundo da lua para viverem tragicamente o que há para si, a enfrentar com todas as suas forças o que virá na vida. Seria como se, ao chegar ao inferno, o fizesse com alegria, a abraçar o demônio, a declarar as saudades existentes e a confraternizar com todas as celebridades e políticos que lá estarão, enfim acessíveis a todos nós, ainda que um pouco mais bronzeadas.
O eterno retorno é isto, quando o sujeito precisa trazer para sua vida valores imanentes, facilmente percebidos e avaliados, para valorar o momento vivido e perceber se nele há a sua máxima intensidade, ao ponto de que este valores representem o melhor que o sujeito poderia desejar para si, nesta eternidade em que dura o instante vivido, da vitória ou da derrota, ao ponto de que deveria, ele mesmo, desejar um eterno retorno deste momento vivido.
No abismo...
"...No abismo, não há linguagem, nem idioma, nem palavras, apenas sentimentos viscerais, apenas consciência e poder sem resultados. É o corpo que fala, ou urra, a cair, e nada mais.
E alguns pensam que isto é o ponto do eterno retorno, quando tudo voltará a se repetir exatamente da mesma forma. O abismo não é isso, mas pode ser, se este ciclo em que está preso for mesmo o verdadeiro problema. O eterno retorno é uma escala de validação da vida proposta por Nietzsche, das forças que há em você e que devem tirá-lo de um lunático mundo idealizado para viver tragicamente o que há para si, a enfrentar com todas as suas forças o que virá, até mesmo as “desgraças” da vida. Ao chegar ao inferno, que seja com alegria, e que logo se possa abraçar o demônio, e declarar aos conhecidos que lá estarão as saudades existentes e logo depois confraternizar com todas as celebridades, coaches e políticos que lá também estarão, agora bem mais acessíveis e um pouco mais bronzeados pelas labaredas constantes.
O eterno retorno é isto, quando o sujeito precisa trazer para sua vida valores puramente imanentes que sejam facilmente percebidos e avaliados para valorar o momento vivido e perceber se nele há a máxima intensidade que deve haver, a exaurir-se a si mesmo ao viver a vida com toda a potência que lhe for capaz de dar, ao ponto de que este valor represente o melhor que o sujeito poderia desejar para si, nesta eternidade em que dura o instante da vitória, neste ponto de que deveria, ele próprio, desejar um eterno retorno a este momento vivido." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VI)
- Extremista-
"Para outros, viver de forma totalmente determinada seria um sonho perfeito, muito desejado, por exemplo, para os neonazistas saudosos dos tempos que nunca viveram, ou também dos que querem abrir mão da democracia ao clamarem por ditaduras, pois são estes que consideram o passado como se fosse a paz absoluta no paraíso dos supremacistas. Sim, o que estes saudosos pelo que nunca viveram buscam é mesmo isso, e é também o que todos buscamos: possibilidades. Mas, ainda assim, de formas diferentes, e bastantes distintas, por sinal. Assim se faz e é um extremista, via de regra.
Os nazistas não quiseram, assim também como os neonazistas não querem também, obviamente, apenas ascender na estrutura, mas sim quiseram rebaixar, ou extinguir os que consideraram (ou consideram) não estar de acordo com seus níveis distorcidos de valor, e que por isso acreditavam que deveriam ser expurgados da estrutura, ou da vida. E foi isso que fizeram num dos mais tristes e reprováveis eventos históricos que podemos considerar. E que não foi o único assim, pois tiveram outros, nos inúmeros genocídios que a História da suposta humanidade registou.
Deliberam assim também os xenófobos, racistas, misóginos, homofóbicos, os fundamentalistas religiosos, os desportivos torcedores radicais e tantos outros grupos interessantes e atraentes para os muitos que desejam mais da vida e desejam atingir o topo sem, contudo, conseguirem ou precisarem dar mais de si, ou mesmo por perceberem que lá, bem lá no fundo, não poderiam competir em pé de igualdade com os que desejam eliminar, se estivessem em iguais condições de competitividade, pois se percebem menos capazes do que os que odeiam justamente por esta razão. E isto passa a ser amplificado mentalmente pelas suas próprias frustrações e geram pulsões por ações destrutivas que são direcionadas aos “oponentes” que elegeram como alvo de suas próprias agruras. Querem, como todos, as possibilidades mais próximas de si, mas não ao ponto de serem oportunidades – e quase tudo se resumirá a elas, afinal. Todo extremista é isso: algo que não consegue se realizar.
Entender estes grupos é perceber que querem o topo sem o ônus do esforço, mas sim por rebaixarem a todos os demais, ou extinguirem as ameaças competitivas. São covardes e com um imenso complexo coletivo de inferioridade. O que seria de Adolph Hitler (1889 – 1945) sem o sentimento de inferioridade germânico depois do fiasco da Primeira Guerra? O que seria o sentimento de todos os movimentos políticos extremistas sem tal perceção de inferioridade? É uma questão, sempre, de perspetiva social de grupos atraídos (e traídos) pelos seus piores medos. O covarde é sempre um medroso extremado ao ponto de defender a posse de armas, as penas capitais e todo o tipo de agressão e segregação que poderá emergir de suas crenças." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
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"Todas as obsessões dentro de uma perspetiva do bem serão necessariamente tidas como boas, em suas naturezas funcionais ou utilitaristas. É justamente como tudo sempre se dá em cada uma das perspetivas, ao encerrarem em si apenas o que seja o bem. Se até mesmo o diabo cita as escrituras quando lhe é conveniente, o devoto do espírito universalizador também apela para a perspetiva quando percebe lhe mais ser conveniente – e instantaneamente abandona a defesa da predicação universal que antes cultuava, por não lhe ser mais conveniente em sua perspetiva. Na verdade, continua na mesma situação, na mesma perspetiva, mas assume visões diferentes sobre uma mesma coisa, a focar mais em si ao invés de focar mais no espírito.
Por tais motivos as obsessões coletivas históricas mais temidas ou combatidas, como as nazistas, fascistas, extremistas, fundamentalistas ou as facções terroristas, por exemplo, ou outras do gênero scary, agregaram nelas pessoas que dizem que apenas projetam o “bem” (que é o “mal”, para nós, que estamos de fora) como possibilidades para elas. Pois o “mal” só é visto a partir de uma perspetiva externa e também por todos os que sejam os seus alvos, por representarem ameaças travestidas como impossibilidades ao bem que elas julgam possuir.
As convictas mentes que se consideram agentes do bem mal percebem o que estão a atacar, pois atacam mais o que representa a coletividade do que a individualidade – é mesmo um processo irracional e messiânico. Pois elas pensam que destruir indistintamente tudo o que seja contrário às suas ideias seja o mesmo que fazer o bem: e por isto podem atacar o mundo, as organizações, religiões, as Ciências, as nações ou até mesmo as pessoas que considerarem como representantes do mal. Ações doentiamente pervertidas e subvertidas, mas tais predicados só são dados por quem observa externamente à perspetiva doentia, pois para quem está dentro dela, nada disso se dá, pois cada um dos membros comprometidos em combater o mal se percebe como investido do poder ilimitado do bem, e nada o poderá parar até que realize o que julga ser o se que espera dele." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
Extremista: Conteúdo Protegido.
- Fantasia-
"... que é basicamente o desejo pelo desejo, mais especificamente o desejo pelo desejo do outro, de ser o próprio desejo que o outro tenha ou ainda mais, em ter alguma gerência ou influência sobre o desejo do outro. Esta é a dimensão conceitual da fantasia, que Jacques Lacan estabeleceu como um estado em que se deseja que o outro deseje a quem fantasie com isto, e, assim, é preciso possuir, enquanto ser desejável, possibilidades que o outro, enquanto ser desejante, verifique ou acredite que não tenha, ou até mesmo serem valiosas o suficiente para não acreditar que seja possível tê-las, mas a ambicioná-las, para surtirem o efeito de atrair tal desejo pra si, o detentor das coisas valiosas com a volúpia de ser desejado.
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O grande barato do ser é atingir este status de desejável, pelos demais, e muitos o fazem. Os VIPs, contudo, estão a parte disso, relativamente, pois são as maiores fortunas do mundo, e evitam serem desejados pelas massas e, por isso, passam a se esconder de todas as formas de exposição pública, pois não querem nem serem seguidos, nem terem seguidores, o que é o mesmo do mesmo, e por isso alguns nunca foram vistos publicamente. Mas, não significa que estejam imunes às fantasias, mas que as possuem em seu próprio mundo, inacessível às massas, e lá as exercem, ao competirem por quem será considerado mais rico, e mais desejável, portanto.
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Certa vez, no auge das temporadas de sequestros no Brasil, na década de 90, uma mediana cidade do interior de Minas Gerais elegeu a lista dos sequestráveis e, um certo conhecido, que tinha a pretensão de afirmar sua riqueza, se indignou por não estar na lista de sequestráveis da cidade, e se exaltou ao ponto de reivindicar que ele deveria estar nela, por possuir o que possuía. Sentiu-se diminuído frente a sua própria fantasia frustrada.
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Sim, não era um VIP global, mas aspirava a sê-lo, ao menos municipalmente, pois não tinha seu próprio mundo, obviamente, mas isto dá a dimensão do poder da fantasia, ao ponto de o sujeito não medir as consequências para fazer valer suas fantasias, ainda que quem o desejaria fosse uma quadrilha de sequestradores que eventualmente poderia lhe arrancar um dedo ou uma orelha como pressão pelo resgate, mas, ainda assim, seria para ele uma afirmação de seu status, e uma marca para o pós-sequestro, se a família achasse conveniente pagar pela sua liberdade. Muitas não o fizeram, e por isso nem sempre é bom lembrar daqueles tempos.
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Mas o desejo está dentro do indivíduo desejante e sempre estará, nestes entrecruzamentos dos desejos trocados que são chamados de relacionamentos. Desta forma, reflexivamente, o próprio desejo alheio do ser desejante (do seguidor, por exemplo) passa a ser uma possibilidade para o ser desejável (do influencer), e, por isso, igualmente desejado pelo desejável.
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Por isso, incrivelmente, o seguidor é também muito desejado pelo influencer, que até mesmo chega a “comprar” falsos seguidores, caso não os consiga pelos meios normais, e isso é exatamente fazer o mesmo que os seguidores fazem, a comprarem as falsificações dos produtos que os influencers possuem, quando não podem pagar pelos originais. Está a perceber a treta dos desejos? Não há quem fique imune, totalmente." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IX)
- Feedback Afetivo-
"...mas o que acaba por importar, em toda relação, é mesmo o feedback afetivo do outro, da fantasia que está em jogo. Isso dá a qualidade, a intensidade, e é o que todos querem realmente.
A empresária brasileira Raquel Pacheco (1984 –), também uma famosa ex-profissional do sexo, que ficou conhecida pelo nome de Bruna Surfistinha, fazia exatamente isso, ao comentar, avaliar e pontuar seus clientes, anonimamente, através de apelidos que eram publicados em seu blog e, assim, havia a fantasia destes para que fossem bem pontuados, como se estivessem em um jogo, a darem o máximo de si naqueles momentos em que o relacionamento se dava, e que ainda haveria outro prazer pós-sexo, de saber como seria avaliado, posteriormente.
Ela não “vendia” apenas o seu corpo, mas o seu feedback afetivo, e por isso pagavam-lhe muito mais do que pelo corpo. E seu sucesso veio quando ela percebeu o valor agregado que havia nas fantasias dos clientes, sem que estes dessem conta disso. A generosidade das avaliações, obviamente, era evidente e, assim, sempre destacava algum aspeto positivo nos clientes que, desta forma, tinham ali o segundo gozo. Afinal, era uma relação sexual e comercial bem estabelecida, ao menos como podemos supor. E aí há o problema do consentimento, o ponto crucial de tudo isto." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IX)
- Fenomenologia-
"Portanto, se há a intenção, há a existência na mente, que é o que importa, mesmo que na realidade o objeto não exista como coisa. Poderá vir a surgir, ou não. E isso, algo aparentemente simples, agora, resultou em uma nova revolução filosófica, quando o discípulo de Brentano, o filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938), avançou com a sua fenomenologia.
Pois, foi relevante a dimensão da fenomenologia de Husserl reintroduziu o objeto como forma de relação entre este e o sujeito, em seus estados conscientes com seus conteúdos mentais para tudo o que consideramos existir no mundo, em estados intencionais e mentais. Husserl não priorizou, separadamente, nem o sujeito e nem o objeto, mas sim a relação que se dá entre estes.
Para tudo o que possua conteúdo mental, no sujeito, existe em uma dimensão própria, intencional, a qual este se conecta, quando este sujeito é quem passa a responsável pela manifestação intencional do existente, especificamente do objeto ao qual atribui algum conteúdo mental, pelas sensações ou formas diversas de perceção, por apreender algo sobre este objeto, e tudo o mais, ou por assim dizer, estabelece sua declaração de existência, em dada relevância. A partir deste fenómeno, aprende-se sobre o objeto e forma-se um juízo acerca dele, ou do quer que seja, e é assim também acerca das próprias emoções, do próprio sentir, que sempre tudo isto pode ser atualizado, pelas apreensões de novas interações que acontecerão, e que alterarão as representações mentais, os juízos constituídos e significações das emoções.
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Portanto, desde Brentano, ter consciência não é a mesma coisa de ter conhecimento – uma especialidade kantiana, que inspirou a ideia de que o mundo, ou o modelo de mundo, é formado dentro da mente e por isso a racionalidade é tão conforme com certas avaliações epistemológicas. O conhecimento, assim, depende das particularidades de cada coisa conhecida, da identificação profunda do que cada objeto tenha consigo, e isto se dá através de uma exigência de linguagem, de uma ordenação categorial que precisa descrever, conceitualmente, o que está a ser conhecido, até a exaustão, se possível. Ter consciência, não. Não é preciso a linguagem para que tenhamos consciência que estamos conscientes, que estamos a pensar, como apurou Descartes, e, portanto, a existir, segundo ele.
O problema é que a linguagem não oferece uma certeza do que é definido por ela, ou ainda, uma pureza acerca das informações conceituais, ao menos. Por isso, a lógica entre o sujeito e o objeto se faz necessária, e foi o que Husserl buscou com a fenomenologia, e o saber ficou estabelecido entre a relação do sujeito com o objeto, nem em um, nem em outro, mas na relação, em si, estabelecida como tal." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IV)
- Fim dos Tempos-
"Se fosse proibido desejar os bens dos outros, e isto passasse mesmo a ser cumprido com o fim cristão das ambições, o capitalismo estaria seriamente comprometido e, desta forma, todo o sistema, pois não haveria mais pecados e, portanto, pecadores, visto que não teria mais a inveja e, por isso, a justiça seria viável e totalmente estabelecida naturalmente, pois ninguém atentaria contra o bem alheio, sem mais roubos, assaltos ou negociatas políticas – um mundo sem crimes. E, por fim, para que espírito? Seria dispensável. E logo tudo ruiria e o fim estaria realmente próximo: seria o fim dos tempos.
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Sem a necessidade da justiça e nem de promotores do perdão, as instituições religiosas e governamentais perderiam suas funcionalidades primeiras, colocando os contratos sociais em caducidade. Por isso que a obsessão espiritual, seja cristão ou não, proíbe, mas sem realmente proibir, a partir da impossibilidade simbólica. E assim fica assegurada a “existência” do espírito obsessor.
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O sistema está formado apenas para promover e administrar as ameaças, e não as impossibilidades simbólicas, que são combatidas apenas superficialmente, até que faça dela um novo produto, que vira uma oportunidade. O sistema, para se perpetuar, não apenas precisa das ameaças como também depende totalmente destas. O que seria de deus sem o diabo? Se os satanistas percebessem que estão, na verdade, a serviço de deus, ao servirem ao diabo, se converteriam imediatamente, para melhor servirem ao inominado. E talvez seja exatamente isto que nos possa explicar muitas das coisas que acontecem nas religiões, mas apenas especulativamente, embora de forma venenosamente provocativa, confesso. “Impossível” evitar. A análise da conceituação do impossível, aqui, será por sua conta.
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Algumas impossibilidades reais podem até mesmo existirem como a tão imaginada onsciência humana, que é radicalmente declarada como uma impossibilidade real na obsessão coletiva cristã, pois é um atributo dela própria, da superioridade estritamente divina. Tudo o que será qualidade exclusiva do espírito obsessor sempre será uma impossibilidade real, portanto. E como sair desta “sinuca de bico”?... " (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
Fim dos tempos: Conteúdo Protegido.
- Formas e Conteúdos-
Sobre formas e conteúdos
...pois a forma será o esqueleto da ideologia.
"Há que se perceber que após esta consciência acerca da própria alocação, haja a consciência da consciência, a autoconsciência, que é um afastamento de todo o relacional, pela abstração, para verificar as teias que existem entre si e todo o resto. Esta capacidade da autoconsciência é que irá definir se a relação é boa ou não – pois o que interessa, mesmo, é a forma como as relações estão estabelecidas que darão elementos para uma escala de valor do relacionamento, e não o conteúdo, que pode ser mais facilmente transformado e é extremamente volátil. E é isto que o sujeito completamente estruturado perdeu: a noção das teias que o está a prender à estrutura. Uma teia tão sutil que julga estar livre, ser livre, sem nenhuma ação para além das suas.
Assim, para percebermos melhor o que se está a colocar em causa, consideremos que uma boa relação amorosa, para devotos puristas ou idealistas, sempre se baseará no conceito de amor projetado pelos filmes românticos de Hollywood, quando tudo é perfeito, até mesmo o sexo, totalmente “convencional” e “moral”. Enquanto para outras pessoas, uma boa relação sempre será uma relação baseada no sexo selvagem e nas aventuras que façam em conjunto, sem limites para as experimentações do “Kama sutra”, com algumas pitadas de promiscuidade e outras doses esporádicas de extrema lascívia, para se quebrar a rotina que nunca haveria de existir.
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Poderá o casal purista ter uma vida dupla, cada um deles, pelas possibilidades que se privam na vida a dois, e por isso podem se arrependerem por estarem juntos, mas sem forças para sair do jugo religioso e social aos quais pertencem, que determinam que o sacramento do casamento seja, pelo menos, até que a morte venha para os separar. Daí, nunca se perceberão em uma relação realmente boa para eles, pela falta da autoconsciência acerca destes valores morais que castram seus desejos mais íntimos por, como sugerido, a castração simbólica para as experimentações sexuais.
Talvez, secretamente, até podem desejar por isso mais do que o casal lascivo amigo. Ou provavelmente nem seriam amigos deste casal, pois a moral, quando rígida, impossibilita até mesmo tais amizades entre os puros e os “pecadores”, que passam a serem combatidos como representantes diretos do mal, nem que seja pela maledicência, neste caso permitida pelas leis puristas. Não é a dissonância entre as estruturas o problema, mas sim a falta de uma autoconsciência lúcida sobre as relações estruturais – de suas formas e conteúdos.
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As formas, como sempre, são as determinantes. Os conteúdos, no futuro, para ambos os casais, poderão ser alterados e os que faziam sexo selvagem passarão a ter interesse em, por exemplo, algo inusitado como a observação selvagem de pássaros raros. E perdem o interesse demasiado que tinham na prática sexual “não-convencional”. Viverão, se dotados da autoconsciência, com a mesma cumplicidade de antes. A frequentarem, igualmente animados e felizes, um clube de birdwatching, ao invés de um clube de extreme sex. Pois a forma que se relacionam é exatamente a mesma e, por fim, os conteúdos não são tão relevantes para que se classifique uma relação como boa ou má, a longo prazo. As avaliações rígidas morais acabam sempre por frustrar os conteúdos e emperrar as formas, sem fluidez.
Os critérios categoriais passam por perceber, primeiro, a alocação do sujeito em questão, tanto como descobrir elementos a instanciarem o próprio modo de ser, bem como o modo de existir. Mas, sempre, todos os relacionamentos devem ser percebidos e interpretados como estruturas que são, e que, portanto, operam como tal, invariavelmente. E possuem todos os componentes que possui qualquer estrutura, que se forme assim e se consolide como tal. Ao perceber as dinâmicas dos relacionamentos de casais, ficará fácil perceber que é um padrão que norteará também as relações sociais, como um todo." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XII)
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"A forma, novamente relembramos, é quase sempre única, e o que muda são apenas os conteúdos. E os valores destes conteúdos são considerados distintos para cada indivíduo na perspetiva considerada, para uma mesma ação, intenção ou proposição, que para uns são do bem, para outros não. Não se pode, e nem se deve, ser tendencioso ou pretensioso para buscar o entendimento acerca dos valores que são atribuídos para o que está para além de nossa própria realidade. Assim, seria difícil ou “impossível” algum conhecimento da realidade a qual estamos orientados a perceber.
Impossível? Sim, considerei mesmo a impossibilidade, ao ponto de escrevê-la. Então há, de facto, algo realmente impossível? Já que estamos a avançar, é preciso revisar isto, pois, se existe a palavra “impossível”, e eu próprio a usei, o que ela poderia representar?
Eis aqui mais uma subversão semântica que serve para ampliar esta compreensão. A palavra, assim percebida, é uma impossibilidade simbólica (e não a real). E isto significa considerar que ela seja uma instância dentro das possibilidades, projetada inversamente.
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A impossibilidade assim considerada é sempre aquela tola, inexpressiva e irrelevante. É uma proibição que as regras, através de seus ditames, colocam para que uma possibilidade possa vir a ser “desativada”, em nome da credibilidade do espírito obsessor, para haver alguma zona capaz de criar outras ilusões derivadas. É possível haver ali uma possibilidade renegada, mesmo que provisoriamente.
Para os cristãos, por exemplo, matar é uma impossibilidade simbólica dada pelos “Mandamentos” de deus. Não pela incapacidade de alguém matar outro, mas sim por haver uma regra em que matar seja proibido, ainda que matar seja aceitável quando as mesmas regras ou seus representantes o digam para fazer, nos casos das guerras, cruzadas, sacrifícios humanos, inquisições, jihads, penas capitais ou ainda outras situações extremas. Um impossível simbólico que se torna possível apenas quando pela ação direta das versáteis regras.
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Impossível mesmo – aquele algo ou ideia que não seja possível, realmente – é apenas para as questões fora das obsessões coletivas, ou conceituais. Como por exemplo as questões naturais, em que não se possa considerar possível que uma amputação de um braço humano levará à uma regeneração orgânica. E que um novo braço possa nascer no corpo do amputado, tal como “renasce” a cauda amputada de uma lagartixa. Só assim se dá a impossibilidade, a nível natural, ou quase isso. Ainda dentro da obsessão cristã, há a própria possibilidade de a ressurreição existir, de um morto voltar a viver. E que é o mesmo do que um defunto, um corpo inteiro decrépito volte a viver, e muito mais difícil de se imaginar do que um braço, que seria apenas suposto “renascer” de um organismo vivo, de uma mesma origem.
Ainda assim, é mais facilmente aceito pelos cristãos que este defunto possa virar um corpo redivivo. E sair de sua catacumba a perambular por entre os vivos do que aceitar que o braço ressurja em alguém. Mas não há uma negação total, declarada e contestatória sobre a ressurreição, pois ela já está estabelecida pela obsessão, por mais sinistra e estranha que possa parecer. Nenhum cristão contesta abertamente isto e, se o fizer, terá problemas e será atacado pelos demais, ou excomungado, ou ainda pior, será cancelado. No passado não tão distante assim, poderia até ter sido queimado vivo." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
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"Mas, o quanto disto há em nós? O quão contaminados estamos? Por que é tão difícil percebermos a nossa própria imersão ideológica? Eis também a dificuldade de trabalharmos a partir dos nossos próprios valores, dos conteúdos qualitativos que temos, sem sermos parciais ou imprecisos.
Devemos, assim, e preferencialmente, deixar por agora estes valores à parte disto, e buscarmos meios mais eficientes para ultrapassar tais conteúdos morais. E e isto será viável se direcionarmos o foco para as formas relacionais, nas dinâmicas racionais e das interconexões existentes em seu estado mais puro. O que precisaremos, então, será adentrar às relações entre os conteúdos (sede da moral) e as possibilidades (diretoras ideológicas da moral). Isto nos levará a perceber as formas relacionais da estrutura. E por isso a importância central para uma dimensão ontológica da ideologia. Dar uma dimensão ontológica à ideologia é dizer que ela “é” algo, que existe e é capaz de atuar. Recorrer à forma nos possibilita isto, pois a forma será o esqueleto da ideologia.
E a forma é também, necessariamente, relacional e motriz, e assim transcenderemos ao estudo apenas do indivíduo, como comumente é feito. E consideraremos não apenas este indivíduo. Que nunca está isolado, mas sempre é considerado autossuficiente. Consideraremos suas relações com o meio no qual está inserido, nas teias que chamamos de interações sociais. Que possuem as ideias comuns e relevantes de nossa ideologia." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XVI)
- Geolocalização e Representações-
Sobre a Geolocalização e Representações: "Todos motorista que se orgulha de ser um bom cidadão, gosta de se dizer um profundo conhecedor de sua cidade. Na prática, quando dizemos conhecer a cidade que habitamos, razoavelmente, isto significa que conhecemos os principais pontos da cidade, e os mais prováveis de serem conhecidos. Podemos nos movimentar por ela, pois sempre teremos algum ponto de referência em algum canto dela que nos permitirá perceber para qual lado estamos e o que precisamos fazer para chegar a um outro destino desejado, sem se perder pelo caminho. Mesmo que não se conheça tudo, ou não se percebam todos os caminhos possíveis, haverá algum senso de orientação que fará tudo parecer conectado, e isto nos permitirá uma certa sensação de confiança para nos movimentarmos.
Mas, a cidade é sempre maior do que o que há de conhecido por nós. E também é maior do que tudo o que há de construído nela, pois existem lugares em que ainda nada há construído. Nem mesmo seus limites estão todos perfeitamente demarcados (geralmente não existem marcas limítrofes, sensivelmente) e, assim, sem alguma ajuda visual externa, nunca sabemos se estamos ainda na cidade, ou se já estamos na cidade vizinha, ao transitarmos próximos às suas fronteiras geográficas que não estejam visualmente demarcadas.
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O território é sempre maior do que o espaço de convivência. Este espaço de convivência, na verdade, não é apenas o que chamamos de espaço privado, nossa casa, mas também o espaço público, em que todos podem estar, conjuntamente, alocados a conviverem numa parte do território. Mas quase nunca se convive em todos os espaços do território que abrigam os habitantes, mas sim naqueles mais relevantes, acedidos e compartilhados, geralmente mais concentrados nas regiões mais centrais e que chamamos por cidades.
O território é, desta forma, sempre tido como aliado das possibilidades. Pois supostamente nele tudo se pode construir, com a intenção de ocupá-lo. Mas, se não de todo, ao menos de uma porção limitada dele podemos ter conhecimento, e atribuir classificações, categorias, nomes, etc., que são os predicados dos conteúdos do território, comumente representados de alguma forma nos registos possíveis, qualitativamente e quantitativamente. Surge a Avenida Tal, a Rua Tal e Tal, o prédio XYZ, e por aí vai. Ainda que possamos percorrer todo o território, pois é uma possibilidade, apenas o faremos comumente nas partes que sejam relevantes ou necessárias à nossa rotina, bem como nas rotinas das demais pessoas, e serão estas partes relevantes que primeiramente estarão representadas, pois serão referências comuns e necessárias. Farão parte da realidade própria e compartilhada dos habitantes.
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Todos estes conteúdos reais são, assim, em conjunto, representados em um mapa físico ou num guia da cidade, como nos antigos Guias Rex (um “livro”), publicações anuais muito populares no Rio de Janeiro nos saudosos tempos analógicos; ou, já sem o saudosismo, em um sistema digital, como nas aplicações de GPS, que passam a obter as coordenadas da localização exata de algo ou alguém através de quaisquer destas representações, a partir da informação dada por um observador externo, ou melhor, três destes observadores, que são os satélites que triangulam a exata posição que se deseja precisar.
Por isso, é uma representação tanto quantitativa quanto qualitativa. Na dimensão digital do GPS há a representação de quase tudo o que é relevante na cidade ou território, mas não tão fidedignamente, pois não é necessária uma máxima qualidade para a função que se deseja obter dele, que é orientar um deslocamento de um ponto ao outro, ou apenas acusar a localização exata de onde se esteja, ou de onde se queira ir. A quantificação, todavia, é necessária com a máxima precisão dada pelas coordenadas. Assim, nem todos os conteúdos serão igualmente relevantes qualitativamente para se saber por onde precisará passar até chegar ao destino pretendido.
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E o sujeito passa a se orientar pelas referências geográficas destas representações relevantes, supostamente a mostrarem-lhe o melhor caminho para o destino informado, a partir de um roteiro que lhe é dado pelo dispositivo. Ou não, necessariamente, pois poderá sair a dirigir pela cidade com o GPS a funcionar e neste caso apenas receberá sua localização atual representada na tela, a mudar a localização no mapa a cada vez que se movimenta. Cada representação será a apreensão quantitativa da localização “real” e em tempo “real”. Mas, ainda assim, será uma representação da realidade, e não a realidade em si, pois o entorno real do usuário pode não ser exatamente o mesmo que está representado no GPS, pois a qualidade não é relevante, de todo.
Assim, ao seguir irrestritamente as recomendações de movimentos que o GPS determina, o que estará a ocorrer é que você estará submisso não mais à realidade do seu entorno, mas sim às representações dela, que estarão a comandar suas ações no mundo real. E isto é, de certa forma, uma subversão da realidade, quando não é mais a realidade que é priorizada na decisão, mas sim sua representação que passa a ter a primazia – do efeito que, subvertido, passa a causar. Na causação imanente, na subversão, percebemos que a representação é formada a partir da realidade, e por isso não soa tão estranho, exceto por tal representação não ocorrer em simultâneo.
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E logo se é levado a perceber que se tomam as representações como sendo a própria realidade. Por isso não é raro que, ao seguir as orientações do GPS, perceber que se cometeu um erro e será difícil sair de onde se está apenas com o uso do GPS, e será preciso voltar a se referenciar pela observação direta da realidade. Se você é um millennial, terá muita dificuldade em imaginar como eram comuns estas coisas nos tempos do Guia Rex, que era atualizado apenas anualmente. Pessoas que residiam em locais não mapeados pelo Guia, não raro marcavam com seus convidados em algum lugar conhecido e próximo, para então seguirem juntas para suas casas, se quisessem mesmo receber visitas. Pois a realidade muda, se transforma, e as representações não conseguem acompanhar seu dinamismo, pois são registos estáticos, completamente imobilizados de um passado cada vez mais distante."
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"Mas, o que faz você se movimentar como se movimenta, na direção escolhida, são as diretrizes dadas pelo GPS para você, a partir dos cálculos que este faz de acordo com o que lhe está disponível nas representações, que por sua vez foram subordinadas a determinadas predicações. Ele determina o que seja o ótimo para você fazer, mas o faz por ter sido assim comandado, de acordo com as condições e com as suas restrições. Você pode programá-lo, por exemplo, para não passar por pedágios, ou até mesmo para que ele não decida nada ao não calcular apenas um único percurso, mas sim sugerir três ou mais percursos distintos e que caberá a você escolher qual quererá percorrer, como se fosse mesmo você a escolher.
Pois ainda assim, lhe parecerá que é o GPS que está a ordenar, como se fosse ele mesmo a ser uma personalidade a dizer o que fazer. Mas, o que ele faz mesmo é seguir as regras que existem, que resultarão no caminho otimizado que será sugerido para o trajeto entre o ponto em que se está e o ponto que se deseja ir. Mas, ele o faz como se ordenasse mesmo, e não apenas estivesse a lhe sugerir fazer.
E é assim percebido por muitos que o seguem irremediavelmente, e que assim farão até que não seja mais possível. E, quando há a impossibilidade de segui-lo, por exemplo, por uma rua em que a mão foi invertida pelo poder público, a tendência é culpabilizar o poder público pela “ingerência” dele sobre a realidade percebida, como se este fosse o próprio agente do caos na ordem representada no GPS. E não é assim mesmo?" (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XV)
Geolocalização e Representações: Conteúdo Protegido.
- Hesitação-
A hesitação surge com o acontencimento do estranhamento e é manifestada pela paralisação do agir, anomalamente ao esperado.
"A hesitação é um estado de inferno pessoal, de insatisfação e perplexidade, tudo junto e misturado e que pode levar facilmente ao pânico. É essa hesitação que iremos dissecar, conceitualmente, a partir daqui, visto que não é assim tão raro ela aparecer. Antes de se aceitar (ou não) a nova condição dada pela vitória conquistada, pois seguir adiante significa também aceder a um novo lugar na estrutura da vida, geralmente um lugar mais elevado, mais pretensiosamente ao topo." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. II)
"A hesitação é, portanto, o resultado de uma resistência de si mesmo, ou uma manifestação inconsciente de uma cilada em andamento. Mas, geralmente, também é uma dor, pois impede a suposta alegria da realização de uma vitória obtida. E toda dor possui uma função denunciadora de algo que não está bem. Algo que precisa ser tratado, por vezes oculto ou bem nas profundezas de algum sistema, ainda que funcional, mas que começa a desintegrar-se." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IV)
... hesitação
"A hesitação, assim, também pode ser uma fuga das escolhas difíceis que se apresentam, ou pelos desgastes que estas representam. Das deliberações que podem ser tomadas para além de aceitar o que há para si, estabelecido pela vitória conquistada. O prosseguir adiante pode ser, também, um hábito, mas que poderá deixar, igualmente, na mente daquele que sempre prossegue uma grande dúvida acerca das oportunidades diversas que poderão não estarem a ser consideradas. E esta pode ser a razão para que, no futuro, a hesitação ocorra mesmo depois da vitória, em um momento qualquer.
Há que se ponderar também em casos assim. A seita da autoajuda descobriu o mal dos procrastinadores, e já condenou também a hesitação aos que adiam suas decisões para algo incompreensível, como pensar melhor sobre o que se está a fazer. É preciso ser veloz, sem hesitar, sem pensar, sem nada que faça parar para se perceber o real." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VII)
- Honra-
Sobre a honra: "O sujeito ideologizado de forma extremista se torna completamente desconectado da realidade comum a todos, ao bom senso e à própria razão, e vive apenas no mundo da ideologia à qual se extremou. Para ele, o universo é a própria ideologia abraçada como verdade última e absoluta. Nada mais há para além disso.
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É algo tão profundo e radical que é incapaz de “perdoar-se” a si mesmo caso faça alguma ação contrária ao “bem” profundo de sua ideologia. Por isso, muitos radicais viram-se contra o “nosso mundo” e podem facilmente nos eleger como inimigos. Este ser radical precisa agir assim, pois logo julga que terá ferido sua honra por qualquer coisa que faça de “errado”, por não defender a sua ideologia. Os outros, para eles, são alienígenas, estranhos, e possivelmente ameaças que precisam ser combatidas. Assim, sentem-se na obrigação de defenderem sua ideologia. E não é assim com os nacionalismos, com as organizações cívicas ultrarradicais?
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O que se chama de honra, na verdade, é a afirmação da própria moral a partir da ideologia. E isto se dá pela cristalização mais profunda dos valores ideológicos que considera ser sua própria identidade. Caso atue contra tais valores, deduz que vai contra si mesmo, e contra o seu “mundo”. E daí ocorre nele a vergonha, que é a diferença negativíssima percebida com imenso impacto e a consequente rutura de sua sustentação existencial: desaba. Daí, a pessoa “transgressora” faz um autojulgamento, se autocondena como culpada e se sentencia a alguma pena, e se pune.
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E por isso comete sacrifícios, automutilações, privações das mais diversas formas ou até mesmo apela ao suicídio, como privação maior da própria vida. Não por acaso, não é raro em seitas existirem os suicídios individuais ou coletivos – algo mais previsível nas mais extremistas. Também não é por acaso que as seitas se refugiam, quase sempre, em comunidades distantes e isoladas e com o mínimo contato com as cidades. Vivem cercadas e protegidas do “mal” exterior." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XVI)
- Ideologia-
Ideologia: "Se há, de facto, a partir de tudo o que foi descrito até aqui, algumas argumentações que parecem corroborar com a suposição da existência e a capacidade de influência de um espírito obsessor, tal qual entidade transcendental considerada capaz de dirigir as ações e conteúdos dos sujeitos em conformidade aos propósitos de uma ordenação estabelecida por uma dada forma, então se faz necessário conhecer mais sobre esta fenomenal entidade. Mas, se você ainda resiste duramente a tal hipótese espiritual, há uma nova abordagem acerca dela que lhe parecerá mais apropriada e conveniente. Vamos a ela.
A “comunicação” direta com todos os alegados espíritos dos mortos – seja pelo diálogo objetivo, seja por via de cartas ou postais, ou até mesmo através dos meios digitais, desde o telex, a passar pelo fax, e-mails ou redes sociais, ao menos até hoje, foi impossível de se evidenciar com algum grau de assertividade racional e factual.
A comunicação indireta, que se dá pelo uso de intermediários, ou médiuns, nunca conseguiu ser validada totalmente, a nível epistemológico e ontológico com um grau mínimo de assertividade – embora muitos consideram existir tais comunicações, mas somente no campo da fé, do conforto necessário que buscam, mas sem uma comprovação como devemos exigir e prezar. Por isso, também assim não nos será conveniente.
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Pois, em nosso caso, comunicarmo-nos assim com o nosso espírito obsessor estrutural será até subversivamente problemático, e isso se dará não por não haver a facilidade de fazê-lo “baixar” em alguém disposto a ser o médium comunicante, para que através deste procedimento mediúnico possamos “dialogar e arguir” o espírito obsessor. Há muita facilidade para encontrarmos um médium para que isto ocorra, e é tanta, mas tanta facilidade e serão tantos os voluntários que o problema ocorre justamente por isso, pois todos os viventes já estão a atuar como médium deste espírito, em maior ou menor grau, e isto colocaria a arguição em imediata suspeição, pois será completamente contaminada.
Mesmo que não tenhamos a necessidade do tal ritual mediúnico, algo muito incomum já estaria a ocorrer, ao termos respostas divergentes para uma mesma pergunta feita sobre “ele” – uns médiuns até negam que “ele” exista mesmo, enquanto outros se dizem devotos fervorosos, e alguns possuem certezas que “ele” aparece para eles e conversam sempre sobre tudo – e todos já estariam assim a falar pelo espírito, ou a negar sua própria existência ou a exaltá-la. Por isso, pela forma com que cada médium o percebe e o expressa, fica impossível identificar a verdade nas comunicações sem considerarmos uma multipolaridade no espírito – mas “ele é” perfeito e por isso mais impossível ainda. Mas mais impossível ainda do que este último mais impossível ainda será pensar em alguma despossessão coletiva ou mesmo em um exorcismo individual para uma libertação completa, se é que isto seja possível, viável ou necessário.
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Esta influência espiritual obsessiva, assim suposta, parece ocorrer mesmo que a racionalidade nem sempre se faça presente, ou manifestada, ou utilizada. Não é necessariamente uma influência objetiva, argumentativa, construtiva, uniforme, consistente e autônoma, e, portanto, necessariamente racional, como seria o suposto inteligentíssimo espírito hegeliano da razão, mas também não se dá de forma necessariamente subjetiva ou irracional, de todo, pois não é nada animalizada, mas sim uma influência aparentemente arracional, tal qual um condicionamento, vício ou hábito, na qual se faz relativamente o que “ele” espera que se faça, sem que “ele” se expresse diretamente, e tudo dentro de um automatismo comportamental que por ser tão evidente, ficou normalizado, e quase devocional.
Há uma relação tão profunda como aquelas em que se formam modos de comunicação apenas pelos olhares, pelos gestos, pelas circunstâncias. A palavra “ele” ficou entre aspas, pois, de facto, não há a pessoalidade no que é “ele”, pois não há uma existência autônoma ou deliberativa deste espírito dotada de uma personalidade, conforme veremos. Pois, aqui, estamos a usar o pronome pessoal a se referir a algo não exatamente pessoal, e dispensaremos as aspas, doravante. Assim, os céticos em espíritos fenomenológicos já ficam mais confortáveis. E os mais crentes na transcendência podem continuar certeiros que ainda há algo para além das aparências, como sempre suspeitaram, ainda que não da forma que estiveram a pensar. E todos ficam felizes, ou não."
... ideologia
"É como um espelho “mágico” com capacidade de causar alterações na imagem refletida, ainda que nem sempre o faça, pois também pode refletir a imagem sem nenhuma alteração, ainda que raramente. Pois, como não se sabe o que se está a emitir, exatamente, também não se saberá o que se estará a receber, e não se conseguirá perceber a diferença, e nem se fazer juízo acerca dela. Por isso, em síntese, toma-se a representação como a realidade. A imagem percebida, de si e do mundo, passa a ser tomada como a própria realidade. Essa diferença é que faz com que a soma das partes (reais) sejam sempre menores do que o todo (composto também pelas representações). Aos poucos, estamos a construir as bases funcionais desta entidade."
... ideologia
"Por isso, o espírito pode aparentar ter uma razão mais rudimentar ou até muito sofisticada, mas serão apenas aparências, ilusões, e a forma como se percebe ele só dependerá de quem está a buscar usá-lo, a desejar afirmações e conformidades, pois é uma razão, ainda que aparente, que surge não apenas como causa, mas como efeito, na mesma velha e funcional causação imanente, quando a causa é também o efeito, em si mesma.
Esta aparente confusão de se perceber sobre a racionalidade do espírito – e por consequência atribuir a ele uma consciência, uma existência autônoma – acontece porque este é composto basicamente pelos conteúdos compartilhados e comuns, em seu núcleo, que estão distribuídos e rodeados conforme suas predicações, das mais comuns, densas e duais, mais ao centro, e ao redor estarão as mais específicas, sutis e isoladas, mais à superfície. Pense que se o mundo iniciasse hoje, com uma única rede social e que todos tivessem acesso a elas, então a primeira fotografia publicada ficaria disponível para todos. Logo, alguém publica novamente a mesma fotografia, mas com filtros aplicados.
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E há a diferença, e há a predicação – uma será mais do que a outra, e outra será menos do que uma… e, assim, sem que se alterasse o conteúdo, se alterariam suas predicações e, portanto, faz parecer que há “mais” do que havia. Todas estas predicações passam a operar como diretrizes dos conteúdos que possibilitam os fluxos entre eles, as mudanças de posições, e que os alocam onde estão, e por isso são confundidas com o próprio espírito, que parece sempre crescer em dimensão, e em importância, para além da mobilidade que se consegue perceber nele, sempre a fluir por tudo o que se conhece.
E o espírito parece ser a totalidade dos conteúdos e predicações, das formas, e que está presente por toda a estrutura, desde as crenças mais profundas, como os valores do bem e do mal, até chegar ao nível das possibilidades, que é o limite de sua atuação – e também da nossa.
Portanto, a atuação do espírito também estará presente nas regras, e nas ações dos seus representantes com os quais nos relacionamos, o que justifica o papel ordenador que será atribuído a este espírito, que dá também os critérios das predicações serem como são, e por isso há a impressão de sua constante presença, como sempre estivesse a nos observar, e sempre disponível, até mesmo capaz de intervir intempestivamente se contrariado e, assim, dotado de uma personificação; e é por isso que se atribui intuitivamente a “ele” um tratamento pessoal, ou mesmo um nome, ou uma posição ontológica, talvez divina, pois passa a ser percebido como se tivesse imensa capacidade racional." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XV)
... ideologia
"A ideologia é instanciada, em perspetiva, a partir das possibilidades – criadas por nós em nossas redes relacionais. São estas relações que ativamente provocam o senso criativo dos indivíduos, que percebem suas faltas e intencionalmente fazem evoluir as possibilidades, a correlacionarem valores morais. A falta percebida provoca a necessidade de superação das próprias limitações, da finitude, e estimula a vantajosa vida em sociedade, mas não apenas isso. Por crer que seja possível ainda mais do que apenas anular a diferença negativa que possui, passa-se a buscar este mais. E o mais é feito ao criá-las e recriá-las: as possibilidades mais ambicionadas e valorosas, e isto levou à formação e consolidação das relações estruturais. Tais relações possuem as mesmas origens na ideologia e na moral mais primitivas, mais “puras”, e que logo passaram a constituir relacionamentos regulados e parametrizados." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XVI)
Ideologia: Conteúdo Protegido.
- Imagens-
"Não são possibilidades, então. O que tenho disponível como escolha, para mim, desta forma, são apenas as oportunidades - as imagens. A função do gadget é limitada às oportunidades, comumente. Mas, ainda assim, o que percebo dele a operar são possibilidades – o que vem da TV para mim me dá a certeza de que são as próprias possibilidades, em pessoa. E essa é a sua “mágica”. Pois, em certa medida, o gadget deixa de existir e passa a existir apenas a TV, que é minha relação com a realidade, a ocorrer, ou com o tablet, que é minha interface com a TV.
Ao assistir a um filme, estou no devir e, com isso, lá estão as possibilidades, oriundas das oportunidades ofertadas e me faz perceber que é o gadget que me está a oferecer tudo isso. Transcendentalmente, e não somente a responder uma demanda criada por mim mesmo e configurada para ser desta forma. A mente passa a considerar o meio como o fim, e nisso há a subversão, a partir do relacionamento que travo com o próprio filme e tudo o mais que há interligado a ele e a mim.
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O curioso é que o gadget opera tal qual foi projetado para fazer. O valor atribuído a ele é de minha responsabilidade, a partir dos resultados causados em mim. E assim começo a considerar que ele seja racional, ou melhor, smart, a oferecer o máximo que podemos aspirar. Possibilidades; como se todo o universo passasse a estar disponível para ser apreendido através dele. E passo a considerá-lo como um portal místico, ou talvez quântico, que dá acesso a tudo a nível “universal”. E também por isso custam tão caro, pois possuem um alto valor agregado pela sua funcionalidade!
Mas, não esqueçamos. Ele não produziu nada, nem produzirá, e todo o processo foi feito por mim, no tablet, ainda que isso tenha sido feito apenas pelos filtros ou pelas perspetivas limitadoras dele. Pelas aplicações que ele possui instaladas em seu sistema que passam a ser uma espécie de restrição imposta para mim, ao me oferecer apenas as oportunidades que existem, mas com as condições dele, pela ação das regras existentes, e das predicações ordenadoras.
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Ele se relaciona comigo ao impor suas condições, suas imagens, e é por isso também que passa a ser um replicador das regras. É preciso perceber também que o filme é uma representação de uma realidade ocorrida no passado na qual foi apreendida. Não é mais o real. Pois o real se dá no devir, na atualidade do instante em que se testemunha o ambiente no qual a história está a ser contada. Assim, esta história passará a fazer parte da própria realidade de quem a assiste. Por isso, há uma transferência de valores, de conteúdos e predicados, quando as oportunidades passam a serem vistas como possibilidades, e os meios são vistos como fins.
Quando a escrita foi inventada, mudamos a nossa forma de gerir nossos conteúdos mentais, que foram transferidos para o papel, outra invenção, e puderam ser compartilhados. O papel, assim, apenas “armazena” um conteúdo que é uma representação do que alguém pensou, na realidade dela, no passado. E passou a ser representado textualmente como forma de registo, pela escrita. Tal como o faço, neste momento, a escrever o que penso e que, certamente, logo estarei a esquecer exatamente o que escrevi. Mas poderei aceder aos escritos e perceber que lá estão as representações do que pensei em algum momento da minha vida. Você, neste seu momento, está a aceder ao que pensei, e escrevi, agora já no meu passado.
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São representações de conteúdos, imagens, mas que estão na sua realidade, e assim passará a considerar que este livro possa ter algum valor para você. Ou não. Mas não será o livro, pois este também é este um gadget que não possui nada, nem produziu nada, mas apenas dá acesso a algo. Agora fica mais fácil perceber por que dizemos equivocadamente: “aquele livro é excelente!”.
E isto tem exatamente a indevida atribuição qualitativa ao livro, ao objeto, e não ao conteúdo, ou melhor ainda, a quem o escreveu, a partir de uma representação caligráfica que fez de uma realidade vivida ou imaginada. Não é o livro que é bom, mas leva a fama de sê-lo. Da mesma forma, o espírito leva a fama de ser o detentor das possibilidades, mesmo sem tê-las, pois, ele é apenas um tipo diferenciado de gadget a nos orientar nas representações já produzidas." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XV)
Imagens: Conteúdo Protegido.
- Imanência-
"(Ver também: transcendência) ...O indivíduo é sempre, a priori, conceitualmente considerado imanente. E esta imanência tem correlação direta com a atribuição da autonomia e da autossuficiência dada a cada indivíduo, como se este fosse mesmo algo estanque e com total independência em relação a tudo, em termos deliberativos, plenamente dotado de um livre arbítrio incondicional. Mas, desta forma, com o indivíduo a ser um núcleo impermeável, autossuficiente e imanente, não será difícil perceber que tudo o mais que esteja para além dele será, para ele, por extrapolação conceitual, não mais imanente, mas sim transcendente, pois a imanência se limitará à própria condição de individualidade.
A imanência, na perspetiva individual, para o que esteja “para fora” dele, do indivíduo, passa a ser relativa ou a uma tangibilidade ou a uma mera conceituação vulgar, sempre ocorrida em sua perspetiva e nunca absoluta. Ou melhor, o indivíduo passa a perceber a imanência das coisas de acordo com sua própria “perspetiva” (o que sou eu, o que é meu, e o que não é, e o que nem sou…).
Se um indivíduo possui uma casa, esta é algo imanente, obviamente, mas não é o indivíduo, pois este é independente da casa. O que há, no indivíduo, desta casa, são os conteúdos mentais que esta possui, junto a si, apreendidos consigo. O que é material não está no indivíduo. Portanto, tudo o que há para fora do indivíduo, seja pela falta de conteúdos mentais, pela incompletude dos conteúdos, ou pela incompreensão ou desconhecimento de tudo o que não consegue conhecer, do que pode haver, são transcendentes, ao menos como estaremos a conceituar, doravante." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VIII)
- Imobilidade Estrutural-
Imobilidade Estrutural: "O determinismo é dado pela sensação vindoura de imobilidade estrutural. Ocupar um status mais alto será, também, possuir menos mobilidade, por não poder se afastar da posição que se ocupará. Responsabilidade, pressão, expetativa, desempenho, etc. É uma projeção para o futuro que causa um sentimento de tristeza, como se estivesse a deixar de ser o que se é, e o que se foi, para trás. E isto nem sempre parece sem bem assimilado pelas pessoas mais sensíveis, pois é entendido como uma grande perda de si, verdadeiramente. Há o sentimento de que tudo já está dado no futuro, que existe um mecanicismo que esteja a absorver toda a capacidade criativa que se origina da liberdade que se tem, e que não mais terá como antes." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IV)
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"O marketing basicamente incentiva o movimento da potência à imobilidade do ato. Faz agir para que não se precise agir mais, pela saciedade prometida. E a diferença é gatilho mais facilmente trabalhado pelo marketing mais eficiente, pois não são nem as qualidades e nem os atributos do produto mais relevante. Mas sim a falta que o consumidor possui, nele mesmo, em relação a quem possui o produto. Um exemplo são os influencers, que nem precisam prometer nenhuma qualidade do produto, mas basta um post com algum produto que estão a promover que levam todos a procurarem para comprar. Nem mesmo os influencers precisam ser bons, ou terem qualidades intelectuais ou fazerem algo de especial na vida. Basta promoverem-se de forma eficiente a distinguirem-se dos simples mortais, e serão desejados tanto quanto um produto.
Nada se correlaciona às promessas úteis e valiosas do produto ou da necessidade que o consumidor possui em relação ao produto." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VIII)
Imobilidade Estrutural: Conteúdo Protegido.
- Individualidade-
"Mas se a busca do todo é mais imprecisa, então agrupar elementos que formem um conjunto de pontos em comuns, ainda que não sejam um todo, será uma espécie de protocolo que todos passam a considerar, e isto sim poderá resultar em algo mais frutífero. Se somos todos humanos, quantitativamente já em mais de oito bilhões, qualitativamente somos únicos, e cada um de nós diferimos de todos os demais. Há a individualidade.
Não somos um Universo individual, mas um conjunto de perspetivas a nos buscar conectar entre todas elas, a nos dividir entre o que for mais conveniente. Não somos uma unidade, mas sim uma pluralidade convencida de ser uma unidade, e em luta de ser o que nunca poderemos ser, de facto. Ainda ignorantes, todavia, mesmo com todos estes pretensiosos conhecimentos, nos falta a visão do real, da capacidade de suportar o caos que nos impera internamente." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. X)
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"Pois a moral possui os conteúdos mais profundos e simples: rústicos, ou selvagens, propriamente. Aqueles predicativos que já não são muito movimentados, nem questionados, pois se tornam os mais estáticos e centrais do que todos os outros. Na verdade, se forem movimentados até podem se “desintegrarem”, e causarem problema ao que o indivíduo entende de si mesmo, pois são os “filtros” primários que os levam a agir. São os conteúdos morais que sustentam a perceção de existência e de identidade da individualidade, que estabelecem os parâmetros da diferença, da falta, pois isto ocorre mesmo assim: o “melhor”, ou o “positivo”, precisa sempre estar comigo, e o “pior”, ou o “negativo”, com os outros.
Basicamente, este é o primeiro fator de relevância moral aos que apreendem, desde tenra idade, o que é ser a si mesmo. Tão natural quanto isso: a fome é comparada a um estado em que se estava saciado – há falta e, portanto, se está pior. E se aprende a chorar. Um exemplo reduzidíssimo, mas que logo desenvolveremos mais. A dor, a sede, etc… tudo é falta, assim como a pobreza, a feiura, etc. Vale tanto para a comparação em relação a si, quanto para os outros." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XVI)
Individualidade: Conteúdo Protegido.
- Influencers-
"Mas isto não se restringe meramente a coisas que se está a admirar e a desejar. E o observador desejante passa a desejar ser e ter como todos os que ele considera que estejam mais em ato do que ele próprio, e por isso há sempre a falta percebida na perspetiva do observador, que se sente dotado de uma potência não exercida. E isso o leva a agir a buscar sua própria existência sempre como o máximo dos máximos. Como nos exemplos já citados, é o mesmo quando acontece a ambição dos simples mortais pelos influencers, que sempre passam a serem “seguidos” à exaustão pelos que enxergam possibilidades neles, ainda que ilusórias ou apenas produzidas artificialmente.
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Mas não são estes influencers que movem diretamente os que estão a lhes seguir nas redes sociais, pois estes influencers “fazem” indiretamente os seguidores se moverem em sua direção, sem mandarem ou obrigarem ninguém diretamente, e causam este movimento para que todos os sigam apenas por serem o que são – indivíduos supostos serem perfeitos e completamente acabados e, em puro ato, e por isso dotados de todas as possibilidades realizadas em si próprios, a causarem a “inveja” dos desprovidos que percebem as gigantescas diferenças entre o que são e o que poderão vir a ser. São os influencers os novos deuses, disponíveis em todas as redes sociais tal como o motor imóvel aristotélico na esfera superior do éter inalcançável dos céus do Monte Olimpo.
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E isto é a mesma coisa que leva os mortais humanos a se moverem em torno dos demais modelos de perfeição que alguns poucos humanos conseguiram atingir, fruto dos progressos evolucionistas de milênios e de todas as resultantes sociais que emergiram para que fossem assim considerados. Há miríades deles em todos os cantos, ou melhor, em todas as redes sociais.
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Temos os motores imóveis humanos contemporâneos em todos os lados, mas bem mais provavelmente em cima dos palcos – que da mesma forma nada fazem para além de existirem, como em puro ato, a excederem-se a si mesmos, plenos de si. Mas que indiretamente provocam tudo a se mover em busca do que mostram ser. E estes modelos de perfeição não são apenas os Influencers, mas também os coaches, os heróis, os artistas, jogadores de futebol, participantes do BBB, os VIPs, os gurus e inúmeras outras formas de vida perfeitas em que o mediano humano se espelha e se movimenta para atingir tal estado de magnitude, a comprar o que estes vendam, a consumir o que estes usem, ou dizem usar. Ou basta que apenas digam ser necessário ter no armário do banheiro para que o simples mortal que é o seu seguidor passe também a ter e a viajar por onde eles viajam, a comer por onde comem e a repetir tudo o que fazem, seja pagando à vista ou a prazo.
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Movem-se, mas não são movidos. A questão ainda continua a ser acerca da autonomia da ação. Outra questão, a ser abordada oportunamente, será sobre os conceitos de mobilidade e imobilidade, sobre a apreensão da fluidez do tempo ou apenas do mesmo instante. Algo mais avançado, que logo trataremos de lá chegar. Mas, vamos prosseguir." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VIII)
- Intencionalidade-
"As discussões prosseguiram, sempre a exaltar a racionalidade humana como diferencial existencial. Até que o filósofo alemão Franz Brentano (1838-1917) propusesse[1] que o conceito do conhecimento fosse a inexistência intencional (intencionalidade), em que o sujeito “conhece” cada objeto apenas em sua mente, primordialmente. Os objetos não seriam, então, coisas materiais, necessariamente, mas sim o que há na mente. Que contenham conteúdos de informações, intencionais, que são direcionamentos aos objetos, que até podem ser uma coisa, mas não necessariamente. Ou seja, conhecer viraria uma relação entre sujeito e objeto, com a gestão do próprio sujeito.
Por exemplo, você está a ler este texto em um livro ou em um dispositivo eletrônico, por exemplo, e estes objetos são coisas, mas possuem um conteúdo que os determinam como são, em sua mente. Mas não necessariamente, pois você pode conhecer sobre algo que “seja algo” sem que este algo exista, como no clássico exemplo do unicórnio, um dos fetiches epistemológicos prediletos da Filosofia do Conhecimento. Mas é bom perceber que o seu dispositivo nem sempre existiu como coisa, mas talvez tenha tido uma existência prévia como conteúdo.
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O cofundador da Apple, Steve Jobs (1955-2011), primeiramente estava consciente acerca do tablet em sua mente, ou melhor, intencionalmente, como um computador digital de tela plana e sensível ao toque. E isto antes que se consubstancializasse em um produto que fosse ao mesmo tempo um computador, navegador de internet, acesso ilimitado às músicas e filmes e livros digitais. Depois desta existência mental, e muitos milhões de dólares, veio o processo de desenvolvimento e produção, pela Apple. Até se chegar a um protótipo que fosse possível de ser manipulado e aprovado como o produto idealizado, o resultante de uma intencionalidade, tal e qual. O protótipo aprovado já era o iPad. A seguir, apenas seria necessário reproduzi-lo em escala industrial e comercial o que era a “coisa” iPad. E dar-se-ia o fenómeno, como suposto, e como acontecido.
Jobs tinha consciência do todo (prévia, intencional) e conhecimento das partes (sobre cada função, separadamente), sobre tudo o que viria a ser o iPad, antes mesmo de o iPad existir como coisa. Mas ele, ou não, apenas a equipe de criação da Apple, ficou tão consciente de tudo o que seria o iPad. E de forma tão única e consolidada, que abriu uma nova dimensão ontológica para os tablets ao integrar tudo em um único dispositivo, de forma tão diferenciada, em que as partes deixaram de existir isoladamente para dar lugar a um todo, que deixou de ser apenas visto através de suas partes.
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Depois, todos os consumidores tiveram a mesma consciência e conhecimento acerca do que resultou. Passaram a atribuir um imenso valor às funcionalidades que vieram intrínsecas ao conceito do iPad, com suas imensas possibilidades. Enfim, a conhecê-lo como um todo. Se algum dia, algum unicórnio for “produzido”, geneticamente modificado e biologicamente reproduzido, será um processo similar ao iPad. E tudo começa sempre de forma germinal com e como algumas possibilidades: a matéria-prima valiosa da criação.
Portanto, se há a intenção, há a existência na mente, que é o que importa, mesmo que na realidade o objeto não exista como coisa. Poderá vir a surgir, ou não. E isso, algo aparentemente simples, agora, resultou em uma nova revolução filosófica. O discípulo de Brentano, o filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938), avançou com a sua fenomenologia. feita com base irrefutável do conceito de intencionalidade." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IV)
[1] Brentano, Franz. Psychology from an Empirical Standpoint. Tradução de A. C. Rancurello, D. B. Terrell, L. L. McAlister. Introdução de Peter Simons. Londres: Routledge, 1995.
- Interesses Afetivos-
"Há que se considerar, desta forma, os motivos ou interesses afetivos que levam algumas pessoas a defenderem licitamente as formas de relacionamentos amorosos comerciais entre duas pessoas, mesmo quando acordados de forma comercial não formal, como por exemplo na prostituição, que em certos casos não deixa de ser uma forma sincera e civilizada de relacionamento entre adultos conscientes.
Apesar de contrariarem alguns preceitos morais tradicionais, os relacionamentos amorosos comerciais parecem, em tese, ocorrer positivamente por cada um saber exatamente o que está a ser acordado, pela parte que paga pelos “serviços” para obter o que a outra parte possui e, se for um “serviço” realmente profissional, competente, terá ainda a ilusão, nos poucos minutos, ou horas, da relação, de uma simulação de estar realmente a ser desejado, fantasiosamente. A parte que recebe pelos “serviços”, prioritariamente, está interessada no pagamento, e a cumprir sua função. É um tema complexo e perigoso, mas necessário de se abordar, pelo extremo que é uma afinidade declaradamente interesseira, a priori.
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Para além das questões morais, qual a diferença, a rigor, entre a prostituição e um casamento no qual exista um contrato pré-nupcial? Não há, aqui, uma condenação moral, pelo contrário. Nem o desejo de “rebaixar” o casamento à prostituição. Não é isso. A questão é elevar os relacionamentos comerciais da prostituição, se dentro de mínimos padrões de liberdade de escolha, de gosto e, principalmente, de consentimento, ao mesmo nível dos casamentos dados sob condições contratuais legais e formais, pois são todos relacionamentos firmados com base nos interesses e em normas estabelecidas, afinal, quando as partes estabelecem tudo o que queiras, previamente, e o que não queiram. A rigor, qual a diferença, sob esta perspetiva?
Para além da moral e do romantismo abalado, há algum mal verdadeiro nisso? Tudo é uma questão de avaliação, de juízos, de valores e de feedback que um espera receber do outro. Nem todos aceitariam isto, desta forma, exceto quando se apaixonam e ficam cegos para todas as convenções sociais. Se for a única opção para se realizarem afetivamente, não hesitarão em ceder às exigências, ou farão as suas também.
A controvérsia vem por causa de que o amor acabou por ser também um produto, idealizado como padronizado pelas obras literárias de ficção e mais recentemente pelas produções de Hollywood, que alguns apreenderam como verdadeiras fontes de obrigações de finais felizes e declarações apaixonadas em estações de metro entupidas de gente, prontas a apoiarem a todos que queiram se manifestar amorosamente. Mas o que acaba por importar, em toda relação, é mesmo o feedback do outro, da fantasia que está em jogo. Isso dá a qualidade, a intensidade, e é o que todos querem realmente." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IX)
Interesses Afetivos: Conteúdo Protegido.
- Lapso Temporal-
"O lapso temporal ocorre quanto o sujeito hesitante revive este passado presente quando começa a questionar-se se o percurso feito até ali foi o mais apropriado, se era mesmo esta vitória e esta nova posição que queria realmente para si, pois estranha o que está a receber como vitória. O sujeito questiona-se a si mesmo, ao hesitar.
Este evento de lapso temporal passa a ser uma deslocação compulsória da situação inusitada em que se vê no presente para uma zona das impossibilidades que está projetada no futuro, pois não se pode mais desfazer o que já fez, e assim abre-se um abismo do tempo sob si, entre o passado e presente que passam a ser quase a mesma coisa a se distanciarem abissalmente do futuro, visto como impossível de ser viável. Pois, o que se percebe neste futuro é que será claustrofóbico, mais restrito, com menos possibilidades. E o futuro, sempre algo otimista e positivo, se transfigura e passa a ser o que assombra o sujeito. E isto é a contradição manifestada em forma de lapso temporal, ou simplesmente é o que se chama de 'perder o chão'." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IV)
- Linguagem-
"Dentre tantos conceitos que deixaram de ser “impossíveis” e passaram a ser decretados possíveis, mesmo que nem sequer possam existir, como no caso da própria universalidade. Mas isso só se deu pela eficiente ação do espírito obsessor, e apenas por interesse próprio ao alegar para si próprio uma universalidade ilusória, mas que lhe assegura a mais abrangente forma de poder representativo e legitimador com todos os melhores atributos “possíveis”: onisciência, onipresença e onipotência. Por isso, a universalidade é indiretamente a mais maquiavélica de todas as impossibilidades, até agora, que fique claro, a atingir um nível mesmo pornográfico, de tão obscena que passou a ser. E a linguagem é a cola, mas também é um resultado.
Eis a forma do pensamento contemporâneo neoliberal que dá vida a algo totalmente incoerente, capaz de transpor conceitos da impossibilidade real dos inexistentes para a produção de produtos que incorporem uma pós-possibilidade irreal dos já existentes. Será o projeto do pós-humano o melhor exemplo. E, como se percebe, todos os que estão sob o jugo desta obsessão coletiva passam a trabalhar para fazer valer o que passou a ser o novo possível.
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Talvez seja por isso, ou o que o valha, que Friedrich Nietzsche escreveu[1], em suas anotações, mas que não foram publicadas, que «não há factos, só há interpretações», ainda hegelianamente, e que os pós-modernistas, em especial os franceses, dentre eles o filósofo argelino Jacques Derrida (1930 – 2004), levaram à risca a possibilidade de, não declaradamente, de limitar os Universos às possibilidades textuais. Assim, um texto sempre passa a ser lido com alguma prévia intenção do leitor, e uma atitude deste se fará necessária, ainda que seja a caridade intelectual, pela necessidade de dar crédito ao que virá ser exposto nesta universalidade textual, para além do seu preconceito já presente.
Os franceses chegaram muito próximo de questionarem a universalidade, em si, mas não o fizeram de todo, mas em equivalência, pelo que entendemos que a linguagem organiza o mundo como o conhecemos e, por isso, ao dar a esta linguagem uma sub-dimensão universal, em relação ao absoluto, mas ao mesmo tempo uma universalidade possível de ser formada a partir dela, tal qual opera a obsessão. Seria a linguagem, talvez, a própria perspetiva, ou ao menos uma delas." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
[1] «Que o valor do mundo está em nossa interpretação (…) O mundo, que em algo nos importa, é falso, ou seja, não é nenhum facto, mas uma composição e arredondamento sobre uma magra soma de observações. O mundo é ‘em fluxo’, como algo que vem a ser, como uma falsidade que sempre novamente se desloca, que jamais se aproxima da verdade – pois não existe nenhuma verdade”». Poderá saber mais no artigo de Vania Dutra de Azevedo, A interpretação em Nietzsche: perspectivas instintuais, no linkhttps://periodicos.unifesp.br/index.php/cniet/article/view/7856.
- Livre Arbítrio-
Há um ensaio escrito sobre o a ação humana, em relação ao determinismo, livre arbítrio e compatibilismo, especificamente a abordar a temática da Filosofia da Ação. Clique aqui para saber mais.
"Quem defende o livre arbítrio defende que a pessoa tenha sempre o poder exclusivo de deliberar apenas segundo os seus próprios desígnios, e apenas desta forma. No livre-arbítrio radical e ativo, todas as ações são deliberadas, sem exceção, e de única responsabilidade de quem as executa. Na modalidade passiva, menos radical e latente, é possível que a pessoa, ainda que execute algumas ações que lhe sejam determinadas por uma instância exterior, ou superior, continuará a ter consigo capacidades suficientes para não as fazer, se assim desejar. E este é um campo minado, em especial nas questões cívico-hierárquicas e de responsabilizações jurídicas como, por exemplo, nos crimes de guerra cometidos por quem estava convicto de apenas cumprir ordens." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
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"Talvez até seja mesmo o conceito do livre arbítrio a versão da máscara mais amistosa e conhecida deste espírito dominador e possessivo, que a usa para dissimular as dúvidas acerca dele e, assim, se apresentar como amável e desejoso, e principalmente completamente alinhado com as possibilidades, o que lhe será sempre o mais importante, afinal. Para quem defende o livre arbítrio como mantra, tudo lhe é possível, pois são os devotos mais suscetíveis às dominações, e basta saber quais as possibilidades que o dedicado sujeito valoriza para influenciar exatamente no que ele deseja, tal como fazem os algoritmos das inteligências artificiais das redes sociais ao nos oferecerem o que nos seja mais interessante, hipnoticamente, ainda que façam isto de forma bem menos eficientemente do que este espírito obsessor é capaz de fazer." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XII)
- Marketing-
"O marketing basicamente incentiva o movimento da potência à imobilidade do ato – faz agir para que não se precise agir mais, pela saciedade prometida, e a diferença é gatilho mais facilmente trabalhado pelo marketing mais eficiente, pois não são nem as qualidades e nem os atributos do produto o mais relevante, mas sim a falta que o consumidor possui, nele mesmo, em relação a quem possui o produto. Um exemplo são os influencers, que nem precisam prometer nenhuma qualidade do produto, mas basta um post com algum produto que estão a promover que levam todos a procurarem para comprar. Nem mesmo os influencers precisam ser bons, ou terem qualidades intelectuais ou fazerem algo de especial na vida, basta promoverem-se de forma eficiente a distinguirem-se dos simples mortais, e serão desejados tanto quanto um produto.
Nada se correlaciona às promessas úteis e valiosas do produto ou da necessidade que o consumidor possui em relação ao produto. E é este o ponto central do marketing eficiente, que é dotar o produto de algo extrínseco que falta intrinsecamente ao potencial consumidor, sem considerar nada mais além do objetivo de vender mais e mais, e escalar ao infinito as vendas, a desprezar o vínculo respeitoso com o próprio consumidor ao ponto de manipulá-lo ao máximo. Por isso podemos perceber a fenomenologia com um viés de marketing e de perspetiva entre a imanência e a transcendência. E eis um belo gap fenomenológico a explorarmos."
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"Afinal, parece mesmo que estamos na era das réplicas, dos simulacros, em todos os sentidos. Pois, estes seres superiores - influencers, que estudaremos amiúde, se dizem ser (e a maioria acredita) os detentores das máximas possibilidades – mas que pouco ou nada do que possuem foi mesmo fruto de suas compras, pelos mesmo processos de se trabalhar, a partir de esforços e por competências especificas (a sério, a estudar ou a pegar no pesado, como a maioria) para ganharem seus dinheiros e, finalmente, comprarem eles mesmo este algo que estão a promover.
Não é assim com eles, pois ganham algo de graça, ou até mesmo são pagos para que façam inveja nos outros que precisam pagar pelo que eles nada pagaram, nem pagariam, visto que não teriam dinheiro para fazê-lo, pois nada sabem fazer para além de fazerem inveja nos outros. E está tudo bem, e tudo isso é muito normal atualmente! As próprias mães desejam isto para os filhos. Muitas crianças recém-nascidas já possuem seus canais das redes sociais para suas futuras carreiras de influencers. Até mesmo os pets são influencers. Até mesmo estão a serem suscitados para cargos públicos, políticos e de representações diplomáticas. Aristóteles ficaria muito surpreso, se vivesse em nossos dias, a perceber que o modelo de seu motor imóvel é mesmo aplicável a tudo o que há, em relação ao humano desejante." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VIII)
- Metafilosofia-
"Eminentemente, a mente humana busca sempre por respostas ou por perguntas, mas quase nunca por ambas, simultaneamente, pois o saber é desafiador, e a cada pergunta respondida, novas questões são realizadas e, assim, estas acabam sempre por serem mais valorizadas enquanto ainda não respondidas, e as atenções seguem quase todas para elas. O filósofo devoto, assim, pensa que sua função messiânica é resolver problemas ao encontrar respostas que a rigor nunca foram encontradas nestes últimos três milênios por todos os filósofos que por cá já passaram, e muito pouco de MetaFilosofia fizemos.
Mas os devotos continuam a buscar respostas para além de suas tacanhas capacidades, quando o exercício mais frutífero de elaborar novas e mais relevantes questões deveria ser sempre o mais importante para ele, visto que nem todas as formas organizadas de conhecimentos científicos são capazes de formular questões tão boas quanto a Filosofia, mas a maior parte das Ciências consegue resolver o que a Filosofia colocou ou coloca em causa, mais cedo ou mais tarde. A Filosofia tem vocação para ser a loba má da história, mas querem-na como imaculada cordeira. Eis, por exemplo, a relevância da Filosofia para as Neurociências, ainda atualmente a elaborar novas questões que apenas estas serão capazes de elucidar em laboratórios, mas não a Filosofia, pois esta se limita ao campo conceitual ou teórico, e sempre fora dos laboratórios.
Em linhas gerais, por não se conseguir responder sobre o futuro, sobre algo que ainda não aconteceu, pergunta-se mais abertamente pelo passado, como se este ficasse a martelar a mente humana para completar os buracos existentes na linha do tempo existencial imaginada como linear." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIII)
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"Causa e efeito sempre foram os maiores fetiches para os analíticos. E, a esta altura, não seria imprudente fazermos uma autoanálise providencial.
Pois não houve nada de muito novo, afinal, em tudo o que foi dito, até aqui, e que consistiu apenas em um arranjo diferenciado e com novas interconexões referenciais na busca de uma fluidez que é geralmente evitada, principalmente pelos fetichistas da causalidade: os filósofos mais analíticos. Ainda que estes não consigam perceber bem o motivo de serem assim – fetichistas analíticos – é certo que algo lhes ocorreu quando decidiram silenciosamente pelo abandono dos sistemas filosóficos em detrimento de uma simplicidade causal impossível de se atingir. E isto foi e é ainda muito estranho, ainda mais quando tudo no mundo está cada vez mais integrado estruturalmente, com a vida a fluir à mesma velocidade dos gigabits, a Filosofia Contemporânea passou a evitar tal veloz conexão da fibra e foi buscar apenas as partes fragmentadas de alguma coisa conectada ainda via telex, fax ou no máximo modem com linha discada.
E é isto que estamos a evitar, ainda que sob riscos de causarmos grandes tonturas e perturbações, a refutarmos o fetiche de adotarmos uma imagem, mesmo que seja ela até mais expressiva e representativa do que a imobilidade necrosada que sempre os analíticos pretenderam obter. A imagem atual está a contrastar ainda mais com a realidade, pois antes o pacato fluxo do antigo e renegado riacho mutante de Heráclito deu lugar a algo maior e passou a ser incomensuravelmente mais caudaloso e profundo, transmitido em direto em qualquer dispositivo com acesso à internet. É a vida em sua máxima expressão multicanal, a ocorrer, e sem nenhum monitoramento filosófico adequado à sua compreensão. A Filosofia aceitou o engessamento acadêmico, e foi sequestrada para dentro dos departamentos antiquados e empoeirados. E nunca mais foi vista por aí, pois não estão a pedir resgastes, pois talvez estejam a aguardam por respostas que acreditam que ela já possua, desde sempre. E o tempo está a passar, e seus carcereiros envelhecem, morrem, mas não sem antes treinarem seus sucessores, a reproduzirem o mesmo do mesmo." Quais as propostas, então?... (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
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"O filósofo contemporâneo acredita que a Filosofia seja uma ciência! E quer adotar seus métodos. Não é ciência! A Filosofia é a ameaça à ciência, a predadora, a provocadora, aquela que está a fazer a ciência se mover, por medo de ser a próxima refeição. A função da Filosofia deixou de ser apenas a que responde, e passou a ser a que mais pergunta. A Ciência deve responder, todavia.
Sócrates seria também reprovado por se negar ao uso do Power Point, e até mesmo por não gostar de escrever artigos ou ensaios, e muitas outras formas estabelecidas pelo método de relegar as dinâmicas e potentes ideias a rascunhos decompostos da realidade imobilizada. Sócrates, no máximo, seria considerado como mais um “comunista” barbudo e malsucedido na vida. Afinal, quem quer o movimento, o caos, e a desordem? Tudo atualmente deve ser bem previsível e monótono, em tons pasteis e com música lounge. Sexo? Só de meias, sem nunca se expor por completo, sem nunca se desnudar.
E isso não recai em crítica negativa às pessoas, propriamente, pois estas fazem o que é preciso fazer pois precisam sobreviver e foram educadas para serem assim, por isso a crítica é para as instituições e suas relações, como um todo, que serão atacadas também, a seu devido tempo. Mas é verdade que as instituições são pessoas, mas há algo mais, pois neste caso o todo parece ser sempre maior do que a soma das suas partes. Além das pessoas, há os espíritos obsessores, que também estão nas instituições e que veremos quem são eles no decorrer deste livro." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. I)
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Um pouco do Calvin, um filósofo neocínico, com toda a certeza:
Calvin and Hobbes, pelo autor norte-americano Bill Watterson - Milagres-
"Impossível mesmo – aquele algo ou ideia que não seja possível, realmente – é apenas para as questões fora das obsessões coletivas, ou conceituais, como por exemplo as questões naturais, em que não se possa considerar possível que uma amputação de um braço humano levará à uma regeneração orgânica, e que um novo braço possa nascer no corpo do amputado, tal como “renasce” a cauda amputada de uma lagartixa. Só assim se dá a impossibilidade, a nível natural, ou quase isso, pois ainda temos os milagres.
Ainda dentro da obsessão cristã, há a própria possibilidade de a ressurreição existir, de um morto voltar a viver, que é o mesmo do que um defunto, um corpo inteiro decrépito volte a viver, e muito mais difícil de se imaginar do que um braço, que seria apenas suposto “renascer” de um organismo vivo, de uma mesma origem. São os milagres! Ainda assim, é mais facilmente aceito pelos cristãos que este defunto possa virar um corpo redivivo e sair de sua catacumba a perambular por entre os vivos do que aceitar que o braço ressurja em alguém.
Mas não há uma negação total, declarada e contestatória sobre a ressurreição, pois ela já está estabelecida pela obsessão, por mais sinistra e estranha que possa parecer. Nenhum cristão contesta abertamente os milagres e, se o fizer, terá problemas e será atacado pelos demais, ou excomungado, ou ainda pior, será cancelado - e, para este último, ainda não são conhecidos milagres que foram capazes de reverter tamanha severidade. No passado não tão distante assim, poderia até ter sido queimado vivo, mas hoje é sumariamente cancelado.
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O fato de não se ter estabelecido nada sobre a possibilidade da regeneração de órgãos faz com que todos considerem isso como uma impossibilidade real, até o dia que houver alguma determinação “divina” contrária, a dizer que as escrituras possam, por milagre, regenerar um membro que tenha sido dizimado – tal qual o homem inerte que foi posto a andar novamente virasse uma diretriz para todos os que não possam andar. A omissão obsessiva permite a impossibilidade, e apenas ela. Se o milagre ocorre, e se este for atribuído a algum messias, santo ou santa, haverá uma multidão de mutilados a peregrinar à localidade dos milagres, em busca de um para si, pois o que antes lhe parecia ser impossível deixou de sê-lo.
Por isso, toda possibilidade é, antes de tudo, uma determinação, uma afirmação linguística e intencional convencionada sobre ela, seja crível ou não, seja mesmo ela mesmo possível ou não, seja lá o que for. A impossibilidade real é a declaração não feita, ou parte do que é desconhecido, é o silêncio e a falta de conceituação. Por isso, toda impossibilidade real está necessariamente fora da estrutura, e será desprezada como tal. É o espírito “quem” mais cria o mundo, afinal, e não apenas a mente individual, sempre uma acionista minoritária e irrelevante em relação ao espírito.
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Ainda assim, a partir desta impossibilidade real da regeneração de órgãos, criaram-se, pela inventividade humana, inúmeras próteses para ultrapassá-la, na estrutura capitalista, que tem pauta científica e, por isso, declarou que há sim uma impossibilidade para a “regeneração” de órgãos, em forma de produtos. E passou a ser uma impossibilidade simbólica pois, ao ser declarada, saiu do campo do real para o simbólico e, desta forma, virou um produto e, portanto, uma oportunidade para os mutilados e mais uma possibilidade para a estrutura.
O impossível simbólico sempre é, como tudo no capitalismo, um produto, pois isto já é uma outra obsessão coletiva, ainda mais presente, que é a predominância do capitalismo fetichista no topo de quase todas as estruturas existentes atualmente. São instâncias de obsessões, que se hierarquizam, e influenciam-se, mais verticalmente. Há outras possibilidades, mas o que está em causa é mesmo o sistema de crenças individuais e o cerne da questão: a inviabilidade da universalidade – do Universo aos predicados, das impossibilidades às possibilidades.
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Mas, não pense que não haja reações, pois houve eventos religiosos que incentivavam que os mutilados jogassem suas próteses para que recebessem o milagre de deus. O que estava em causa, ali? A briga pelo fiel, para que se mantivesse na estrutura religiosa. Assim, um espírito obsessor cristão passa a desejar combater um outro espírito obsessor capitalista e, ao fazê-lo, também se torna capitalista, e também está a formar o mercado e a concorrência, e logo virá a mão invisível.
A fidelidade do consumidor, ou do obsidiado, se dá quando mais aparentes impossibilidades forem capazes de serem derrotadas pelas intervenções protetoras do além. O fiel deseja sempre ter as máximas possibilidades para si. Recentemente, algumas igrejas brasileiras difundiram criminosamente a venda de artefactos religiosos, ditos ungidos, para que o fiel comprador pudesse combater o coronavírus, na pandemia. E muitos compraram, lamentavelmente, pois a promessa de marketing estava lá, e a credulidade deles, e o dinheiro, também. Em resumo, é isso.
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Por isso as impossibilidades simbólicas são tão atraentes, pois viram oportunidades, tanto para os representantes quanto para os sujeitos, justamente pelo desejo que fascina a todos, que passam a ver nas representações das proibições algo sedutor e desejável. No final, em que tudo acaba por se confundir na mente dos desprovidos de uma autoconsciência, a impossibilidade simbólica passa a estar para a possibilidade, assim como o diabo está para deus, e tudo dentro de uma grande viagem psicadélica que o sujeito entende como vida. Logo a possibilidade é subvertida, como produto ofertado, em oportunidade. E dá-se o consumo. E ocorre a fidelização.
Portanto, no caso do amputado, a obsessão cristã não estabelece nem uma impossibilidade real nem simbólica, e por isso, não há, ali, uma possibilidade, por não se ter declarado nada a respeito dela, abertamente. Mas, a obsessão capitalista oferta obscenamente a impossibilidade como possibilidade, pois nela a ciência declarou a impossibilidade real da regeneração e, por isso, sempre em contrapartida, há uma possibilidade, que é o produto da prótese. E o obsidiado humano, nada inocente, nem mesmo um coitado em sua maioria, se faz promíscuo entre as ideologias que melhor lhe apetecer, e passa a gostar (e a gastar)." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
Milagres: Conteúdo Protegido.
- Modo de Existir-
O modo de existir é a parte transcendente da quarta esfera do esquema conceitual do possível.
"O modo de existir, por vezes discretamente platónico, pode ser comparado à existência heideggeriana, intelectualizada e voltada para além do próprio eu estrutural, em potências ilimitadas que levarão a estados temporais capazes de maior aproximação rumo às possibilidades e, por isso, o estado ou ato em que se encontra é objeto de ultrapassagem. Este modo já não é apenas de um corpo estrutural, pois não se sacia assim e nem se conforma em ser apenas isto, pois é um modo em que a alma quer ultrapassar a prisão espacial ao subverter a linearidade do tempo, e que se faz capaz de se rejuvenescer com o passar deste. Enquanto o corpo do ser se deteriora estruturalmente, a existência aflora e se expande em perspetivas ilimitadas.
É no modo de existir que a batalha da existência se dá, entre passado, presente e futuro, o devir deixa de ser uma prisão e passa a ser uma mera referência. Por isso, e por vezes, há uma desconexão com a realidade, e a perspetiva construída passa a ser o próprio universo a decorrer com sua vida própria, mesmo que com pontos de conexões comuns a todos os demais existentes. O modo de existir é a própria universalidade formada e percebida, que tanto pode ser uma libertação quanto uma prisão ainda mais poderosa, de acordo com as questões que sejam feitas, pois é neste modo que estão todas as possibilidades mais próximas e sedutoramente influentes pelo espírito." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VI)
- Modo de Ser-
O modo de ser é a parte imanente da quarta esfera do esquema conceitual do possível.
"Este modo é, por vezes discretamente aristotélico, pode ser comparado ao conceito de presença heideggeriana, que é a ocupação plena do próprio eu estrutural, com menos potência do que ato, que se expressa pela excitação progressiva da alocação e da estimulação da imaginação do sujeito, a direcioná-lo espacialmente às possibilidades – todas a níveis profundos em si mesmo ou para muito além de si – e são estas possibilidades as que “sustentam” cada uma das individualidades, dando-lhes tanto uma essência quanto um propósito, mas tudo ainda obscenamente disperso e por vezes ininteligível, e que causam sensações viscerais ao se perceber o que o está a separar delas.
O modo de ser é o corpo que envelhece com o tempo enquanto estrutura aprisionada na estrutura, a ser absorvido lentamente, consumido aos poucos, a entregar sua existência em troco de nada, enquanto é digerido pela sua própria perspetiva. E tal consumação se dá enquanto está a percorrer os caminhos do mundo, nas suas mais loucas viagens, a apreender tudo o que lhe é afim enquanto a dor lhe faz questionar a si mesmo, e a tudo o que há, em busca de algo que percebe estar para alem de si mesmo.
e...
Este modo de ser se dá no devir, quando se vive este devir em ato com toda a potência que for capaz de tirar de si mesmo – o tempo é uma distante e fugaz possibilidade, e por isso o espaço é priorizado como meio de ocupação, de presença. Mas, tal limitação o faz querer mais, e para atingir um modo de existir que está para além da mera ocupação espacial, ele precisa, assim, fazer questões a si mesmo – questões sobre a realidade, sobre o que há para além de suas ilusões que começam a lhe incomodar, e a doer-lhe os pensamentos; mas estas questões não lhe são imediatamente todas próprias, afinal, e são percebidas de formas incompletas ou insuficientes.
O sujeito precisa, assim, investir também neste modo de existir para que possa, afinal, perceber mais do que a sua própria alocação estrutural, e assim fará enquanto “constrói” o seu ser." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VI)
- Moral-
"Contrariamente a isto, para Espinoza – o filósofo ainda renegado – o bem não seria uma causa final. Pois não se deseja o que seja bom (em si), mas sim o que se deseja passa a ser bom na medida em que é desejado. É o desejo, portanto, que deveria parametrizar o bom. Mas isto nunca ocorreria no mundo estático dos devotos, mas apenas funcionaria em um mundo que fosse tomado por dinâmico, fora de nossa alçada. E tudo o que não é compreendido neste mundo estático em que vivemos passa a ser projetado neste míope cenário dual-moral. Que a tudo classifica ou como bem ou como mal, lamentavelmente. O espírito, assim, passa a “agir” desta forma, dentro da mente do que foi “possuído” por ele, já perdido de si próprio." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XII)
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"A ideologia é uma entidade que precisa mesmo ser compreendida completamente, pois sua existência está para além dos básicos valores duais que alguém mais facilmente identifica em si mesmo, e nos outros, como o bem e o mal, o certo e o errado, enfim, os mesmos valores que estão atrelados na moral e que são igualmente conteúdos, de tão adensados que se encontram, quase sem que se consigam distinguirem-se das formas. Pois a moral possui os conteúdos mais profundos e simples: rústicos, ou selvagens, propriamente. Aqueles predicativos que já não são muito movimentados, nem questionados, pois se tornam os mais estáticos e centrais do que todos os outros. Na verdade, se forem movimentados até podem se “desintegrarem”, e causarem problema ao que o indivíduo entende de si mesmo, pois são os “filtros” primários que os levam a agir.
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São os conteúdos morais que sustentam a perceção de existência e de identidade da individualidade, que estabelecem os parâmetros da diferença, da falta, pois isto ocorre mesmo assim: o “melhor”, ou o “positivo”, precisa sempre estar comigo, e o “pior”, ou o “negativo”, com os outros. Basicamente, este é o primeiro fator de relevância moral aos que apreendem, desde tenra idade, o que é ser a si mesmo. Tão natural quanto isso: a fome é comparada a um estado em que se estava saciado – há falta e, portanto, se está pior. E se aprende a chorar. Um exemplo reduzidíssimo, mas que logo desenvolveremos mais. A dor, a sede, etc… tudo é falta, assim como a pobreza, a feiura, etc. Vale tanto para a comparação em relação a si, quanto para os outros.
São estes valores o chão dos mais crentes, em que tudo “desabaria” se fossem bruscamente alterados, pois são estes tipos de indivíduos que estão mais alocados nos níveis mais centrais da existência, ou morais, e que não consideram nada mais relevante do que estes valores – nem mesmo as evidências que possam vir a contrariar as crenças morais existentes, por exemplo, e por isso é que passam tais individualidades mais crentes a se confundirem com os seus próprios valores."
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"Se os átomos se agrupam para adquirirem alguma estabilidade, assim também nós, indivíduos, o fazemos. Mas nem nós (nem os átomos) somos estáveis sem estarmos nessas ligações, ou o que as valham. Isolados, certamente não existiríamos. Pois sucumbiríamos nas primeiras horas de vida sem os cuidados necessários. Como estamos a trabalhar filosoficamente na dimensão das causas imanentes, já podemos perceber que a ideologia tanto é causada pela moral, quanto causa a moral. Mas estão em níveis diferentes: a moral é mais densa e concentradora, a ideologia, mais etérea e expansiva." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XVI)
- Movimento e Paralisia-
"Mas, o fluxo de ida e de volta, de movimento e paralisia, entre qualidade e quantidade, se consistentemente realizado, chega a um ponto mediano, condensado, clusterizado, e que pode dar uma impressão de ser isto a universalidade. Muitos gostam deste estado transitório e se acham realizados, se dão por satisfeitos, ainda que por alguns instantes antes de as contradições e inconsistências ressurgirem mais fortes.
Mas, entre “ir” e “voltar” neste insano fluxo, já se está a errar profundamente ao assumir que quando se sai de “A” para “B”, depois só lhe será possível voltar de “B” para “A”. Mas “A” já nem existe mais como antes, pois tudo se movimenta, e o idealista fica, como sempre, perdido nas convenções que mudam incessantemente. “A” era “A” quando o viajante lá estava, ao sair, tudo mudou, como o rio do filósofo grego Heráclito[1] (~500 a.C. – ~450 a.C.), pois tudo está sempre a mudar. Tudo ou movimento ou paralisia. A mudança é o movimento. A imobilidade é uma apreensão feita do processo sempre em mudança, do ser que é o instante apreendido como um eterno presente, do filósofo grego Parmênides[2] (530 a.C. – 460 a.C.), que se faz necessária e útil ao conhecimento analítico. Mas se conhece apenas o que se consegue apreender e a se conceituar a partir desta imagem, enquanto o que está a ocorrer é eterna mudança.
Platão[3] foi muito feliz ao definir o tempo, e o fez com uma das mais belas frases da Filosofia, quiçá de toda a literatura, ao dizer que «o tempo é a imagem do eterno». E este eterno é também esta eternidade a se movimentar constantemente e a se transformar em algo novo, sem compromisso fixo com uma constância ou qualquer previsibilidade “eterna”, pois tudo pode deixar de ser, e deixar de existir. Mas há a eternidade que é apreendida em pequenas frações, em momentos, para que se configure assim a perceção do tempo. O tempo é um frame, uma película do instante da apreensão que é apreendida, mas nada continua a ser como tal, necessariamente." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. X)
Notas: movimento e paralisia
[1] «Os filósofos de Mileto haviam notado o dinamismo universal das coisas, que nascem, crescem e perecem, bem como do mundo, ou melhor, dos mundos submetidos ao mesmo processo. Além disso, haviam pensado o dinamismo como característica essencial do próprio "principio" que gera, sustenta e reabsorve todas as coisas. Entretanto, não haviam levado adequadamente tal aspeto da realidade ao nível temático. E foi precisamente isso que Heraclito fez. "Tudo se move", "tudo escorre" (panta rhei), nada permanece imóvel e fixo, tudo muda e se transmuta, sem exceção. Em dois de seus mais famosos fragmentos podemos ler: "Não se pode descer duas vezes no mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado, pois, por causa da impetuosidade e da velocidade da mudança, ela se dispersa e se reúne, vem e vai. (...) Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio, nós próprios somos e não somos.». Reale, Giovanni. História da Filosofia. Volume l. São Paulo: Paulus. 2003, pg. 23.
[2] «…não tem passado nem futuro (de outro modo, uma vez passado, não existiria mais, ou, na espera de ser no futuro, ainda não existiria), e, portanto, existe em um eterno presente, e imóvel, homogêneo (todo igual a si, porque não pode existir mais ou menos ser), e perfeito (e, portanto, pensável como esferiforme), e limitado (enquanto no limite se via um elemento de perfeição) e uno. Portanto, aquilo que os sentidos atestam como em devir e múltiplo, e consequentemente tudo aquilo que eles testemunham, é falso.» Ibidem, pg. 32.
[3] «Enquanto eterno, o mundo inteligível está na dimensão do "é", sem o "era" e sem o "será". 0 mundo sensível, ao contrário, está na dimensão do tempo que é "a imagem movel do eterno", como uma espécie de desenvolvimento do "é" através do "era" e do "será". Por isso, implica geração e movimento.» Ibidem, pg. 144.
- Neocinismo-
Sobre o Neocinismo: Pois o verdadeiro Cínico não quer mesmo convencer ninguém, quer é que todos tenham em si todo o discernimento que ele julga ter e a dúvida, assim posta, é algo sempre desejável. O argumento bom é aquele contrário, que não leva a nenhuma certeza, mas sim a um maior exercício das capacidades intelectuais. Se o cético não acredita ser possível alcançar a verdade, e o sofista não acredita que exista a verdade, o neocínico acredita que os dois, tanto o cético quanto o sofista, podem estar certos conforme a perspetiva em que estejam, assim como também todos os outros que discordam destes, e possuem suas teorias acerca da verdade.
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O Cinismo foi um movimento, antes de tudo, de anticultura. E a cultura, naquele tempo, era a investigação teórica e abstrata, de estabelecimento de conceitos e modelos sobre o conhecimento e sobre o mundo. Os Cínicos queriam algo essencialmente pragmático. O mais famoso dos Cínicos foi mesmo Diógenes de Sinope (412 a.C. – 323 a.C.), que diziam viver em um barril e nada possuir, e era este o seu marco anticulturalista, de negar todas as convenções sociais e reduzir suas posses ao mínimo possível. Foi o primeiro minimalista da história e o precursor dos movimentos da contracultura, assim reconhecidos nos anos 60, como por exemplo os dos hippies. Para Diógenes, a liberdade para agir e se expressar era o maior bem, além da liberdade de tudo o que pode prender alguém a uma estrutura, que é fortemente negado por ele.
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Mas, há que se considerar que uma vida fora da estrutura é difícil, árida e complexa. Além de arriscada e com quase nenhum prazer. O Neocinismo propõe uma vida na estrutura, mas com consciência, lucidez e capacidades de ter, sempre, as saídas todas disponíveis. O que o Neocinismo propõe é o mesmo que queria Diógenes, que saía com uma lanterna acesa, à luz do dia a procurar o “homem”. O que ele queria era destacar que ninguém mais poderia ser, ali, humano, pois deixara de viver de acordo com sua essência. Era a distância antropológica que ele já estava a verificar, entre o modo de ser, em essência, e o modo de existir, em determinada posição na estrutura. Para o Neocinismo, a consciência acerca destes estados é benéfica e desejável, dado que o “homem” já não o temos mais, desde há muito. Uma batalha que já foi dada como perdida." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
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"Para um filósofo contemporâneo, declarar que a universalidade deve ser colocada em causa possui efeito similar a se condenar às fogueiras das modernas inquisições acadêmico-filosóficas, em que tudo está muito bem acomodado, embora nada tenha esteja a ser respondido ou esclarecido, pois o “Universo” permite uma distribuição em que o vazio é capaz de distar tudo, tal como galáxias separadas por incomensuráveis anos-luz, completamente desconexas e estranhas entre si. Nada, aliás, é despropositado, mais ainda venenosamente e novamente aqui destilada como reafirmação cínica.
E é justamente este impositivo universal filosófico que mais conflita com a visão neocínica, que contempla não um todo, nem um absoluto, nem um relativo, mas sim uma perspetiva que encerra em si tanto uma aspiração a ser uma universalidade, mas sem deixar de considerar suas relações. O que se busca com a dialética neocínica é o Universo em perspetiva, o todo considerado como um sistema funcional e operante e a conectar tudo o que há. E isto é facilmente um alvo atrativo para ser atacado, ainda mais pelos ditos filósofos puristas e crentes nas verdades universais, imbuídos de uma poderosa força quase fundamentalista de que o todo está por aguardar ser descoberto ou composto, e caberá a eles próprios fazer tal descoberta ou composição." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. X)
- O Bem-
"Pois a formação dos conceitos do que seja bom ou mal, na moral, se dá exatamente como na relação entre o senhor e o escravo[1]. Sob a perspetiva do escravo, este fundamenta primeiro o seu valor moral negativo, o mal. Nietzsche atribuiu ao escravo o primeiro passo na formação da moral fundamentada na oposição entre o bem e o mal.
Para ele, neste caso, o conceito ou o predicado do mal surgiu a partir da ameaça (e não da impossibilidade real) imanente que a figura do senhor representava para ele, primordialmente. E somente depois disto, da perceção do mal, o escravo passou a instanciar em si o que seria o bem. E este conceito de bem se fez presente quando ele passou a deter para si possibilidades de, por exemplo, se vingar daquele que o oprimia, o senhor, e se libertar, sair da vida que possuía.
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Se visse o senhor como impossibilidade real, nada poderia fazer, e ficaria prostrado na condição desumana. Percebia a liberdade, a tinha como possibilidade, real e atual e, assim, precisava ultrapassar a ameaça instanciada, que o castigaria, ou mataria, se se rebelasse ou fugisse. É uma subversão da teoria criacionista cristã que se fundamenta no bem, e não no mal, mas Nietzsche está plenamente em linha com o que se defende aqui, ou melhor, humildemente, estamos plenamente em linha com o que ele nos deixou acerca da moral do bem e do mal.
Mas que resultou em ser mesmo a possibilidade de vingança, que seria o bem para o escravo (e uma ameaça para o senhor, portanto) que lhe deu um vislumbre do poder que poderia obter, e então o poder foi tido também como um bem ainda maior, recebido por quem o merece e seja capaz de bloquear o mal. Sempre, portanto, é preciso perceber que a busca pelo poder é, em si, uma busca pelo bem, na perspetiva do buscador. E, como sabemos, há muita relevância e centralidade do poder na Filosofia de Nietzsche.
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Mas, e se analisássemos o contrário? Para o senhor, todavia, detentor do poder, o escravo é tanto uma possibilidade quanto uma ameaça – tanto é o bem, quanto o mal. E é ameaça justamente pelo poder que este detém sobre o que seja o bem do senhor, sem o saber, como gerador de possibilidades para o senhor – gerar riquezas pela utilização compulsória de sua mão-de-obra. O escravo é valiosíssimo para o senhor, e responsável direto por este ser quem é, pois, se o escravo se torna uma impossibilidade real, ou seja, se deixasse de existir escravo, o senhor não mais poderá ser senhor, pois depende deste escravo para sê-lo, tal como deus depende do diabo para ser deus, funcionalmente, e que triunfa sobre as supostas impossibilidades.
O escravo correlaciona-se com o sujeito da estrutura, mas o senhor não se correlaciona com o espírito obsessor, pois este criou uma correlação deste senhor com a ameaça, a dar-lhe status de impossibilidade, e ficou oculto, a manejar seu jogo sem que seja exposto, ou referenciado abertamente. É apenas um conceito empoeirado nos pensamentos filosóficos mais indesejados, que geralmente levam à subversão do sistema instituído e tido como ideal. Eis aí sua verdadeira faceta conservadora." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
Notas
[1] Usaremos, a partir daqui muitas das vezes, a palavra “escravo”, como a considerar pessoas, de forma geral, que estejam “na situação de” escravos. Pois, não há mesmo como se aceitar que alguém seja um escravo, de facto, por ordem da natureza – isto é inaceitável. A escravidão, como concluiremos a seguir, é um ponto muito lamentável na Filosofia de muitos grandes pensadores, até mesmo os que são admirados atualmente, como Hegel e Nietzsche, dentre tantos, pois há claros indícios de que não eram contrários a tal prática, como também existem indícios de que possuíam opiniões favoráveis a respeito.
No mínimo, há a omissão da maioria dos pensadores até o Século XIX, quando a escravatura começa a ser abolida pelo mundo, o que já é profundamente lamentável, dada a condição intelectual que possuíam. Sem um julgamento politicamente correto, seguiremos a expor os pontos de vistas acerca disto, ainda que nas partes finais retomaremos estes posicionamentos acerca da relação escravatura e os filósofos.
- O Impossível-
"(ver também: real)... E não será difícil uma rápida reflexão para perceberemos que, na vida, o que consideramos serem impossibilidades não duram por muito tempo, pois estas nunca são dadas como definitivas pela mente humana. Impossibilidades são consideradas assim apenas por brevíssimos momentos, pois para toda situação de impossibilidade detetada, há sempre a seguir uma possibilidade de anulá-la, ultrapassá-la, de fazê-la possível, como tudo o que há, seja pela busca criativa humana ou esperança em algum agente externo que esteja presente ou ainda que seja apenas uma mera promessa, uma possibilidade. Ou seja, há uma crença instantânea, quase um gatilho que para toda a impossibilidade há ou haverá um remédio. Se o remédio funciona ou não, passa a ser irrelevante, mas só a consideração dele faz a impossibilidade deixar de ser impossível.
A impossibilidade é sempre uma resistência a algo, a alguma possibilidade existente. A impossibilidade nunca é original, mas sim derivada de algo. Antes da impossibilidade, já há a possibilidade à qual ela se refere ser impossível. Por isso, não é permanente, mas sim transitória. E é assim que a mente humana aplica o mecanismo das impossibilidades impossíveis. Afinal, temos a famosa e clássica frase da autoajuda que explica bem sobre este ponto: 'por saber que não era impossível, foi lá e fez'. Tão profundo quanto inspirador, que até pode comover para se continuar a ladainha da superação. Não de se deve ceder a tais perigosos apelos e, por Sócrates, precisamos voltar ao cerne filosófico."
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A força que se encontra para ultrapassar a impossibilidade é tão poderosa que nem mesmo importará a veracidade do meio considerado capaz de anulá-la, pois apenas é suficiente existir algo, seja verdadeiro ou falso, para que possa anulá-la por completo na mente do sujeito sempre possível. Eis o motivo de a autoajuda adorar o tema da impossibilidade, pois já está plantado na mente humana desde sempre que tudo é sempre possível. E não precisam muito para excitar este pensamento de superação. Pois a impossibilidade é a kryptonita humana, a única entidade capaz de retirar todas as forças humanas e por isso ela é sempre anulada, até pelo próprio sentido de autopreservação, de uma forma ou outra, pois conviver com o impossível é algo extremamente destrutivo.(em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IV)
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"Por isso, toda possibilidade é, antes de tudo, uma determinação, uma afirmação linguística e intencional convencionada sobre ela, seja crível ou não, seja mesmo ela mesmo possível ou não, seja lá o que for. A impossibilidade real é a declaração não feita, ou parte do que é desconhecido, é o silêncio e a falta de conceituação. Por isso, toda impossibilidade real está necessariamente fora da estrutura, e será desprezada como tal. É o espírito “quem” mais cria o mundo, afinal, e não apenas a mente individual, sempre uma acionista minoritária e irrelevante em relação ao espírito." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
- O Mal-
"Podemos perceber os mecanismos destas operações, tais como quando a versão personalizada e negativa de deus (que representa o bem), seria supostamente o diabo (o malvado da história). Assim pensam os crentes religiosos acerca do bem e do mal. E o diabo é apenas um de seus infinitos nomes atribuídos, de suas inúmeras predicações maléficas, ou do próprio mal substancial atribuído a “ele”, que o eleva a uma condição diferenciada em oposição a tudo o que seja bom.
Mas, mesmo assim, “ele” não é, em si, uma impossibilidade dada como real e não atual, visto que até mesmo pode se disfarçar como uma cobra falante e causar grandes estragos aos planos de deus – e é isto mesmo o que ele faz – sempre a ameaçar os planos do bem em todos os tempos do passado, do presente e do futuro, com a atualidade garantida, a ser ilusoriamente tomado como real, a transitar no tempo e no espaço, a ameaçar tudo o que há, mas nunca a impossibilitar o bem de ocorrer, ou de triunfar sobre ele.
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Pois, afinal, na realidade, o diabo nunca existiu. Nunca há a impossibilidade real que se origina causada pelo mal ilusório, por pior que este possa ser considerado. Não é mesmo curioso, visto sob esta ótica? Talvez haja um pequeno bug na mente de muitos leitores, a perceberem que muito do que eles próprios pensam sobre o mal se desfaz quando se desfazem os frágeis conceitos acerca da universalidade.
Então avancemos novamente. Perceba mais uma coisa: em todas as histórias que nos chegam, o diabo nunca impede nada, realmente, mas pelo contrário, geralmente excita e incentiva o pecador potencial para sê-lo realmente, de facto, em ato, a fazer tudo o que dizem ser proibido por deus, mas que lá no fundo ainda fica no pecador, assim constituído, um potencial ainda existente, e uma imensa vontade de pecar ainda mais, pois passa a uma condição de ser completamente insaciável sob a influência do capeta.
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O pecado não é mesmo o que há de mais gostoso e tentador nas religiões, ao menos em sua maioria mais conhecida?
As regras estabelecidas são tanto as que criam quanto as que proíbem o pecado, mas já na dimensão humana, a partir dos representantes que assim estabelecem. Agostinho de Hipona, por exemplo, definiu o livre arbítrio como possível e outorgado por deus; definiu que o mal é a ação do homem, sob a égide do livre arbítrio e, por fim, apenas a intenção de pecar, ou os pensamentos voltados ao pecado, já se configura o pecado, mesmo que nada se faça para além dos próprios devaneios mentais.
O diabo seria, desta forma, se “ele” existisse mesmo, um libertador das regras e dos representantes da ordem estabelecida, em termos conceituais. Mas o que o diabo supostamente faz é apenas ameaçar que as regras não sejam cumpridas, e nem os representantes sejam obedecidos, e combater isto passa a ser a cruzada que todos os devotos passam a se engajar, em nome da possibilidade que nunca perceberam mesmo existir, mas que está ameaçada pelo capiroto. E não é nada mais do que isso.
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A função diabólica é, portanto, ameaçar (nos filmes de suspense, ou terror, a iminência do ataque é sempre mais aterrorizante do que o ataque, em si, por vezes patético e cômico) – pois ameaçar é uma função essencial para que o bem se estabeleça, pois, este sempre precisa fazer com que o diabo “perca” para provar sua superioridade ontológica, para provar que o que é suposto ser o bem seja mesmo o “bem”, ao final dos embates viciados travados com o cramulhão, pois o bem sempre “precisa” vencer teatralmente o mal para se afirmar como tal. É, assim, essencialmente funcional para o espírito obsessor a ação diabólica, pois só a partir dela é que este se pode afirmar como superior e desejável.
Se o céu fosse uma empresa de fast-food, com aqueles pósteres de funcionários do mês, o diabo seria sempre a fotografia presente no mural dos funcionários em destaque, pois a cada avanço da fé significaria que ele estaria a prestar melhores serviços. Algumas instituições religiosas deram e outras ainda dão destaques aos demônios, a contratarem atores representantes para que estes possam ser “possuídos” e “despossuídos” – de forma verossímil – pelos representantes do bem, os líderes de tais instituições, quando em frente aos devotos ansiosos para constatarem a efetividade do poder do bem que lá está às suas disposições. Tais espetáculos se deram no passado medieval dos exorcismos e ainda estão em cartaz em muitas religiões, seja ostensivamente ou veladamente.
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Não deve ser fácil contratar bons atores, pois além da qualidade dramatúrgica da representação, deve-se ter uma quantidade suficiente de atores no casting para que não se repitam endemoniados nos cultos semanais, pois um mesmo devoto possuído rotineiramente representaria uma efetividade de libertação muito aquém da aceitável, pois assim seria o poder do representante do bem muito curta e ineficiente, portanto. Afinal, em nome deste poder, o ator não pode resistir muito tempo em sua encenação, pois o líder do bem pareceria fraco e limitado.
Há que se acertar os tempos, e por vezes não dá muito certo, pois quase sempre se passa do drama à comédia, ou o ator encena muito mal o seu papel, ou é demasiado rápido, ou demasiado lento, ou quer imprimir alguma profundidade excessivamente dramática como, por exemplo, rotacionar 360º com a cabeça ou com os olhos, ou até mesmo se contorcer mais do que conseguiria um ator do Cirque du Soleil. Os problemas são rotineiros.
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Mas ainda há o risco de o ator ser muito bom e atrair para si o protagonismo do show, tal como quando o vilão é mais bem quisto do que o próprio herói, ainda mais se o herói for "alguém" tão insípido quanto o Batman, e há um vilão tão rico quanto um Joker a lhe fazer frente. E por qual razão isto ocorre? Pelas próprias qualidades dos atores. É preciso, assim, dar valor a quem representa melhor o bem ao se assumir como o mal, pois assim se consegue o que se quer, que o mal promova melhor o bem.
Pois, se assim não fosse, e houvesse o “verdadeiro” mal da impossibilidade, haveria de se admitir que o bem (oriundo dos conjuntos hierarquizados das possibilidades) poderia ser inviável para ser atingido, pelas impossibilidades reais e atuais, oriundas da ação verdadeira do mal, visto que o mal não apenas ameaçaria, mas realmente impossibilitaria o bem, por completo. Seria um imenso problema viver sem possibilidades, e tudo seria diferente, e muito mais sombrio, sem expectativas. Por isso, o espírito substitui o inimigo, e este nunca oferecerá o perigo de ser realmente o impossibilitador de nada, mas sim um ameaçador, no máximo. A “mágica” estará no marketing, que o próprio espírito tratará de promover uma reles ameaça para um status de impossível, para que ele consiga ganhar e se afirmar. O show não pode parar, afinal." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
- O Possível-
O possível é tudo o que você conhece somado a tudo o que poderá conhecer, ser e estar, mas que ainda não lhe será suficiente. O possível é a zona da consciência realizada mas profundamente pretensiosa.
O possível não é universal, mas meramente individual, pois é uma perspetiva - e nada mais do que isso. Se há um universo, este é o possível, e limitado a cada perspetiva que se faça, redundantemente, possível.
O possível não antagoniza com o impossível, pois este permeia por todo o possível, e este é apenas a parte conhecida do impossível, e por isso sentimos todos as impossibilidades bem próximas, a nos envolver.
O possível é a ínfima parte do caos que pudemos ordenar com imensos esforços, a superar de alguma forma o impossível e a nos dar uma falsa impressão de o termos dominado ou decifrado, que é a nossa verdadeira intenção, desde sempre, pois assim percebemos ter atingido o que consideramos ser o bem.
O possível é, portanto, a nossa organização existencial: é tudo o que apreendemos, que conhecemos, que nomeamos, que compartilhamos entre nós pela linguagem, que definimos e damos valores a partir dos acontecimentos ocorridos.
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Como o possível não está separado do impossível, e sim completamente inserido neste, mesmo dentre tantas operações que realizamos de construção e manutenção do possível, algumas vezes surgem fissuras ou brechas que nos coloca em contato com o impossível, e é quando nos surgem os estranhamentos da vida que logo nos levam aos questionamentos dos "problemas" existenciais.
O impossível é a realidade do real, aquela que nos angustia, nos afugenta e nos amedronta. Criamos o possível para evitar o impossível. E, no possível, criamos tantas coisas que nos fazem distrair e nos deixam anestesiados do que realmente somos. Pois todo este processo criativo coletivo e hereditário muitas das vezes falha, e nos surgem as tais brechas ou fissuras que nos expõem ao caos do impossível. E quando isto o que ocorre percebemos os nossos abismos existenciais entre tais dimensões - quando surgem as nossas crises e as nossas maiores vulnerabilidades existenciais.
Não somos capazes de lidarmos com o impossível, mas podemos chegar bem mais perto de nos libertarmos de seus efeitos nocivos sobre nós. Ao compreendermo-nos a nós mesmos, e principalmente ao descobrirmos a nossa posição existencial - o ponto de partida desta autodescoberta.
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Simples assim, mas nada disso é fácil de percebermos imediatamente à primeira impressão. E esta pode ser a sua dificuldade agora, ao achar tudo confuso ou até sentir medo de adentrar a esta área do conhecimento de si mesmo. E é coerente, pois construir tudo isso foi para não termos de lidar com o caos que agora precisamos lidar. Mas, toda criança cresce, e certos assuntos que antes lhe eram escondidos se tornam necessários de serem experienciados. Somos todos crianças que estamos a crescer e é chegado o nosso momento de tratarmos de assuntos realmente sérios. Este é o nosso tempo, de uma minoria em crise que precisa a aprender a lidar com a verdade das questões da maturidade. Você não está aqui por acaso, afinal.
Por isso, para que possamos perceber didaticamente como tudo isto funciona, adotamos aqui um esquema conceitual que criamos e que explica em detalhes este possível. É um esquema que serve tanto para um indivíduo - para você, como para as estruturas às quais você pertence. Pois, a bem da verdade que logo descobrirá em nossos argumentos, não somos mesmo indivíduos autônomos, mas sim parte de uma estrutura - somos causa e efeito, simultaneamente, e desde sempre.
Isto é o possível - aquilo que é por não ser. E assim começaremos nossos estudos.
Leia, na íntegra, em: O Esquema Conceitual do Possível
- Objetificação-
"Sim ou não: apenas estas duas decisões possíveis, sem chances nem sequer para um talvez, nem ao menos ocasionalmente. Surgirá, provavelmente, do progresso da estrutura a objetificação e o surgimento do homo algorithmus, oriundo do processo do reducionismo que terá imensa corroboração dos avanços tecnológicos, principalmente da inteligência artificial, que sempre deixará uma suposta margem para o humano pensar que é ele quem está a decidir sobre sua própria vida, enquanto está a ser manipulado pelas suas próprias crenças e desejos, em processo similar a uma hipnose.
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Sim ou não: eis as únicas escolhas prováveis para um futuro que não está tão distante assim. Mas, nada é tão ruim que não possa piorar ainda mais. Pois pode ser mesmo ainda pior e mais radical, ao supor que poderá existir outro cenário resultante ainda mais restritivo, mas até mesmo mais real, quando só se restará uma das opções, que será sempre o “sim”, como atribuir sempre este sim para tudo o que virá, sem nada poder negar ou nem resistir, nem mesmo criar o novo ou ter ou querer a ilusória liberdade dada pela astúcia do espírito diretor para apaziguar o ânimo da peça funcional que um dia foi o sujeito que pensava ser um agente autónomo de deliberação, em seus tempos felizes do passado.
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No limite, ao se perceber na mais completa absorção da individualidade que algum dia pensou ter, totalmente absorvido por um ente maior, externo, perceberá que deixou completamente de ser um sujeito – quando estará a dizer sim para tudo, até para a própria situação de objetificação. Saberá que passou a ser um mero objeto da estrutura, inerte, que não reconhece nada de si naquilo que se tornou um membro de um rebanho, um eficiente objeto funcional inserido e dirigido por uma estrutura dominante. Ou, ainda, nem se perceberá parte de nada, mas o próprio todo, quando a própria consciência se transforma, pela sua dissolução, no todo, sem se diferenciar de mais nada entre sua essência e a estrutura que se tornou. Tudo é possível, a cada perspetiva dada.
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Se algo assim lhe parece ser o verdadeiro inferno, não duvide de si. Mas é isto que é vendido como o melhor dos mundos por muitas das religiões e “filosofias” como o ápice da vida, que consiste na dissolução do eu, a partir de um ascetismo que afronta toda a intensidade de valor que só pode ser medido pela vontade de potência, que é a expressão corpórea do poder da própria vida, tal como Nietzsche buscou argumentar como todo ascetismo deveria ser indesejado, em sua genealogia da moral. Todos os simpatizantes do new age, do zen politicamente correto, querem buscar esta forma de transcendência sem saber o que significa exatamente.
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Esta integração do pós-sujeito ao todo é um objeto de desejo para a maioria, algo considerado cool, e não é incomum, ao menos para esta maioria desejante em não ter mais desejos, se submeter incondicionalmente às formas dominantes da ordem que existe, em nome de um imaginado “sucesso” transcendental. E é curiosamente esta mesma maioria corresponsável pela criação da estrutura para a qual se voluntariam viver em sacrifícios, e de sua manutenção, como veremos adiante. Criam seu próprio suplício, e o defende ferozmente enquanto se sacrificam por algo idealizado." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
Objetificação: Conteúdo Protegido.
- Obsceno-
"É o visceral, uma dimensão bem mais forte e superior ao obsceno. Enquanto o obsceno se manifesta na estrutura, e se dá não pela falta, mas sim pelo excesso de pudor existente, o visceral se manifesta nas proximidades do abismo, quando se passa a percebê-lo nos limites entre o possível e o caos, e assim ele é sentido pelas próprias vísceras, que se remexem a se comunicarem com a dimensão abissal.
No abismo, não há nem linguagem e, portanto, nem idiomas ou sequer expressões e palavras, apenas existem sentimentos viscerais onde a pura consciência passa a perceber o vazio completo sem nenhum poder para além da própria busca intencional, sem que haja nenhum feedback para si. É a mente que fala ou urra ao cair nas profundezas abissais, e nada mais há para além disso. Mas, “apenas” isto é muito mais do que a consciência consegue perceber ou conceber. O obsceno, todavia, contrariamente é impavidamente suportável." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VI)
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"...percebermos que o obsceno é mesmo o excesso de pudor, e não a falta dele. O obsceno é um verdadeiro anticlímax, muito antes de ser estimulante, ele é frustrante. Pelo tanto de pudor que pode existir em algo – e isto é seguir o que está estabelecido convencionalmente pelo esquema estrutural do possível. Daquele mesmo que consegue aprisionar o jogador apenas pela necessidade de este estar sempre a jogar, e que passa a ceder a tudo o que lhe é exigido. Em especial pelo marketing e pelas regras, percebemos que o excesso do pudor leva sempre ao obsceno, pois intensifica os contrastes que facilitam a perceção das brechas, das fissuras, que sempre estão a nos ofuscar, tanto mais quanto mais selvagens somos, capazes de percebermos melhor a obscenidade em tudo o que há." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XXIV)
- Oportunidades-
Enquanto opções deliberativas: "É justamente por existirem tais opções como oportunidades que são provocadas as discussões acerca da atitude deliberativa. E por isso, quando a própria consciência acusa que há sempre várias opções, assume também que exista uma relação estabelecida, tal como conceituada por Husserl, entre o sujeito e todas estas opções, com conteúdos mentais que cada sujeito intenciona a cada uma destas opções, conforme seus próprios critérios, juízos, valores e experiências. São construções mentais, em última análise.
Opções são, portanto, uma certa criação da própria razão humana a nível ontológico, a partir de seus próprios critérios. Eis o nó estabelecido. E, com estas opções, emerge a possibilidade de se escolher algumas delas, seja a deliberação ilusória ou não. São, afinal, oportunidades – que são as possibilidades que se mostram ao sujeito pelas próprias circunstâncias do agir, também possibilidades, e com as quais expressam os meios como este se relaciona com o mundo, em conteúdos e intencionalidades. Todas as opções fazem parte do sujeito, pois são seus ativos de oportunidades. Eliminá-las, renunciar a uma ou algumas delas passa a ser, assim, o mesmo que eliminar parte de si. E esta eliminação é transpor o que está nas dimensões oníricas das possibilidades para as dimensões das inconvenientes e desconfortáveis impossibilidades." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
- Oportunismo-
"O animal irracional, assim considerado pelos que se consideram racionais, é ilibado de suas responsabilidades, pois sua racionalidade, embora exista, não possui juízos refinados ou conhecimentos suficientes que o permitam distinguir para além do mínimo que possui – e por isso está totalmente conectado às oportunidades, apenas. Não diferencia nada para além ou aquém além delas. Se há a fome e a possibilidade se apresenta como oportunidade, para sorte dele, através de uma suculenta presa desprevenida, lá está o seu almoço. E é este o estilo da selva. E, assim, os animais que servem como alimentos para outros tratam de não estarem desprevenidos, mas sim totalmente alertas, para não serem uma oportunidade para os outros. Nem sempre conseguem, todavia, pois o oportunismo é mesmo poderoso.
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Mas, diferente dos considerados irracionais, o humano deveria ser o único responsável pelos atos que serão advindos das orientações às possibilidades, dadas suas fantasias que podem ficar descontroladas, bem como suas crenças, seus desejos, suas vontades e tudo o que lhe seja possível provocar gatilhos, ou não, para suas ações. E tais gatilhos não deveriam ser, meramente, oportunistas. E isto é crucial para percebermos, ou começarmos a perceber, a verdadeira liberdade de ação. O oportunismo é a exacerbação da própria animalidade, da obliteração das próprias capacidades racionais, a buscar apreender tudo o que lhe seja conveniente, sem considerar que isto poderá representar o prejuízo alheio, ao consumar seu oportunismo.
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Eis que todo oportunista é mais próximo de uma vida mais animalizada do que humana, a sustentar uma indiferença pela diferença, visto que estão apenas atentos às questões mais terrenas ou objetivas, acerca de sua própria situação, muitas das vezes de vulnerabilidade. Assim, os oportunistas passam a possuir um instinto mais apurado de sobrevivência, tanto pelos seus próprios conteúdos, quanto pelos meios em que estão inseridos. Perceber isto é perceber o valor que há na diferença percebida, pois, se é a diferença que leva ao movimento, é também o que leva ao fluxo de ações mais bem engendradas pelo crivo de valores e racionalidades empregadas. O oportunista se priva de tais instâncias, a prezar por sobreviver, e nada mais.
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Ainda assim, este instinto de sobrevivência do oportunista não lhe é suficiente para se proteger do resto mais racional, sem que outros possam manipulá-lo, dados seus próprios interesses previsíveis em busca das coisas mais evidentes. Um animal, faminto, expressa sempre sua fome. Assim como o que está com medo e acuado. E estes acabam por serem os mais facilmente capturados, eliminados ou escravizados, sem perceberem, pois, passam as oportunidades a lhes serem colocadas bem à frente, mas distantes o suficiente para que nunca consigam pegá-las, tal qual um coelho com uma cenoura pendurada à sua frente, a correr exaustivamente em vão atrás dela.
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É o domínio sobre as oportunidades que diferenciará o humano racional do animal irracional, mas não apenas isto. É o domínio das oportunidades que formará a verdadeira cadeia alimentar da selva humana, em que o topo, dos VIPs, representará o completo domínio de tais oportunidades ao ponto de serem estes que segurarão a haste com a cenoura, a fazerem todos correrem atrás dela, insanamente. Portanto, se não há o domínio completo por seus próprios instintos, perde-se parte de sua suposta humanidade racional, de sua capacidade volitiva. Afinal, qual o sentido prático para a racionalidade enquanto motor do progresso comum? É preciso estabelecer uma nova abordagem estrutural e conceitual entre razão e ação." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. X)
- Pânico-
O pânico é, dentre tantos fatores e abordagens distintas, decorrente do aprisionamento ao momento do estranhamento, que se intenso poderá levar rapidamente ao pânico e à fobia do agora (agorofobia). Não seria prudente restringir tais efeitos sempre a uma razão tão simplista, mas também não podemos dissociar que há um gatilho (ainda que não imediato, mas também com efeito retardado) possível nestes estranhamentos que ocorrem na matriz ideológica afetada pelas fissuras do real.
"O pânico emerge do vazio percebido, do nada que consome tanto por dentro como por fora. O Pânico vem da sensação de inconformidade de não poder ocupar o que está destinado a ocupar, pois passa a perceber que é uma arapuca.
E, assim, chegamos ao ponto exato que desejamos atingir na selva: o constante estranhamento do nosso racional humano, pois sempre somos pretensiosos acerca de nós próprios e nos levamos demasiadamente a sério, mas que por vezes decidimos não prosseguir adiante quando este estranhamento vira uma bela de uma hesitação, e contrariamos tudo o que esperam de nós quando este prosseguir adiante se transforma em um sentimento muito forte provocado por uma ameaça desconhecida.
... sobre o pânico
A hesitação é um estado de inferno pessoal, de insatisfação e perplexidade, tudo junto e misturado e que pode levar facilmente ao pânico. É essa hesitação que iremos dissecar, conceitualmente, a partir daqui, visto que não é assim tão raro ela aparecer, antes de se aceitar (ou não) a nova condição dada pela vitória conquistada, pois seguir adiante significa também aceder a um novo lugar na estrutura da vida, geralmente um lugar mais elevado, mais pretensiosamente ao topo.
Algumas das aparições destes estranhamentos se dão mesmo antes de quaisquer sinais de alegria pela vitória obtida. Não ocorre apenas no momento da vitória, embora aí seja mais fácil percebê-lo, pelo contraste emocional que passa a existir." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. II)
- Perspetivismo-
"Relatividade é um termo mais conhecido, mais usual, que antagoniza com a universalidade. Pois enquanto a universalidade se aplica a tudo o que há, a relatividade pressupõe que a aplicação seja apenas ao que se está a referir. Nem um, nem outro, portanto, são lá muito assertivos. O melhor termo para superar este problema criado pela linguagem, já apontado por Nietzsche, é o perspetivismo. Pois, nem é algo meramente relativo, vazio e individual, tampouco universal, pois contempla algum grau aspiracional de universalidade (portanto, sem a universalidade em si) e algum grau aspiracional de relatividade, também sem ser totalmente relativo.
O perspetivismo considera sempre um contexto, um conjunto de condições e situações que são relevantes para o conjunto considerado. E, como a universalidade é uma aspiração quase que comum, há um tanto desta aspiração coletiva, o que não quer dizer que a universalidade exista incondicionalmente, e de facto, mas não podemos negar que é um ideal que muitos pensadores buscam. Por isso, os sentidos dos termos que utilizarei serão sempre estes: uma universalidade convencionada, mas em perspetiva, ou uma relatividade conceitual, também em perspetiva, ou apenas a própria perspetiva." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
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"Mas, ainda assim, os teóricos devotos desprezam isto e presumem que o que seja desconhecido tenha também uma universalidade intrínseca. O grande sonho deles seria a própria imobilidade, tal e qual, em que nada mais se alterasse qualitativamente. Pois estariam sempre certos.
Por isso, o que é tomado como desenvolvimento filosófico já emerge com uma universalidade presumida, antes mesmo de se perceber o que resultará daí. É como um atributo outorgado de um destino que todo o pensamento precisará cumprir sobre seus frutos não dados ainda, embora prometidos. E, subversivamente, o conhecimento prévio das coisas, a priori, passa a ser requisito para se atribuir a universalidade a determinadas predicações comuns, e isso deveria se dar a posteriori. Eis o erro dos pensadores não dados à humildade da perspetiva e completamente rendidos à supremacia da universalidade. Portanto, a universalidade deveria ser uma mera construção epistemológica de um conceito que é estruturado ontologicamente, mas não é assim que ela tem se dado. Se o universal deveria atuar no sentido epistemológico lato, a universalidade deveria atuar no sentido ontológico stricto.
Mas, afinal, por qual razão ficaram (e ainda ficam) os filósofos a renegarem a humildade da perspetiva por tanto tempo?
Pois, na antiguidade, o objetivo do conhecimento estava praticamente todo voltado para os objetos. Conhecer algo significava, portanto, explorar a dimensão das coisas e de suas características, e demais abordagens relevantes, como suas qualidades, e se estas faziam parte ou não de cada objeto. Buscava-se chegar a algo fundamental, essencial, substancial, pelo que poderia explicar-se todo o resto, sem recorrer aos conceitos de criações feitas pelos deuses, ou por deus, ou qualquer outro modo em que havia a necessidade da fé para fundamentar o conhecimento.
Foi preciso transcender ao objeto para um “algo” metafísico, como uma qualidade exterior e superior ao objeto, mas igualmente intrínseco a todos os objetos, seria uma dimensão que abrigava sob seus domínios uma certa essência primordial, e todos os objetos que continham um pouco desta essência estariam ligados nesta dimensão e, se isso ocorre, a discussão sai da física e adentra ao que é considerada como a metafísica, e também à ontologia, na busca da essência primeira, da causa primeira, ou do ser.
Isto ainda perdura mais fortemente na mente cristã da civilização ocidental, visto que os conceitos das “qualidades boas” estão atrelados (e “amarrados”) a certas dimensões que ofereçam as possibilidades – as “boas” obsessões ou influências, como a própria “divina e boa influência” cristã.
E, as más qualidades nunca poderiam estar ligadas às influências tidas como desejadas e aceitas, pois, as tais más influências projetam apenas todas as impossibilidades reais que nunca seriam aceitas pelos seus influenciados – pois estes nunca projetariam, obviamente, uma impossibilidade real para seus futuros prováveis ou desejáveis. Pois, impossibilidades podem ser reais, mas nunca atuais, a partir de uma leitura kantiana. Neste caso, nem reais permitam que sejam." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIII)
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"Todas as obsessões dentro de uma perspetiva do bem serão necessariamente tidas como boas, em suas naturezas funcionais ou utilitaristas. É justamente como tudo sempre se dá em cada uma das perspetivas, ao encerrarem em si apenas o que seja o bem. Se até mesmo o diabo cita as escrituras quando lhe é conveniente, o devoto do espírito universalizador também apela para a perspetiva quando percebe lhe mais ser conveniente – e instantaneamente abandona a defesa da predicação universal que antes cultuava, por não lhe ser mais conveniente em sua perspetiva. Na verdade, continua na mesma situação, na mesma perspetiva, mas assume visões diferentes sobre uma mesma coisa, a focar mais em si ao invés de focar mais no espírito.
Por tais motivos as obsessões coletivas históricas mais temidas ou combatidas, como as nazistas, fascistas, extremistas, fundamentalistas ou as facções terroristas, por exemplo, ou outras do gênero scary, agregaram nelas pessoas que dizem que apenas projetam o “bem” (que é o “mal”, para nós, que estamos de fora) como possibilidades para elas. Pois o “mal” só é visto a partir de uma perspetiva externa e também por todos os que sejam os seus alvos, por representarem ameaças travestidas como impossibilidades ao bem que elas julgam possuir.
As convictas mentes que se consideram agentes do bem mal percebem o que estão a atacar, pois atacam mais o que representa a coletividade do que a individualidade – é mesmo um processo irracional e messiânico. Pois elas pensam que destruir indistintamente tudo o que seja contrário às suas ideias seja o mesmo que fazer o bem: e por isto podem atacar o mundo, as organizações, religiões, as Ciências, as nações ou até mesmo as pessoas que considerarem como representantes do mal.
Ações doentiamente pervertidas e subvertidas, mas tais predicados só são dados por quem observa externamente à perspetiva doentia, pois para quem está dentro dela, nada disso se dá, pois cada um dos membros comprometidos em combater o mal se percebe como investido do poder ilimitado do bem, e nada o poderá parar até que realize o que julga ser o se que espera dele." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
- Perversão-
"O que sempre ocorre de forma degenerativa é a perversão. E ela é a adoção intencional e desonesta de apenas uma das partes, seja da imanência ou da transcendência, da realidade ou da representação, e de acordo com a própria conveniência moral, que é quase sempre egoísta. Isso é corromper com o estabelecido, com a ordem na qual todos compartilham como a melhor possível, na perspetiva dada. Por isso, a subversão e a perversão serão antagônicas se dentro de uma mesma perspetiva. E as predicações serão sempre que as subversões, embora inusitadas, estarão dentro do esperado e a perversão, será algo condenável, pois irá contra a ordem vigente. Não se deve alocar a subversão na mesma esfera de atuação da perversão, desta forma.
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O pervertido é aquele que usa do dispositivo, ou melhor, do espírito para lhe fazer cumprir seus desejos. É o fundamentalista que se assume tomado pela influência de algo que a nada influencia, diretamente, mas apenas que está a refletir suas próprias e doentias emissões, e a colocá-las acima da ordem estabelecida, a negar o que os demais estão a emitir e a quererem para seus espaços comuns. Ele dá vida ao que quer, mas justifica-se pelo desejo do espírito. O pervertido é, assim, sempre um individualista extremo dotado de um egoísmo que o deixa sem a visão humana do próximo. E o que pode fazer a alguém o confundir com um psicopata – mas não é, necessariamente, um psicopata, pois pode possuir empatia, o que o psicopata não possui.
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Pervertidos percebem o outro sofrer, sentem a dor alheia, mas acreditam que o remédio que curará o sofrimento é a “verdade” que têm consigo, e por isso deseja impô-la ao outro. E tudo isso se dá pela tomada da transcendência como sua única fonte de verdade. Ou, no polo oposto, pela materialidade extrema, dada pela o que se supõe ser a máxima racionalidade, e apenas ela, sem considerar nenhum sentimento como verdadeiro. Há muitas formas de perversões, afinal, para além destas.
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Os verdadeiros pervertidos são essencialmente extremistas, e não são raros os vermos por aí. Alguns a militarem politicamente nas redes sociais, inclusive, a perverterem o que é a verdade compartilhada, do aceitável, do desejável como o bem. Pervertem o presente, o passado e o futuro. Produzem ameaças de utopias e de distopias. Estão por aí, publicamente, sem se preocuparem em disfarçar mais. Tais como são aqueles que chamamos de compartilhadores de fake news ou de teorias da conspiração. O fazem por perverterem propositalmente as condições éticas ou morais existentes.
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Diferentemente do que supostamente “disse” Jesus, os pervertidos sabem o que estão a fazer, e o fazem na mesma. Nem todos são “maus”, necessariamente, mas são eles mais facilmente os que poderão sê-lo, se acharem necessário, em relação aos demais. São uma legião, afinal. É o lobo que acredita ser uma ovelha." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XV)
- Poder Midiático-
"Afinal, pelo poder midiático, parece mesmo que estamos na era das réplicas, dos simulacros, em todos os sentidos. Pois, estes seres superiores, que estudaremos amiúde, se dizem ser (e a maioria acredita) os detentores das máximas possibilidades – mas que pouco ou nada do que possuem foi mesmo fruto de suas compras, pelos mesmo processos de se trabalhar, a partir de esforços e por competências especificas (a sério, a estudar ou a pegar no pesado, como a maioria) para ganharem seus dinheiros e, finalmente, comprarem eles mesmo este algo que estão a promover.
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Não é assim com eles, pois ganham algo de graça, ou até mesmo são pagos para que façam inveja nos outros que precisam pagar pelo que eles nada pagaram, nem pagariam, visto que não teriam dinheiro para fazê-lo, pois nada sabem fazer para além de fazerem inveja nos outros. E está tudo bem, e tudo isso é muito normal atualmente! As próprias mães desejam isto para os filhos. Muitas crianças recém-nascidas já possuem seus canais das redes sociais para suas futuras carreiras de influencers. Até mesmo os pets são influencers. Até mesmo estão a serem suscitados para cargos públicos, políticos e de representações diplomáticas. Aristóteles ficaria muito surpreso, se vivesse em nossos dias, a perceber que o modelo de seu motor imóvel é mesmo aplicável a tudo o que há, em relação ao humano desejante.
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Mas, subliminarmente, o que ocorre nestas projeções dos pais, em especial das mães, para seus filhos, já são indicadores dos valores projetados que são atribuídos aos influencers. Não é esperado que uma mãe deseje o mal para seus filhos, pelo contrário. E isso é axiomático. Ainda que uma ou outra mãe, por exemplo, possa ser exceção, a esmagadora maioria das mães, uma instituição ainda quase imaculada em nossa sociedade, não apenas defende com determinação seus filhos como também o acompanha até seus últimos instantes de vida, a desejar sempre o melhor e a fazer tudo o que lhe seja possível para o sucesso das suas eternas crianças. Factos!
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Como poderia que, desta forma, uma mãe desejasse que seus filhos fossem influencers? Pois há, nesta “profissão” ou “condição” uma atribuição de valores do que se considera ser o bem. E isto é muito claro, pois não só apenas os seguidores percebem isso, mas até as próprias mães que incentivam os filhos a seguirem este caminho. Os influencers sempre dão a impressão de terem um alto desempenho, bem em linha com a sociedade do cansaço de Byung-Chul Han, que leva o indivíduo a desejar mesmo isto: um alto desempenho.
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Mas, obviamente, não é porque haja o desejo de se fazer o bem para os filhos que realmente será o bem fruto de todas as ações das mães. Muitas destas mães também compram refrigerantes de cola para os filhos, oferecem frituras e coisas pouco saudáveis para eles, com a intenção de fazerem o bem para eles, mas sem atingir o objetivo proposto ao propiciarem inconscientemente uma dieta pobre em nutrientes e rica em riscos à saúde. Mas, há outras que podem ser nutricionistas, e fornecerem o melhor da culinária infantil. A questão verdadeira não é essa, mas sim sobre a dissonância entre o desejo e a realização, ou mesmo sobre o conceito exato do que seja mesmo o bem em si, na falida universalidade. Mas também sobre o poder.
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No Brasil, em relação ao poder midiático, há a discussão da exposição de muitas crianças à erotização precoce, muitas com menos de dez anos a serem expostas pelos pais ou com autorização destes, em vídeos musicais nas redes sociais a dançarem e/ou cantarem, em letras que mostram a vertente sexual de certos gêneros musicais, amplificados pelos figurinos sensuais.
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E isto se dá não por uma mente pervertida dos pais, ou uma indiferença, mas sim por que veem, ali, possibilidades para os filhos e para eles, uma forma de ultrapassarem a condição em que estão, de saírem das favelas para os melhores bairros, se elevarem na escala social. Pois, há um lamentável preço que a criança acabará por pagar, pela exposição a qual é submetida, que pode ser discutível, pois há quem argumente que não seja tão pernicioso assim, e que discordo, mas estes pais estão apenas a responder aos sinais prioritários da ordem estabelecida, a fazerem exatamente o que todos buscam nas possibilidades que se mostram.
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O problema está nas teias dos valores emaranhados deles, nas hierarquias subvertidas, que o desprovido de critérios passa apenas a enxergar o que emana mais atratividade: e isso é muito claro, atualmente, que aparecer na média é o melhor e o mais rápido caminho para o sucesso, seja lá o que signifique ter de fazer para “aparecer”. E é esta inconsciência de tal poder midiático que leva a tais absurdos, que nos deixa à beira das distopias das máximas ignorâncias.
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Para um artista ser contratado para um papel, por exemplo, consideram sua exposição na média, seu poder midiático de influência. Um jogador de futebol, idem, pois são contratados não apenas pelos seus talentos desportivos, mas também pela atratividade que seus números poderão captar de patrocinadores e compradores de produtos. Ter espaço na média é algo que garante o sucesso atual, motivo que muitos famosos passaram a se expor intimamente em troca dos valores de assinaturas pagas pelos que querem ver mais de suas perfeições corporais, de lugares que poucos conhecem de suas intimidades mais inacessíveis. O bem passou a ser mediático. Até mesmo a caridade, em essência discreta ao ponto de ser recomendado que uma mão não veja a outra que dá, passou a ser mediática, glamourosa e performática." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VIII)
Poder Midiático: Conteúdo Protegido.
- Positividade Tóxica-
A positividade tóxica é um excesso de positividade que restringe a existência a uma parte diminuta e idealizada do todo, na qual as inconsistências rejeitadas não deixam de existir e, assim, causam seus estragos aos que não a querem perceber, e acaba-se tudo em algo muito mal, invariavelmente, com a realidade a atropelar as tentativas de um mundo ideal e harmonizado que apenas existe nos romances mais adocicados.
"...Tudo direcionado para a positividade, que alguns mais esclarecidos já acrescentaram um sobrenome, e virou a «positividade tóxica», que felizmente começa a ser combatida, mas que infelizmente pela forma como se combate a toxicidade a fortalecerá ainda mais.
Os positivistas crônicos nunca veriam por esta perspetiva, pois questionariam: “Mas é para se falar de coisas negativas? Como se poderia vender algo assim?”. E estão certos, pois as pessoas não compram coisas negativas, ou ruins, mas apenas promessas. E é justamente isto que se está a colocar em causa, sobre a exacerbação do genérico-positivo. Sempre há que se caminhar em frente? Sempre, para todo o sempre? Sempre é preciso apenas fazer algo? Sempre assim? Pois há coisas, em certas situações, que serão muito más se assim forem feitas, incondicionalmente. Mas, isto evidencia que as mensagens positivas ecoam nas mentes dos que possuem as mesmas diretrizes delas, visto que é um processo progressivo de programação para a adesão estrutural, para o comprometimento incondicional de tudo: consumir, reverenciar, obedecer, procriar, produzir, submeter-se, etc." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. III)
- Possibilidades-
"Não seria equivocado afirmar que alguém que deseja o que o outro tenha ou seja, na verdade, esteve antes a identificar em si mesmo uma diferença negativa em relação ao outro. E assim, partiu em direção às possibilidades que o fariam ou farão suprimir esta diferença, para então apreendê-la e neutralizar a inferioridade que percebeu em si, seja verdadeira ou não. Obviamente que isto é hierarquizado em uma escala de valores, desejos, crenças e muitos outros critérios que darão um timing para as prioridades, que acabam por serem buscadas sempre que possível, sempre que as oportunidades se fizerem presentes e viáveis.
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Mas a questão é que, mesmo quando apreendidas estas possibilidades, a saciedade não virá daí, pois ou surgirão a hesitação e a resistência em aceitar a “vitória”, ou se verificarão novas diferenças negativas, em outros aspetos não percebidos antes, em relação ao outro e, assim, todo o processo é retomado. E isto pode chegar a níveis obsessivos para alguns, sempre com a frustração crescente de nunca poder se saciar verdadeiramente, por mais que conquistem coisas para si. Muitos fãs, em relação às celebridades que possuem como referências, assumem uma crescente obsessão em ter e reproduzir tudo o que estas fazem, incondicionalmente, como se isto fosse o objetivo maior para suas próprias vidas. Acontece o mesmo com alguns torcedores desportivos, seus times e jogadores. E, por isso, passam a seguir as tais ditas celebridades diuturnamente e viram “seguidores” a níveis de zombies.
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Há, ainda, uma outra situação possível, mas nem sempre alcançável, em que a ultrapassagem do outro foi total (ou ao menos imaginada ter sido assim) e, finalmente, passará a um estado tão superior (aqui, certamente imaginado), que se considerará um destes super-humanos. Mas não se saciará, de todo, pois toda suposta criatura deseja mesmo é ser como o suposto criador, e assim buscará uma diferença positiva cada vez maior, pois não quererá ser alcançado pelos outros que estão “atrás”.
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A diferença positiva consistirá em uma série de atos que levem a acumular consigo ainda mais possibilidades, em que ficará mais distante dos que estejam a considerar “inferiores”, como numa corrida em que deseja eliminar a chance de ser alcançado pelos retardatários, até mesmo, por estes “serem” seguidores. E isto levará os outros a desejaram-no, que emergirá como uma nova referência de possibilidades, uma nova estrela a brilhar no firmamento, e o ciclo se perpetuará, entre os papéis de seguidores e de seguidos." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IX)
- Propósito-
"...Se há um estado intencional, para além do imanente, há a transcendência. E só assim. E há, portanto, propósito.
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Também há, na imanência, a apreensão de todos os desejos realizados. Saciados na materialidade, a configurarem as sensações apreendidas, as memórias, a identidade e a própria história de vida.
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Nem toda imanência é oriunda de uma transcendência, pois pode ser dada ou tomada, quando estabelecida de acordo com as regras vigentes, naturais ou não, até mesmo no que seja a propriedade do “eu material”, que é a propriedade inalienável do próprio corpo humano, seja este corpo vivo ou morto. Nasce-se num corpo, que lhe foi “dado” e, mesmo que lhe seja tomado, pela morte, ainda será imanente ao sujeito jurídico, e ninguém poderá tê-lo para si sem autorização legal expressa, até que se desintegre, seja desintegrado ou mesmo conservado artificialmente, tudo se dará conforme os ditames prévios do falecido ou, na inexistência destes, de acordo com as leis vigentes.
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As leis, as regras, os costumes são imanentes e se referem à imanência do sujeito: à sua corporalidade, prioritariamente. Mas, enquanto se vive, busca-se ultrapassar a própria imanência corpórea, e às regras, e a tudo o mais, tal qual aquele que detém uma imagem de um santo em busca de um milagre, quando um milagre é uma ultrapassagem das limitações das regras naturais ou lógicas, das probabilidades e da normalidade – da mesma forma a ultrapassagem da limitação existencial do corpo ocorre intencionalmente, pois sempre se quer transcender à própria morte ou à própria finitude, conforme cada perspetiva. Se há a ameaça percebida da morte, ou do encontro com a finitude, isso leva a um movimento para encontrar possibilidades para superar estas ameaças que serão irremediavelmente imanentes, cedo ou tarde. E assim também ocorre para todas as outras ameaças.
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O transcendente, portanto, é também, ou talvez principalmente, uma criação mental humana voltada para sua própria superação da finitude e da morte. É um seu propósito, talvez o mais profundo. E, por isso, ou a consciência projeta a individualidade para a imortalidade (da oportunidade para uma possibilidade), mais improvável de ocorrer, ou busca trazer a imortalidade para a individualidade (da possibilidade para uma oportunidade), o mais comum. Mas sempre a primeira ultrapassagem passa a ser a superação dos próprios limites conhecidos, que são dados pela própria biologia do corpo.
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Não há inocência na transcendência, e nem despropósito. Há intencionalidade, muito propósito e uma carga elevada de conteúdo mental acerca dela. Ela existe, não como coisa, necessariamente, mas como intenção. Por isso, tem-se consciência dela, mas não necessariamente o conhecimento, tal como Brentano nos conceituou." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. X)
Propósito: Conteúdo Protegido.
- Quantitativos x Qualitativos-
"Falta-nos novas questões correlatas aos problemas dos quantitativos x qualitativos, eis algumas.
Como buscar o conhecimento a partir de um todo que não existe para além de uma possibilidade de universalidade, realmente?
Qual é este verdadeiro transcendente universal que ainda insistem em perseguir?
Eis a questão bilionária: conhecer este verdadeiro transcendente universal é o desejo de todos os devotos que defendem a universalidade.
Quantitativos x Qualitativos
Se, quantitativamente, digamos, cinquenta pessoas ingressem em um mesmo clube (seja o de sexo livre e selvagem ou o de leitura filosófica medieval) e, portanto, isto significa que todas aceitam as regras vigentes no clube. Destas cinquenta pessoas, formaram-se, naturalmente, pelos relacionamentos criados, oito grupos, com seis a sete pessoas, na média, em cada um destes, conforme seus interesses e afinidades. E, dentro destes grupos, diferentes posições são formadas, algumas mais ativas, outras mais passivas, e tudo fluiu para que cada um possa obter o que sempre quis ali: atingirem as suas próprias objetividade e subjetividade. E isto será o próprio Universo de cada individualidade, não fixo, nem limitado e nem imutável, mas sim uma dimensão qualitativa, dinâmica e excitante. Obviamente, também com quantidades, ou intensidades.
Considerar o Universo como um todo a se expandir nos dá a impressão de uma certa ordem, de um padrão de movimento que a Física Teórica ou a Astronomia buscam tanto descobrir, e com muitos avanços, mas também há o “vazio” em muitos espaços, que é uma forma de perceber que os corpos se organizam em galáxias e cada uma delas é distinta das outras, em vários sistemas que estão dentro destas e assim, sucessivamente. Olhamos para o céu, em uma noite inspiradora, e tendemos a pensar na infinidade de estrelas que existem como se fossem todas próximas e conectadas a um único sistema diretor de tudo o que há.
Quantitativos x Qualitativos
Mas, nenhuma é exatamente igual à outra, e muitas já nem existem mais. A infinidade é pensada, apenas, na quantidade, mas nunca na qualidade e assim fomos sempre ensinados e educados. Aprendemos a pensar condicionadamente de forma a construir conceitualmente uma universalmente que não é óbvia à priori, e tudo isso sem considerar a infinidade das qualidades, sem perceber mesmo a diferença como o elemento-chave de nossa perspetiva existencial.
O que isto que dizer na prática? Percebamos esta outra questão: «refugiados são indesejados?». Quem escuta uma pergunta desta deveria responder com outra pergunta, necessariamente: «são indesejados como, em quantidade ou em qualidade?». Mas é uma pergunta que não é feita, pois ninguém as conhece. E assume que seja sempre apenas em quantidade, e nunca em qualidade. Assim, intuitivamente e automaticamente sempre o ouvinte arguido perceberá a frase como «refugiados em grandes números são indesejados?». E o excesso é geralmente um problema, em quase tudo, e por isso sempre considerará que refugiados serão problemáticos para o seu “universo” em questão. E sabemos o resultado deste ciclo.
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Nada, aliás, como temos visto, é inocente. Sempre há um certo propósito e um incerto despropósito em todas as questões. Por isso, pelo lado prático, pensar universalmente tem seus efeitos nocivos em tantos outros aspetos. Os mais idealistas devotos dirão: «mas são coisas diferentes que não podem estar no mesmo balaio». Se são coisas diferentes? Sim, com certeza, pois tudo é diferente. E este é exatamente o ponto que se está a buscar esclarecer! E não há mesmo um balaio com tudo dentro. São muitos os balaios, e precisamos percebê-los assim, sempre em perspetiva, um a um – e isto dá trabalho e incertezas, por isso criam-se resistências para tal.
Passar de um quantitativo para um qualitativo foi um passo dado por Hegel[1], e muito acertado. Mas ele expressou filosoficamente sua obsessão oculta, e bem obscena, de legitimar conceitualmente o todo, que é uma necessidade implícita (e suficiente) para todos que aspiram ser idealistas, e assim logo buscou fazer o caminho inverso, de passar da qualidade para a quantidade. Do movimento e da heterogeneidade para a paralisia e a homogeneidade, segundo as conceituações bergsonianas[2].
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Nunca dá certo, mas é sempre um esforço que nunca para de ser feito pelos devotos buscadores da universalidade. Talvez com a impressão de que seja possível atingir uma universalidade por aí, pela busca do movimento dentro do que não se move, do que é morto, como são os números. Mas, o fluxo de ida e de volta, entre qualidade e quantidade, se consistentemente realizado, chega a um ponto mediano, condensado, clusterizado, e que pode dar uma impressão de ser isto a universalidade. Muitos gostam deste estado transitório e se acham realizados, se dão por satisfeitos, ainda que por alguns instantes antes de as contradições e inconsistências ressurgirem mais fortes." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. X)
Notas - Quantitativos x Qualitativos
[1] «Grandeza extensiva e intensiva são, portanto, uma e a mesma determinidade do quantum; elas são diferentes apenas pelo fato de que uma tem o valor numérico como dentro de si, e a outra tem o mesmo, o valor numérico, como fora dela. A grandeza extensiva passa para a grandeza intensiva, porque seu múltiplo desaba em e para si na unidade, fora da qual ocorre o múltiplo… Assim, a grandeza intensiva é também essencialmente grandeza extensiva. Com essa identidade entra o algo qualitativo.». Em HEGEL, G. W. F. Ciência da lógica. A Doutrina do Ser. Petrópolis: Vozes, 2016, pg. 235
[2] Bergson percebe a nossa forma platônica de pensarmos sobre a paralisação do movimento para compreendermos as coisas: «em certo sentido, todos nascemos platônicos», mas o faz de forma crítica, a perceber que já passou da hora de não sermos assim, de abraçarmos o movimento como algo que precisa ser compreendido filosoficamente, ao criticar Kant «toda a crítica da razão pura repousa também sobre o postulado de que nosso entendimento é incapaz de qualquer outra coisa a não ser platonizar, isto é, modelar toda experiência possível em moldes preexistentes». ROSSETTI, Regina. Movimento e Totalidade em Bergson – A Essência Imanente da Realidade Movente. Coleção Ensaios de Cultura. São Paulo, SP – EDUSP, 2004, pg. 55 e 56.
Quantitativos x Qualitativos: Conteúdo Protegido.
- Real-
"Mas nesta visão ocorrida pelas brechas existentes da estrutura nada há o real, para além de um deserto, de uma dimensão ainda inabitada e inexplorada, e isto é algo desesperador e profundamente inquietante. Pois não é um deserto produzido pela interação entre todos os que compõem, constroem e sustentam a estrutura, tal como um deserto aparentemente hostil que sempre possui algum oásis algures.
O deserto do real é mesmo vazio, inabitado e realmente hostil, sem nenhum oásis. Mas, o mais impactante é que é um deserto apenas daquele que o vislumbra e logo, certamente, concluirá de forma angustiante que por existir uma dimensão como esta, mesmo que inacessível, sempre esteve a viver em uma ilusão propositada para deixá-lo distante da realidade – e o sujeito se questiona a si mesmo, e passa a existir, passa a algo mais, ou a algo menos – se transforma. E então já terá passado do ponto de não-retorno e sua vida nunca mais voltará a ser apenas uma ilusão, por mais que a deseje para si. Pois, as ilusões não são, necessariamente, experiências ruins, pelo contrário, são sedutoras e reconfortantes, muitas das vezes, enquanto estão a durar. A desilusão é que acaba por ser um grande problema, sempre."
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"O existente vai para além do cenário construído na estrutura, dos constituintes que operam funcionalmente a deixar a todos aderentes. Mas, pelas capacidades individuais, ou mesmo pelo acaso, há alguns poucos que conseguem perceber as fissuras, as brechas em que se pode permear dos limitados cenários para a realidade que o contém. São habilidades que podem ser desenvolvidas, mas em verdade poucos as desejam de facto. Embora muitos se relacionem com estas visões de forma visceral. A nutrirem tanto desejo quanto asco em tais miradas desérticas e angustiantes de si, nos vais e vens que a vida proporciona com seus movimentos.
A agonia do contato com o real ocorre em três etapas, todas de impossibilidades. E por serem impossibilidades é que não são admitidas existirem, e logo são tratadas de serem abafadas pelos que são mais sensíveis às dores existenciais – a esmagadora maioria. Por isso, são abundantes as formas de anestesias oferecidas obscenamente a todos. E daí percebemos que este contacto com o real não é algo tão raro assim, até pelo imenso mercado que há de anestesias, e que todos passam a ser consumidores, mais cedo ou mais tarde, mais ou menos intensamente, mas sempre lá estarão, a se anestesiarem contra o que traz angústia e incerteza, impossibilidade e desertificação.
A estrutura também é vulnerável, sob esta ótica, visto ser uma criação na qual os criadores podem todos estar vulneráveis ao ponto de deixar a estrutura ruir, quando passam a dar mais valor ao deserto do real do que à “Disneylândia” antes imaginada."
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"A realidade, portanto, não é – e a realidade é o presente, o devir, as instâncias da eternidade do momento. Enquanto ela não é, tudo o mais é – e tudo o mais é o passado que, por ser, está sempre presente. Nesta aparente contradição que nos faz perceber que o presente é, que somos, mas não em função do que esteja a ocorrer, apenas, mas sim do que tudo o que ocorreu, e que está a influenciar o presente, que é a duração, o conceito combatido e combalido de Bergson acerca da existência de uma multiplicidade qualitativa que estamos inseridos, sem darmos conta." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
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"A ideologia surgiu com a proposta de compreensão do mundo tal como ele “não” é. E nem do que ele aparenta ser. Pois busca-se o que está por trás das aparências. Busca-se perceber a subversão da ordem estabelecida, pela ação do marketing, dos representantes, das leis, das normas ou das demais regras. Enfim, buscam-se todas as questões relevantes que podem estar a ocultar ou distorcer a realidade. Mas por qual razão os ideólogos fundamentas a existência de tais distorções ou ocultamentos? Que algo é este que causa tal efeito, ou que é efeito de alguma causa?
Há a certeza sobre este algo, pois percebe-se este algo pela desordem momentânea, pelo caos inesperado, pelo descontrole furtivo e outras instabilidade, como na hesitação. Ainda que não se compreenda bem o que seja este o algo, lá está, a existir e a perturbar toda a ordem estabelecida. E também todo o fluxo de pensamentos. O algo é chamado de o real – e incomodamente lá está ele, indecifrável, a ser bloqueado pela ideologia. Ele existe, e este é o problema para todos nós, que tratamos de resolver com a ideologia.
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Mas, por que queremos ocultar a realidade? Pois o real é indesejado, caótico e impenetrável. O real é insuportável para qualquer um, pois é indecifrável e contraditoriamente nos parece um nada que tudo contém. E o incauto pensador pode perguntar: mas, se o real é assim, e é a ideologia que nos livra deste mal, então ela não seria algo necessariamente bom para nós? E eis uma pergunta capciosa, carregada de ideologia, e que correríamos o risco de cair no centro do dualismo moral com esta questão. A questão não é sobre ser bom ou não, mas sim sobre o conhecimento acerca da realidade, e da “irrealidade”." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XVII)
- Regras-
"As regras viraram produtos, como tudo o que há. Pois tudo o que existe, ou não, acabará por virar também produto comercializável. Talvez elas sejam até mesmo os primeiros de todos os produtos. Visto que não precisam mais do que as palavras para as produzirem, com alguns poucos escritos. E que dão a materialidade necessária para alguém vender um conceito a alguém que compre este mesmo conceito. A linguagem é ela mesma uma forma de escambo, se assim vista, e isto será mais bem explorado nos estudos da linguística.
A estrutura, que surgiu como uma vantagem competitiva de sobrevivência, pelo agrupamento dos sujeitos em famílias, tribos e comunidades, para que as individualidades fossem mais resistentes às intempéries da vida, às ameaças, desde sempre se fundamentou na transcendência das suas possibilidades de perpetuação e ultrapassagem das limitações. Precisou de regras, inexoravelmente, que possibilitaram levá-la das “más” ameaças às “boas” possibilidades.
E, dentro de qualquer coletividade, sempre há quem seja mais perspicaz ou sensível e, oportunamente, surgiu o primeiro médium do espírito considerado superior, seja pelo interesse pessoal de ser percebido como diferenciado socialmente ou por que a própria estrutura definiu uma posição e alguém a ocupou, ou por ambas as coisas. E este médium passou a “traduzir” as vontades e necessidades do espírito obsessor coletivo em formas de regras para que todos fizessem o que ele esperava e, assim, ele retribuiria a deixar a todos (supostamente) mais protegidos, e mais próximos das possibilidades." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XII)
- Relacionamentos-
"Podemos perceber, ao menos pelo aspeto das forças dos desejos, que os relacionamentos se estabelecem pelos entrecruzamentos dos desejos do desejante pelo desejável; e pelo desejável, quando assume igualmente um desejo pelo desejante e, assim, é ele próprio um desejante. Os exemplos dos seguidores com os influencers, como já citado, mostram claramente estas relações. Este ciclo fechado em que ambos desejam e são desejados são a tônica dos relacionamentos que, ao atingir a dimensão erótico-sexual configura-se o que pode ser percebido como a paixão, o delírio entre desejantes que se realizam a serem desejados, mutuamente, até que uma das partes mude seu padrão de desejos e, neste caso, para este, a paixão deixa de existir.
Mas, o que é desejado, nos relacionamentos, é tanto o “ser” quanto o “ter”. Pois primeiro emerge a dimensão do “ser” e, caso seja insuficiente, passa a ser suficiente a dimensão do “ter”. O “ser” é espacial e possui uma duração temporal maior, é mais profundo e intimista, ao conectar as subjetividades. O “ter” é temporal e possui uma limitada duração espacial, é mais superficial e ligado às sensações, ao conectar as objetividades.
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Desta forma, as relações entre pessoas podem se dar por diferentes formas, como por exemplo alguém que deseja ser desejado pelo que é, enquanto o outro deseje ser desejado pelo que tem. Não há conflitos, e algumas pessoas confundem e discriminam muitas das relações, como por exemplo, entre uma pessoa mais velha (a representar a falta de atrativos físicos) e outra bem mais nova (o contrário).
A pessoa mais velha pode possuir “sucesso” (deter as possibilidades): prestígio, poder e, talvez, alguns milhões de Euros guardados em sua conta bancária. Essa pessoa, “é” e “tem”, para muitas outras que a conhece. Mas, também, pode estar na velhice, a enfrentar a decrepitude do corpo que todos tem ou terão, e que ao chegar lá enfrentarão, pelo desgaste natural das articulações, falta de colágeno ou pela implacável ação da gravidade sobre as partes mais suscetíveis, que a tudo faz cair, quando solto no espaço, ou tudo isso ao mesmo tempo.
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E, a outra pessoa dessa relação, por seu jovem e estar no auge da vida, com uma pele exuberante e todos os atributos que um lindo corpo é suposto possuir. O que une estas pessoas em um relacionamento? As fantasias, sempre elas, atreladas às possibilidades, pois a pessoa idosa deseja ser desejado pelo que é, e também pelo que tem, pois sabe exatamente o que está a oferecer e o que está a buscar. Enquanto a pessoa mais jovem, poderá até mesmo desejar o que a outra tem, mas talvez se interesse pelo que também seja, por algum tipo de ligação maternal ou paternal.
Não há verdades absolutas, nem universais, embora os relacionamentos objetivos, com base no que as pessoas possuam, tendem a se desgastarem mais rapidamente, por motivos compreensíveis. E, depois, de garantido acesso às possibilidades, pode haver algum grau de farsa se o relacionamento continuar, ao menos para uma das partes. Por isso, os mais providos financeiramente celebram seus contratos pré-nupciais, se estiverem de plena posse de suas capacidades racionais, pois compreendem exatamente com o que estão a lidar. E não é uma crítica o que faço aqui, mas apenas uma análise fria sobre o que são os relacionamentos, nesta perspetiva e a grosso modo, sob a ótica das fantasias e das possibilidades."
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"Por isso é importante perceber que as experiências vividas nos diversos relacionamentos, compartilhadas, produzem excessivos conteúdos, para além das formas estabelecidas, e que farão com que os relacionamentos tomem rumos próprios e imprevisíveis. Não se pode definir o que virá, de cada relacionamento, independentemente de como ele foi iniciado. E é isso que dá o verdadeiro sabor da vida.
Assim, relacionamentos formados por “interesse” poderá se transformar em relacionamentos duradouros, com sentimentos de amor, tais quais os filmes românticos de Hollywood que todos cultuam ou, inversamente, relacionamentos iniciados por imensas afinidades e interesses sentimentais poderão se transformarem em objetivos e meramente funcionais, ou por vezes em surpreendentes tragédias. A vida na estrutura é sempre dinâmica e, por isso, o que une em relacionamento se transforma e, até mesmo, se reproduz, e é isso que torna os relacionamentos tão complexos e imprevisíveis." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IX)
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"Mas, se toda relação é uma estrutura, então, analisemos umas das mais simples destas relações diretas (como o exemplo de um casal) em que duas pessoas se afinizam por interesses nas possibilidades, nas fantasias, a oscilarem entre o “ser” e o “ter”, entre o dar e o receber, na troca que estabelecem como base de suas relações. O que ocorre é que, estabelecida a relação, haverá um acúmulo e sobreposição de conteúdos diversos, oriundos da convivência, das experiências, das trocas, das expectativas, surpresas, atitudes e muito mais.
A estrutura estabelece-se, historicamente, a tomar uma dimensão como se passasse a própria relação ser um ente autônomo em relação a cada um que compõe o que chamamos ser o casal. Haverá o “um”, o “outro”, e a “relação”. E, tudo se mesclará nesta estrutura, ou relacionamento, para muito além do que foi o estabelecido inicialmente.
Eis que um casamento por mero “interesse”, ou que seja arranjado, como em muitas culturas, sem que haja sentimentos esperados para justificar o matrimônio, que seja por uma ou ambas as partes, pode resultar em algo completamente diferente, como o amor incondicional e verdadeiro que poderá surgir, em que o centro do interesse de cada um passe de si para o outro e, por fim, passe para o próprio relacionamento, que terá melhor consistência e uma maior durabilidade, prováveis de serem assim. Tudo pode acontecer pela imprevisibilidade do desenrolar das relações." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XII)
- Relativismo-
"(Ver também Perspetivismo, correlacionado com o Relativismo) ...Relatividade é um termo mais conhecido, mais usual, que antagoniza com a universalidade. Pois enquanto a universalidade se aplica a tudo o que há, a relatividade pressupõe que a aplicação seja apenas ao que se está a referir. Nem um, nem outro, portanto, são lá muito assertivos. O melhor termo para superar este problema criado pela linguagem, já apontado por Nietzsche, é o perspetivismo. Pois, nem é algo meramente relativo, vazio e individual, tampouco universal, pois contempla algum grau aspiracional de universalidade (portanto, sem a universalidade em si) e algum grau aspiracional de relatividade, também sem ser totalmente relativo.
O perspetivismo considera sempre um contexto, um conjunto de condições e situações que são relevantes para o conjunto considerado. E, como a universalidade é uma aspiração quase que comum, há um tanto desta aspiração coletiva, o que não quer dizer que a universalidade exista incondicionalmente, e de facto, mas não podemos negar que é um ideal que muitos pensadores buscam. Por isso, os sentidos dos termos que utilizarei serão sempre estes: uma universalidade convencionada, mas em perspetiva, ou uma relatividade conceitual, também em perspetiva, ou apenas a própria perspetiva." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
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- Representantes-
"E a maioria destes ditos representantes logo afirma que estas mensagens precisam ser difundidas, obviamente, mas apenas através deles – mensageiros ou representantes – que sempre acabam por se posicionarem humanamente, e não divinamente, pelas suas fantasias ou vaidades ou interesses materiais, até mesmo a buscarem atingir um status mais importante do que as próprias mensagens do espírito, com títulos, hierarquias e indumentárias que os tornam centrais ao ponto de até virarem pops, pois passam a serem considerados autoridades igualmente sagradas por seus próprios decretos de serem os únicos representantes legais do divino.
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E assim, finalmente, o humano se faz sagrado, não pelas suas qualidades reais, mas pelas crenças alheias artificialmente semeadas e cultivadas. Tudo muito previsível e humano, afinal. Eles dizem não serem cegos, pois possuem a capacidade divina da visão quase onisciente. Imputam medo nos devotos, ao adverti-los que falsos representantes são cegos a guiarem cegos, ainda com um capacitismo suposto ter sido ditado ou inspirado por deus e atualmente combatido, mas bem representativo da intenção de atração da máxima e exclusiva atuação dos representantes pelo domínio dos devotos pelos gatilhos do medo e da culpa.
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Além dos sentimentos ameaçadores “negativos”, há com eles as possibilidades dos “positivos”, que afirmam que ao pedir seja lá o que for, se obterá este seja lá o que for. Mas os petitórios são válidos se feitos exclusivamente por meio deles próprios – os representantes, como gestores logísticos dos pedidos e do que pode ou não pode ser obtido.
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Para o que não se consegue, foi por determinação divina para ser assim, e restará apenas a resignação momentânea, pois “lá na frente” (na hora certa) receberá a compensação pretendida e até mais do que isso - promessas; mas, se há uma entrega rápida de algo impossível de ocorrer, há aí uma etapa cumprida pelo representante para sua beatificação ou santificação, um degrau formalmente instituído e bem acima dos meros mortais. Tudo é um jogo, afinal, até mesmo para os representantes, a galgarem posições na gamificação religiosa, ainda que com raras exceções, tudo se dá desta forma.
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As regras supostamente se originam deste espírito superior, mas são aplicadas exclusivamente pela interpretação linguística humana, feita por um outro humano que se assume como legislador, ajuizador e executor. Mas, o próprio espírito superior e perfeito, que deveria estar hierarquicamente posto acima das regras, poderá até mesmo ser traído pelas más interpretações e formalizações que os sujeitos subalternos poderão cometer, bem ou mal-intencionados, mas muito provavelmente pelos equívocos que representam as más formas de ordenação imposta para atenderem a certos interesses particulares, por exemplo.
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As regras até podem ser desvirtuadas, mas nunca derrotarão completamente o espírito, visto que é este que sempre deterá consigo todas as possibilidades e que acabará por se transformar sempre em algo atual, a evoluir juntamente com os seus devotos, a atualizar-se constantemente e, assim, a atrair para si o eterno protagonismo, mesmo que este seja obscuro. Por isso, o trabalho dos representantes é mesmo secundário, pois precisam acompanhar as “transformações”, pois atrasá-las não é mesmo eficiente, pois estão a lutar contra uma força bem maior do que eles.
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Podem fazê-lo, como já o fizeram ao mandarem muitos para as fogueiras inquisitoriais, mas não para sempre, pois as possibilidades mudam com os devotos e transformam e elevam ainda mais o espírito diretor e “superior”. Um dia, a casa acaba por cair para os representantes e novas formas – ou reformas – acabam por acontecer." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XII)
- Subversão-
"Há um estranho sentido ordenador na voz do GPS que você logo estará a obedecer incondicionalmente: “siga em frente, depois vire à primeira direita…”. É isso que percebemos dele, que parece ser onisciente, onipresente e onipotente. Houve quem olhasse para cima, logo quando esta tecnologia foi lançada, para perceber quem era a lhe seguir e como estava a lhe dizer exatamente o que fazer, na hora “certa” que apareciam as ruas “certas”, pois parecia realmente que estava a ser seguido por alguém a lhe acompanhar e a vigiar, e alguém “de cima” e com uma visão superior de tudo o que há, que conhece todos os caminhos e por isso algo muito mais próximo do transcendental. Era como se fosse a voz divina a lhe guiar nos passos certeiros da vida. Melhor, impossível, literalmente.
A subversão então ocorre quando a representação passa a imperar sobre a realidade. A representação, mesmo sendo oriunda da realidade, não é tão rica, nem qualitativamente, nem quantitativamente. E, ainda que seja, não se situa no devir e, por isso, é sempre diferenciada. Isto faz, afinal, parte do processo de causação imanente e dá o merecido valor às representações que, afinal, possibilitam mais possibilidades e também mais oportunidades.
Não podemos considerar a subversão como algo imediatamente prejudicial, portanto, mas sim algo funcional que flexibiliza a relação com o tempo e com o espaço e, portanto, que leva às possibilidades e às oportunidades da própria transcendência, a saltar da realidade vivida no devir para a projetada no futuro ou a imortalizada no passado, para além da imanência que, afinal, é bem mais limitante do que a própria transcendência." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XV)
- Subversões Estruturais-
"No primeiro ano de seu governo, um Vladimir Putin (1952 – ) ainda inseguro e titubeante concedeu uma entrevista[1] que reclamava justamente disto, do prazer de ser um desconhecido e poder fazer tudo o que lhe calhasse fazer, inclusive tomar uma cerveja anonimamente em um bar qualquer. São possibilidades que deixaram de existir, para ele, ainda que tolas, se assim percebermos o que veio depois de tais privações - são parte do que chamamos de subversões estruturais. Mas ele percebia que eram opções que não mais tinha, e nem teria, pois tinha consciência delas já naquela altura. Em contrapartida, se passasse a considerá-las existentes, teriam cada uma delas uma infinidade de ameaças atreladas. A “conta” não fecha, e sempre será a ameaça que emergirá mais forte de tais restrições.
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Outras possibilidades, contudo, estão a se materializar atualmente, pelas suas mãos, talvez bem na linha hegeliana, ou não, a ser ele próprio a manifestação da antítese contemporânea, ao menos para as nações ocidentais presentes na OTAN, pelo caminho que ele trilhou para ocupar a posição em que foi possível colocar a Rússia onde está, atualmente, nos jogos geopolíticos e nos conflitos armados: guerra e poder. A história, no futuro, dirá com exatidão acerca dos factos, mas sempre conforme quem estiver a contá-la, todavia.
E é também por esta possibilidade de se ter a primazia para contar a história que desejar que é pertinente somente aos “vencedores”, que faz com que as nações se movimentem, afinal, sejam para conquistarem novos mercados, sejam para tomarem-nos à força. Tudo, ao final, cinicamente, a despeito de Žižek, se reduz em sexo, dinheiro e poder. Ou tudo junto, em uma pretensão de criar regras comportamentais geopolíticas na orgia dos mercados globais, através do embate do neoliberalismo ainda vigente e um novo capitalismo que está a emergir como arma letal e é uma grande aposta das nações orientais: o capitalismo de estado, em que as organizações políticas perceberam bem que o poder é maior para os que tem o capital, e não apenas as ogivas - e isto em si já são subversões estruturais.
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O capitalismo de estado está para o neoliberalismo assim como as milícias estão para o tráfico de drogas nas favelas cariocas. São igualmente organizações criminosas, mas que pensam que não são consideradas assim, e que assumem o controle do poder financeiro e logístico de um país ou de uma favela. Operam da mesma maneira, corruptamente. Mas, inegavelmente, consolidam o poder e fecham as vulnerabilidades de forma tão eficaz que até assusta pensar contra eles, intimamente, visto que todos os seus inimigos são rapidamente eliminados. Tudo o que há na dança geopolítica das nações, ao final, para além das possibilidades, são obviamente pelos mercados. E não é ingênuo pensar assim.
A riqueza é uma das mais básicas materializações das possibilidades, pois é o meio de se atingir o que se deseja geopoliticamente, uma forma de relações internacionais que se desenvolve entre as mais ricas nações, como uma dança em que os mais desejosos pares se formam, enquanto outros se desafiam por algo escasso. Quando materializada a riqueza, obtém-se o ingresso para a dança geopolítica e então passa-se ao desejo de se obter e de se consolidar no poder, a maior das materializações. São muitas ou infinitas as materializações buscadas como podemos perceber, atualmente, pelos passos que grandes nações como a China esteve e está a fazer, principalmente quando muitas outras estão a se consolidarem ou mesmo manterem-se no topo." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
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"Na vida cotidiana, como exemplo ilustrativo, há uma teoria defendida, ao menos por mim, de que os melhores supermercados são aqueles que apenas oferecem uma única marca para cada produto, e com nenhuma ou, no máximo duas variações de opções de tamanho e embalagens, que é muito melhor do que aqueles hipermercados que oferecem dezenas de marcas e cada uma delas com dezenas de variações para os mesmos produtos. É de endoidecer qualquer um.
Cá em Portugal, há o supermercado Mercadona, de uma rede espanhola muito popular por lá, que em tese reproduz uma experiência tal qual na velha Berlim Oriental, se esta tivesse dado certo e nada faltasse nas prateleiras, lá pelo auge da Guerra Fria. No Mercadona há, em relação a cada item da lista de compra, duas opções apenas para se deliberar: ou se compra, ou não se compra. Fazer compras lá é como no topo da estrutura, em que tudo é muito fácil.
Mas, se está no mercado a procurar um produto que já está na lista, então já decidiu que precisa dele, e o comprará, e então será sempre um lindo sim para tudo o que estiver na sua lista de compra, se possuir uma. Sem dor, nem desgastes, e quase terapêutico: ao ver o produto, basta colocá-lo na cesta e depois pagar por ele. Apenas isso, e nada mais.
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Ao se adentrar em um destes outros excessivos megamercados, já ao estilo de Berlim Ocidental, capitalista até o último fio de cabelo neoliberal, em que as opções são incontáveis, e pretender comprar algo tão banal quanto um molho de tomate, demoram-se minutos de longa e dolorosa ponderação, e que poderá ser muito pior caso não se conheça todas as marcas ou variações do produto que se precisa comprar. Fatiga-se por algo que não deveria ocupar mais do que poucos segundos. Apenas tomates amassados, condimentados e cozidos até um ponto consistente e cremoso, metidos numa embalagem esterilizada e etiquetada, e nada mais do que isso! É só disso que alguém precisa ao procurar molho de tomate!
Mas, por que haver tanta dificuldade apenas para uma simples necessidade coletora em uma gôndola urbana? Faz parecer que ainda somos caçadores, a caçarmos pelos corredores e gôndolas os produtos mais performáticos, como se estivessem em movimento atrás deles, que estão a se esconderem de nós. Tudo seria mais rápido se fôssemos lá apenas para colhê-los. O capitalismo subverteu as mais profundas noções evolutivas da natureza e fez surgir as principais das subversões estruturais." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VII)
Notas: subversões estruturais
[1] As Testemunhas de Putin, 2018, de Vitaly Mansky. Documentário em que o realizador revela as verdadeiras causas e consequências da "Operação Sucessor", o esquema político que levou Vladimir Putin ao poder. Um documento de extrema atualidade e urgência, segundo a crítica. Acedido em 20/06/2022 no link https://www.imdb.com/title/tt8647924/ e visto em https://www.filmin.pt/filme/as-testemunhas-de-putin.
- Subversões Ideológicas-
Sobre as origens das subversões ideológicas: "As convivências sociais possuem valor pois passam a significar situações nas quais surgem as oportunidades, que são as possibilidades reveladas, tornadas acessíveis. Afinal, e são as oportunidades igualmente entes transcendentes a se permitem mais facilmente passar para entidades imanentes.
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E as oportunidades são, sensivelmente, mais numerosas nas esferas mais elevadas da estrutura, e mais escassas nas bases, para as massas, ao contrário das possibilidades. Não que não existam muitas possibilidades nas bases, mas são comuns, vulgares e, portanto, não valorizadas ou mesmo nem reconhecidas. Por isso, que todos são orientados a desejarem, ao mesmo tempo ascender na estrutura, pelo maior número de oportunidades que aparentam existir no topo. Mas logo hesitarão, pelas sensações que terão em relação às restrições de possibilidades menores. Ficarão entre a cruz e a espada, entre as oportunidades e as possibilidades, perdidos entre ato e potência, entre o mundano e o celestial, e isto é entre o imanente e o transcendente. Já surgem os requisitos para as subversões ideológicas,
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Será uma luta íntima pautada sobre uma questão de valoração de valores ambíguos. Alguns afirmam que os pequenos prazeres da vida são os melhores. Estes pequenos prazeres, tão propalados pela cultura massiva, que romantizam a “pobreza”, se assim considerados, são partes destas oportunidades vulgares. Um prazer de sentar em uma cafeteria e tomar um expresso é visto como um momento de prazer acessível a todos. É uma oportunidade, mas não chega a ser uma possibilidade. Pois, para ser uma possibilidade, a pessoa deveria ter a oportunidade de fazer isto em qualquer lugar do mundo, talvez em Paris, e não apenas no seu bairro. Assim, as oportunidades são mesmo restritas a um tempo e a um espaço, e não são como as possibilidades, puramente transcendentes. Essa é a verdadeira diferença que é crucial para percebermos as dinâmicas humanas.
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Há uma intenção oculta em valorizar o que é comum, de fazer as oportunidades se parecerem com possibilidades, pois assim se acomodam melhor as massas onde elas estão, e traz algum conforto a quem está desconfortável e insatisfeito. E não é raro ver cenas de romantização dos pequenos prazeres, em diversos filmes, ou obras literárias, em que os mais ricos se comprazem com as coisas mais acessíveis e vulgares, que os mais pobres não valorizam e estes, ao perceberem, se resignam um pouco com o que possuem. Atribuem aos pobres as oportunidades que estes sempre possuíram, mas travestidas de transcendências, como possibilidades. Não há, nunca, atos despretensiosos nas formas de cultura ou produção artística. Há que se perceber.
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E projetam que supostamente os mais pobres deveriam se sentir mais “felizes” por sempre terem tido isso, enquanto os ricos não possuem esta possibilidade. E é assim, por crenças projetadas, que se acomodarão melhor em suas posições desprivilegiadas, a confundirem oportunidades com possibilidades. Nada é inocente e despropositado, e é sempre bom relembrar isto, pois os desejos individuais e coletivos precisam ser geridos, e assim é feito, pela transvaloração da transcendência." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. X)
subversões ideológicas: Conteúdo Protegido.
- Supremo Bem-
"Por isso, e para isso, o espírito obsessor se justifica existir. E se faz presente como supremo bem, para amainar as dores, aplacar os sofrimentos e dar fim aos rangeres de dentes. Serve para tirar o machado posto à raiz da bela e frondosa árvore do conhecimento universal. E serve, realmente, para ser uma resposta ao impossível, como veremos adiante. Pois tudo nele, e com ele, sempre será possível, e estará a liderar uma cruzada contra os heréticos adversários da universalidade do todo-poderoso real.
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O bem sempre é o alvo das atenções. O supremo bem é a cereja do bolo que o espírito obsessor promete, em todas as instâncias sociais que conhecemos. Não é raro escutarmos que o “sangue” de Jesus tem poder, que deus tudo pode e para Ele nada é impossível, que até mesmo o filósofo e economista britânico Adam Smith (1723 – 1790) “anteviu”, dois e meio séculos atrás, que mesmo as ações capitalistas (agora “evoluídas” para as neoliberais) são manipuladas para irem em direção a um certo “bem”, ao dizer que «o capitalista geralmente não tem intenção de promover o interesse público, nem sabe o quanto o promove… ele é guiado por uma mão invisível a promover um fim que não fazia parte de sua intenção», o que já é muito comovente, mas pode ficar ainda mais.
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Pois há comoções ainda maiores e ostensivas, até viscerais, pois mesmo recentemente, nas afirmações políticas do slogan «Brasil acima de tudo e Deus acima de todos», podemos perceber que tudo ainda é o mesmo do mesmo, nos sentimentos religiosos, patrióticos, econômicos etc., sempre direcionados ao bem idealizado como universal com algum tipo de agente transcendente envolvido, mesmo que outorgado contra o bom senso, há ali algo, invariavelmente.
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Portanto, a direção assumida como nosso destino individual e coletivo é sempre para o tal “supremo bem”, seja lá o que for isso considerado, mas que já se presume ser universal e, portanto, bom. Um loop infinito do nada que volta ao nada, mas que é funcional. Isto ocorre dentre todas e tantas aplicações, sinceras ou canalhas, bem ou mal-intencionadas, nas diversas estruturas. É uma constante. E assim, dentro das obsessões coletivas, são apenas as boas possibilidades que são meramente aceitáveis e consideradas automaticamente universais." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIII)
- Tempo-
O tempo, afinal, não é o que temos, mas sim o que somos. O que temos são somente os instantes. E instantes não são o tempo, dado que o tempo é mobilidade e o instante é a imobilidade, uma imagem única de uma eternidade.
Leandro Ortolan"O tempo, afinal, não é o que temos, mas sim o que somos. O que temos são somente os instantes. E instantes não são o tempo, dado que o tempo é mobilidade e o instante é a imobilidade, uma imagem única de uma eternidade. O filósofo e teólogo Agostinho de Hipona – ainda quando Hipona[1] fazia parte do Império Romano – considerou que «as coisas que não estão no próprio lugar agitam-se, mas, quando o encontram, ordenam-se e repousam»[2] e isto é exatamente a diferença em que ele atribuía ao movimento e ao repouso. O movimento como o modo de ser, a essência divina, o caos. O repouso como modo de existir, o reencontro da parte com o todo, que muitos creditam a deus, à harmonia e à ordem. Esta é a ideia de que o repouso e a quietude são sempre mais desejáveis e nobres.
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Os cientistas, assim, precisam separar apenas o que lhes é possível, e em luta contra o tempo, antes que as mudanças sejam significativas, consigam atingir alguma condição em que o modo de ser coincida com o modo de existir. É isso que, todos, aliás, fazem com suas vidas, ao buscarem suas próprias realizações enquanto seres humanos e mortais, a correr contra o tempo, enquanto a vida está a ocorrer. Eis a razão de a morte ser evitada, indesejada e buscada ser superada. Tudo é uma corrida contra o tempo, uma tentativa de ter o que não se pode ter: o tempo. E de ser o que não se pode ser: os instantes.
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Buscar a universalidade é algo que todo o pensador honesto precisa redefinir para si, e para todos, o mais breve possível. Precisa ser corajoso para perceber e declarar, afirmativamente – claramente – o que está mesmo a pensar acerca dela, e tudo isto afirmado em ato tal expressivo, tais quais os melhores coaches-picolés que fazem suas declarações públicas das condições de sobre-humanos que julgam ser, ao se submeterem aos banhos congelantes que tomam de forma completamente impávida, a endeusarem-se." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. X)
[1] A atual cidade argelina de Anabba.
[2] Agostinho, Santo, 354-430. Confissões. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os pensadores) – Cap. XIII – seção 9.
- Transcendência-
"A transcendência é a manifestação intencional que emerge da busca pelas possibilidades. É uma resultante, uma força derivada de uma assunção das necessidades por algo ou alguém que esteja além da imanência do sujeito. As necessidades são relativas à ultrapassagem de uma condição dada, limitada e resistente que separa o sujeito de seu objetivo, alterando a relação entre estes e dotando o sujeito com capacidades transcendentais, que é o mesmo que dizer que o sujeito se desfaz intencionalmente, a deixar de ser imanente para passar a ser projetado para além de si, pelas suas próprias capacidades e intencionalidades rumo às possibilidades necessárias para ele.
E as possibilidades são a assunção consciente da falta, relevantes ou não, oriundas dos objetivos ou subjetivos de desejos não apreendidos. A transcendência, portanto, é um estado intencional com base na crença da diferença e no desejo da supressão desta, que leva à ação e à busca do poder. A transcendência, portanto, é o motor do progresso, e da vida como a conhecemos." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. X)
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"Portanto, tudo o que há para fora do indivíduo, seja pela falta de conteúdos mentais, pela incompletude dos conteúdos, ou pela incompreensão ou desconhecimento de tudo o que não consegue conhecer, do que pode haver, são transcendentes, ao menos como estaremos a conceituar, doravante.
Por isso, todas as transcendências dadas a partir do que se conhece acerca de si são também, necessariamente, possibilidades, pois possuem, intrinsecamente, a assunção das diferenças entre o observador e o observado, entre si e o outro, entre o que se é imanentemente e o que se pode ser transcendentemente. A transcendência é a possibilidade de se ampliar ou expandir a própria imanência. Pois, afinal, ninguém quer transcender e deixar de ser imanente. Ninguém quer morrer para conhecer o deus ou o messias em que acredita. Não mesmo. E a transcendência assume um importante papel motriz nas ações humanas, orientadas então em busca dela.
Aristóteles, na sua hercúlea tentativa para achar a causa primeira de todas as coisas, considerou que esta fosse um motor imóvel, eterno e que existe em puro ato, sem nenhuma potência pois está todo realizado, em perfeição, completamente autossuficiente. Assim, é este motor imóvel que indiretamente, e passivamente, move, como causa primeira, tudo o mais que há, para aquém dele, e que por estar aquém não está em puro ato e por isso tem em si alguma potência de ser.
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Se há a potência, não há a completude, há uma deficiência com a qual a natureza trabalha para anular. A mente humana percebe isto e assumiu este esforço de ser ela mesma um motor imóvel. E a potência se dirigirá ao ato a partir do trabalho agregado a ela própria, como elemento transformador. Percebemos isso no exemplo aristotélico do artesão, que é alguém que possibilita a passagem da potência ao ato, da madeira que tem potência para uma mesa que está em ato. E é capaz de fazê-lo por algum propósito prévio que se refere a si próprio, que foi tornar-se artesão, e que para isso precisou ir de alguém sem habilidade para alguém com habilidades, sair de um potencial para um estado em ato.
Muitos pensam que agir é algo isolado, mas na verdade o agir é uma busca para se atingir um estado, um ato, sempre. E assim, todo trabalho é uma ação, e toda ação é uma transformação. E tudo o mais, tudo o que carrega consigo meios para agregar à capacidade humana – capaz de serem gatilhos para se agir – passa a se mover em direção a este puro estado de pleno ato, com a intenção de eliminar suas faltas, ou melhor, consumir todas as suas potencialidades, até exauri-las por completo. Se há potência, ainda há a diferença, e ainda haverá a falta." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VIII)
- Transumanismo-
"Da mesma forma, as impossibilidades reais que são declaradas assim, viram possibilidades, mas não viram “universais” que sejam “possíveis” aos sujeitos. Mas, pode ser um grande incentivo agregador, como por exemplo, para que a obsessão capitalista crie também um produto, ainda mais exclusivo para esta impossibilidade real dos outros, mas possível para quem aceite estar em sua obsessão neoliberal. E uma coisa curiosa se dá, pois já foi criada uma existência para a onsciência, pois há o conteúdo para ela através também do transumanismo. E isso passa a representar uma dimensão ontológica aberta para que seja ocupada, na estrutura capitalista, por quem possa pagar por ela. Duvida disso? Estamos a ir longe demais?
Isto está a ocorrer, ainda que não em uma dimensão totalmente humana, pelos limites que a ciência facilmente perceberá tal impossibilidade. A possibilidade, assim, só acontecerá na dimensão pós-humana, em que as máquinas poderão, no futuro, serem conectadas mentalmente aos humanos. E, com isso, dar-lhes uma estatura potencial de oniscientes, pela capacidade de ter acesso a todos os dados que se queira aceder, em tempo real.
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Aceder ao passado e prever e projetar precisamente o futuro. Estranho, e muito improvável, mas não impossível, pois na mente de todos, isso é mesmo desejável, e por isso vira mesmo uma desejada possibilidade, até mesmo contra os argumentos razoáveis mais básicos, como o velho e esquecido bom senso. O que pensou ao ver o Google Glass, que são óculos que prometem dar informações interativas entre o mundo digital e a realidade vista. Em quanto tempo isto pode se transformar em uma lente de contato ou mesmo em um chip a ser implantado no cérebro?
Percebe-se assim que, ao deparar com um conceito de impossibilidade real, mas desejável, o objeto passa a ser um meio para um fim. O homem, enquanto objeto, precisa passar da categoria de humano para pós-humano. E isso leva a uma incoerência conceitual, pois humano e pós-humano são categorias distintas. E, assim, cria-se uma “coisa” para dar sentido a um “conceito”.
Muda-se a arquitetura humana para dar sentido ao possível, e isto é mais alto grau de obsessão a agir em estados potentíssimos e puríssimos, pois traz para o indivíduo a responsabilidade para ser aquilo que a obsessão determina que seja, para ocupar o que lhe seja determinado como espaço público, a vencer a hostilidade do território, pois, a estrutura precisa ser transformada na cidade, na forma urbana de uma vida concentrada e harmônica, queira ou não o indivíduo. A onisciência humana já existe como espaço vazio, nas dimensões das possibilidades, em que o pós-humano, em estado de desenvolvimento, está a caminho dele, a ser construído dia após dia.
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Mas, talvez você creia que isto de transumanismo seja exagerado ou ficcional. Não para o empresário sul-africano Elon Reeve Musk, atualmente o homem mais rico do planeta, ao menos enquanto estas palavras estão a serem escritas, e que não apenas lançou o homem ao espaço, com a empresa SpaceX, a promover viagens turísticas com gravidade zero, ou que tenha revolucionado a indústria automobilística com a empresa Tesla e seus veículos elétricos e autônomos, mas que também lançou a empresa Neuralink, que disse servir para «desenvolver interfaces cérebro–computador (ICs) implantáveis… a ser o objetivo final o aperfeiçoamento humano».
Se fosse outro qualquer, duvidaríamos, mas é o Elon Musk, o mais rico do planeta e que já realizou tantas coisas impensáveis de serem possíveis, portanto, é o humano que mais aparenta possuir oportunidades, atualmente. Todos os recursos estão voltados, sem limites, para estas novas tecnologias de suas empresas. A questão não é mais se viveremos assim ou não, mas sim quando isso se dará." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)
Transumanismo: Conteúdo Protegido.
- Universalidade-
Sobre a demolição do conceito da universalidade: "Os mesmos sujeitos do clube de sexo, do nosso exemplo anterior, se estivessem alocados em outras condições, por exemplo, supostamente em um grupo de leitura e estudos das obras do filósofo italiano Tomás de Aquino (1225 – 1274), se comportariam de forma bem distinta, pelo anticlímax teológico-filosófico, e o conjunto resultaria em algo totalmente diferente da libidinagem anterior, pelas condições transcendentes que passariam a ser, quando formado o grupo, totalmente imanentes. Isso se justifica tais quais as características alotrópicas dos elementos, quando um mesmo elemento, como o carbono, pode resultar tanto no grafite em dadas condições, quanto em outras, como quando o carbono resulta em diamante se arranjado de formas e em condições diferenciadas de temperatura e pressão.
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Para uns, o grafite é mais valioso, pois a partir dele poderá escrever (produzir uma imanência) suas histórias ou poemas, enquanto para outros, será o diamante, pois poderão se exibir melhor e, assim, tornarem-se mais atraentes (produzir uma transcendência) em suas fantasias. Uma mesma coisa com quantidades iguais de elementos (imanentes) mas em condições diferenciadas de energia, tempo e espaço torna-se completamente diferente como representação universal – e sem a universalidade tão sonhada a se manifestar como evidência de que exista algo comum e imutável em tudo o que há.
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Como é possível alguém querer ajuizar algo ao estar de fora da experiência com este algo? Chegamos ao ponto fulcral das crises antigas e das atuais.
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É justamente isto que os devotos da universalidade, fundamentalistas, puristas ou crentes desejam fazer. E isto é restringir a compreensão, e não ampliar, ao buscar uma universalidade, e não a restringi-la. A denúncia é que todos os processos de radicalização pejorativa da diferenciação, como a misoginia, a xenofobia, a transfobia, a homofobia, etc. tem por base, sempre, uma base universal de valores, de padrões e tudo o mais. Nunca dá certo e a diferença nunca será aceita.
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O mais impressionante é que os militantes do movimento politicamente-correto buscam os mesmos caminhos que os levaram a tais condições inadequadas, e tudo vira uma guerra, um combate fundamentalista em que cada um propõe instanciar a sua própria perspetiva como universalidade. E isso é péssimo, de forma geral, ainda que algo nisto tudo seja lícito e necessário de se brigar. Mas sempre teremos que a compreensão será sempre proporcional à perspetiva considerada. Por isso que a busca do todo deve ser percebida como infrutífera ou, no máximo, apenas mais um jogo dentre tantos que existem, nem sempre com bons propósitos, afinal." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. X)
... a universalidade
"Desde que há a discussão sobre o surgimento (ou criação) do Universo, todos os pensadores procuraram estabelecer quase que insanamente sua origem, mas também suas qualidades (ditas universais), em que estas sejam facilmente derivadas das possibilidades providas pelo próprio Universo. Para os pensadores, na contramão conceitual, são tais qualidades que definiriam e classificariam as possibilidades, e seria através delas que as explicações se tornariam viáveis de existirem, acerca das origens do próprio universo, sem se darem conta que estão em um loop conceitual viciado e sem fim.
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A própria ideia da criação, por exemplo, serve para tudo o que há no Universo e para ele próprio – conteúdo, forma e contendor. Mas se há o criado, haverá de se chegar a uma oposição final que o criou, que é o incriado, e, portanto, igualmente universal, mas que não é uma parte, mas sim o todo… e assim tudo se confunde e se contraria, e passa a ocorrer um ciclo frenético de tapar buracos conceituais que nunca chega a alguma saciedade conceitual com uma mínima estabilidade, quiçá bom senso. Mas, ainda assim, ainda hoje se busca a tal universalidade como uma última e desesperada esperança epistemológica.
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Se tal feito for possível de ocorrer, em qualquer lugar e tempo haveria de existir o que fosse estável, comum e sempre presente, tornando a tudo previsível e conhecido. São os predicados, afinal, que qualificam algo a que se referem. O que estará em causa é se estes predicados, estas tais procuradas qualidades, existiriam independentemente do sujeito ao qual se referem. Sejamos logo honestos, ao perceber que garantir que os predicados existam sempre, e dar vida ao que seja o universal, é reconhecidamente uma proposta que aquece a alma e tira do cenário quase todas as incertezas que habitam nossas mentes desde sempre, além de possibilitar maior celeridade aos processos de se conhecer tudo o que há. Bem isso.
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E pensar assim, significou que as tentativas que buscariam explicar como tais qualidades universais poderiam existir (para além das crenças e do conforto intelectual) ficaram em segundo plano, ou em plano nenhum, com praticamente todas as investigações teleológicas acerca da universalidade completamente desprezadas ao longo dos tempos, ainda que com um ou outro período de alguma movimentação teleológica coadjuvante, mas nunca no protagonismo. Assumimos assim, ainda que veladamente, a universalidade como possível, válida e real, ou seja, passamos a dotar a universalidade essencialmente possibilidade de um conceito imanente de universalidade, dada como oportunidade, como um meio de se atingir o conhecimento. Ela deixou de ser uma resultante e passou a ser um ingrediente." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIII)
- Universo-
"Mas, primeiro, o que é o Universo? E por qual razão este não poderia ter qualidades extensivas a tudo o que se encerra nele, ou nele próprio? Basicamente por ser o Universo um apanhado de coisas “aleatórias” em constante transformação, um conjunto de matéria e energia, que o físico alemão Albert Einstein (1879 – 1955) nos disse que são teoricamente a mesma coisa, mas não percetivamente, pois o Universo é um conjunto instável e heterogêneo, imprevisível e, quiçá, talvez também com mau feitio, se atribuíssemos também a “ele” uma personalidade humanizada, como muitos tentam fazer.
Pois há quem o faça, misticamente, ao atribuir ao Universo uma inteligência ativa e interventora nas vidas humanas particulares, a considerá-lo interativo com desejos e necessidades particulares. Olhar para o firmamento, para as estrelas, possui um significa introspetivo que reafirma tal possibilidade interativa, em algum nível. A mente humana, que é capaz de ver rostos santos em torradas velhas, nunca se privaria de sacralizar o “todo” existente, se isto lhe for conveniente. O prefixo “uni” é o que confunde muito, já à partida, a partir de uma unidade que é meramente artificial, fundada na linguagem, ou nominalista.
O Universo, enfim, está definido pelos dicionários como o “conjunto de todas as realidades criadas” ou o “conjunto de quanto existe”, ou “o mundo” ou ainda “o todo; inteiro”. Tais definições passam a assumir, necessariamente, uma instância cosmológica, astronômica e delineada por dimensões espaciotemporais do Universo como conjunto de tudo o que há, do que conhecemos e também do que podemos conceber existir. Assim, em algum momento da História da suposta Humanidade, surgiu uma pergunta considerada necessária para o saber acerca do Universo, ainda não respondida de todo, que é perceber a origem deste “tudo o que há”, a matriz, o que (ou quem, para outros) está a produzir primordialmente este conjunto cósmico.
Logo apareceram as observações dos fenômenos meteorológicos, dos ciclos do dia e da noite, das estações do ano, etc.; depois vieram as teorias mitológicas; depois as considerações filosóficas pré-socráticas, acerca dos elementos, um a um – a água eleita por Tales de Mileto, a terra eleita por Xenófanes, o fogo eleito por Heráclito e o ar eleito por Anaxímenes, não necessariamente nesta ordem ou separadamente, mas apenas para a destacar a relevância da busca pela origem, na aposta inicial em um ou mais dos elementos primordiais; e logo veio Platão com o éter, com o seu Demiurgo e as ideias suprassensíveis; Aristóteles com o motor imóvel que fazia a tudo se mover em sua direção e sua hipótese de “incriação”, da eternidade do todo e sempre, também etérica; mas tudo se desenvolveu ainda mais e depois veio o Uno de Plotino que se excedia a si mesmo a ampliar as dimensões existentes; e, em sequência de relevância, com a teoria do Uno romantizada com pitadas de terror, surgiu a Teoria da Criação Divina, em que deus criou o Universo, ou os deuses, ou a dualidade, ou alguma outra origem metafísica ou sagrada.
E tudo sempre girou na busca de um elemento que dá origem a tudo, que sempre foi uma preocupação real e relevante, que não se encerrou, pois recentemente, em 2013, foi descoberto o Bóson de Higgs, uma partícula subatômica que foi logo chamada de “partícula de deus”, tal o desejo de se fazer imanente o que seja transcendente.
Podemos perceber o comportamento coletivo que levou à justa comoção mais recente, ao vermos as imagens de altíssima qualidade feitas pelo novo telescópio espacial James Webb, a tentar fotografar ainda os resquícios luminosos do que imaginamos ter sido o Big Bang, e trazer uma explicação ou registo sobre a origem primeira de tudo, e talvez apareça um dedo de deus a estoirar algo, tal como um milho que se transforma em pipoca quando aquecido. Isto nos fascina, nos prende a atenção, nos comove e nos leva a sempre desejar mais e mais do que nos pode levar às origens de tudo. E é assim que somos, desde sempre, em relação às origens supostas, pois é muito mais fácil perceber sobre a “origem” do que sobre o “destino”, se é que existem tais conceitos causais ou instanciais válidos em relação à existência deste “todo” que insistimos em legitimar, enquanto humanos."
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"Mas, e se especulássemos um pouco mais sobre o que ainda não se conhece?
Como vimos, uma definição aceitável para o Universo, como conjunto, é a concentração nele de todos os espaços e todos os tempos, para além da matéria ou energia que existe inserido neste conjunto. Há a matéria e a energia, na versão “convencional”, mas há também a energia e a matéria escura, em que estas últimas são consideradas teoricamente como a maior parte do Universo suposto ser “conhecido”, embora sejam estas duas componentes completamente desconhecidas.
O conceito “escuro”, ou dark, em inglês, aqui se refere justamente à incapacidade de se ver e, portanto, de se conhecer sensivelmente ou por meios de aparelhos específicos. Até hoje não foi impossível apreender na atualidade nem a matéria nem a energia escura, embora tenham sido ambas funcionalmente teorizadas e tidas como reais, ao menos no campo da Física Teórica, que nem sempre acaba por provar muitas de suas teorizações. A maior parte do Universo, literalmente, é conhecida apenas pela teoria, pela nobre e necessária elucubração científica sem a atualidade kantiana.
Há tanta coisa que há. E não há tanta coisa que não há. Mas também passa a haver coisas que nunca param de ser descobertas com o avanço das investigações científicas. O facto é que temos, na realidade, uma vaga noção do que existe no Universo, e uma suspeita certeza de que haverá como descobrir mais, no amanhã, pois o amanhã é ele próprio uma outra suspeita oriunda da certeza indutiva. E a isso chamamos de todo, como sujeito, e o eternizamos e universalizamos, predicativamente, antes mesmo que possa a vir ocorrer.
O Universo é somente aquilo que conhecemos e que supomos existir, com o acréscimo de nossas crenças e desejos, vontades e intenções, tudo representado metafisicamente em nossa mente por algo transcendente que parece ordenar o caos, e nada mais para além disso. Somos, em última instância, torcedores do time do amanhã e devotos das nossas origens desconhecidas." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIII)
- Uno-
Há um artigo escrito sobre o Uno, especificamente. Clique aqui para saber mais.
«Plotino ensinou que existe um ser supremo, totalmente transcendente o “Uno”; além de todas as categorias do Ser e Não-ser. Seu Uno “não pode ser qualquer coisa existente”, nem é simplesmente a soma de todas as coisas [comparado a doutrina dos estoicos da descrença na não-existência material], mas “é antes de tudo existente”. Plotino identificou o Uno com o conceito de ‘Bom’ e o princípio da “Beleza”. O Uno engloba o pensador e o objeto. Até mesmo a inteligência autocontemplante (a noesis do nous) deve conter dualidade. “Depois de ter chegado no ‘Bem’, não adicione nenhum pensamento a mais: em qualquer adição, e em proporção daquela adição, você adiciona uma deficiência.“. Plotino nega a senciência, consciência de si-ou qualquer outra ação (ergon) para o Uno».
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Quanto mais distante do Uno, assim, menos energia divina existiria e, portanto, era isso o mal, e também a degeneração, a corrupção total e a decrepitude do bem. Pelo conceito, em si, nada demais, apenas um sentimento que ficava no homem de que não poderia, portanto, se afastar deste Uno, para que não se extinguisse ou se corrompesse pela ausência do bem. E este zoneamento entre o bem e o mal, tais quais distintas polaridades que se formam pelo distanciamento e desconexão, tal como foi dito por Plotino e seus contemporâneos, ficou apenas nas intenções conceituais de justificar o bem e o mal, e nada mais resultaria daí não fosse uma oportunidade de se explorar e capitalizar estas zonas abandonadas da existência, a valorizar e vender um lugar junto ao “bem” e a evitar que se seja tomado pelo “mal”.
Poderá saber mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/Plotino#O_Uno, de onde foi retirado este trecho, em 17/09/2022. Há também uma conceituação mais formal a partir da página 368 de: Reale, Giovanni. História da Filosofia. Volume l. São Paulo: Paulus. 2003. (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. V)
- Valores-
"E o que surge desta certeza sobre a total responsabilidade da individualidade, supostamente autônoma, para ser a única responsável pelas suas deliberações é que sempre se possui uma escalas de valores para avaliar as escolhas que precisam ser feitas.
Esta escala é uma ferramenta, possui uma função que é resolver sobre suas deliberações. E os valores da escala são os conceitos simples e sempre binários, que emergem da dimensão do que todos consideram como seus juízos próprios: bom ou mau, certo ou errado, legal ou ilegal, suficiente ou insuficiente, etc.
Vem mesmo daí a origem da certeza de que toda razão para agir sai das instâncias individuais, e apenas desta. Pois os critérios do que seja bom ou mau, certo ou errado, etc., estão mesmo dentro de cada um, e profundamente enraizados.
E se alguém decide, num ato de urgência, ir contra a escala de valores, como por exemplo ao atentar contra a vida de outra pessoa, agirá desta forma mesmo ajuizando que seja “errada” tal deliberação, mas deliberará pelo que seja necessário fazer, pelo que se mostra mais urgente e esperado, ainda mais se for para defender alguém que ama, ou mesmo a si, em níveis nos quais a sua perspetiva fará de tudo para manter as coisas como são e estão, para uma permanência do status quo.
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Estes valores destoantes (como «é errado matar» ou «é necessário matar») são profundos e próprios de cada indivíduo, por vezes opostos e conflitivos, e estão hierarquicamente sobrepostos de forma que, o que for necessário ser feito será feito, seja certo ou errado, por exemplo. Por isso, parece-lhe que não haja a necessidade de algo externo estabelecer o que precisa ser feito por ele, no primeiro momento de sua análise, que fica dependente apenas de seus próprios juízos sobre a urgência e a exigência da situação.
Assim, o sujeito crê que cada um saiba exatamente o que é para ser feito em suas ações, seja o certo, o errado, ou o necessário e tudo o mais, de acordo com sua própria escala de valores íntimos. E há até muita coerência nisto. A escala está aí, e cada um sabe da sua, e a conhece muito bem, desde sempre. Não há dúvidas acerca disso.
O que falta descobrir, afinal, é a origem destes valores íntimos, de como foram apreendidos e formados como seus. Se isto for mesmo por critérios da própria capacidade de autonomia do indivíduo, não será preciso discutir mais sobre este tema. Mas, se não foi, é preciso perceber como pôde o indivíduo adotar tais valores alheios a si como seus. E esta questão será exaustivamente tratada ao abordarmos a moral e a ética, pois carece de alguns cuidados para que se perceba a extensão dos desdobramentos que surgirão." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VII)
- Vida Dupla-
"Sobre a vida dupla e afins: Ainda que toda obsessão seja um relacionamento, nem sempre todo relacionamento é consensual. Mas, neste caso, o relacionamento com a ideologia é mesmo consensual, descarado e obsceno. E que pode até ser mesmo erótico, de tão tórrido que poderá vir a se tornar. E esta consensualidade pode ser limitada ou condicional, ou até mesmo incondicional e ilimitada, a atingir um nível radical de submissão, quando extremada. Mesmo que seja considerada uma relação extrema ou “estranha”, só é assim considerada pelos que estejam de fora dela. Pois estes não conhecem as verdadeiras razões estabelecidas entre seus participantes, pois faltam-lhes os conteúdos e os valores deles.
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Assim a rede relacional existente é percebida como esdrúxula, como acontecem com muitas relações existentes que sejam consideradas até “anormais”, quando classificadas pelos sujeitos “normais”. Como, por exemplo, podemos citar quem passa a observar cruamente o que ocorre entre tais posições assumidas em relações de poder, trabalho ou prazer. Casos clássicos quando consensualmente uma parte seja dominadora e a outra seja a dominada. São casos corriqueiros, como no caso das seitas e religiões, das tramas feitas pelos puxas-sacos corporativos, ou também nas relações sadomasoquistas entre chicotes e algemas. Sempre observamos relações que para nós são estranhíssimas, e nos parecem abusivas, por vezes. Mas nos falta a perspetiva do outro, e o nosso juízo fica a nos pregar uma peça.
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E é isto o que verdadeiramente “legitima” os relacionamentos que julgamos ser aparentemente extremos entre dominador e dominado. Pois, se há consensualidade entre estes, será sempre um relacionamento com base na ideologia predominante que estes comungam entre si. E ponto. Havendo consentimento consensual, há licitude. E, portanto, há algum acordo em relação ao que ocorre entre ambos, a princípio. Se não há consensualidade, não será um relacionamento em que ambos estejam na mesma ideologia e, portanto, não é algo ideologicamente estabelecido entre as partes. E assim, e só assim, poderá haver algo delituoso de uma parte em relação à outra.
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Há ideologia até mesmo entre um casal. Pois se há a estrutura formada, há também uma ideologia formada que ficará mais profunda quanto maior for a duração e a intensidade da relação. Ao sedimentarem-se progressivamente os valores compartidos e comprometimentos firmados, a relação se aprofundará mais e mais. No extremo da profundidade, o casal parece ser uma unidade, sem mais individualidades.
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Há, ainda, e não poderíamos deixar de citá-los, os relacionamentos que possam ser considerados aparentemente “normais” para um observador externo, mas que não sejam consensuais. Pois sempre há nestes alguma dissimulação das partes, a atenderem a alguma outra ideologia que não a do casal, propriamente. E que este, a bem da verdade, não está a se relacionar, mas sim a cumprir algum papel imposto para si. Quantos casais não passam a construir uma vida dupla, separadamente do outro? E por que o fazem? Qual o sentido de manterem as aparências a tal custo de uma privação pessoal? Fazem isto justamente por ela: a ideologia à qual estão a atenderem e a nutrirem." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XVI)
- Vida Social-
"A fantasia é, da mesma forma, eminentemente humana, natural e lícita, e não apenas faz parte desta natureza como é uma das responsáveis, desde sempre, pela evolução e por todo o progresso que emergiu pelo desejo ou pela necessidade de supressão da falta ou da amplificação da diferenciação, a resultar na ultrapassagem dos próprios limites humanos. A vida social foi um meio, desde sempre, de se ultrapassar a si mesmo.
Pois o desejo primário já possui uma instância no animal, que nunca é totalmente irracional, pois há sempre um quantum de racionalidade, ainda que rudimentar, que o permitirá resolver as questões mais básicas de sobrevivência e, assim, fazer conexões com outros para ampliar suas chances. Conexões são os relacionamentos, que dão início à vida social, aos bandos, as tribos, etc. E a fantasia se consolida, quando aquele que quer fazer parte deseja ser acolhido pelos demais. Assim, a interagir, pelos desejos compartilhados, começam as convivências sociais tão valorizadas para a perpetuação e evolução das espécies.
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A vida social possui valor pois passa a significar situações nas quais surgem as oportunidades, que são as possibilidades reveladas, tornadas acessíveis, afinal, e são as oportunidades igualmente entes transcendentes a se permitem mais facilmente passar para entidades imanentes.
E as oportunidades são, sensivelmente, mais numerosas nas esferas mais elevadas da estrutura, e mais escassas nas bases, para as massas, ao contrário das possibilidades. Não que não existam muitas possibilidades nas bases, mas são comuns, vulgares e, portanto, não valorizadas ou mesmo nem reconhecidas. Por isso, que todos são orientados a desejarem, ao mesmo tempo ascender na estrutura, pelo maior número de oportunidades que aparentam existir no topo, mas logo hesitarão, pelas sensações que terão em relação às restrições de possibilidades menores. Ficarão entre a cruz e a espada, entre as oportunidades e as possibilidades, perdidos entre ato e potência, entre o mundano e o celestial, e isto é entre o imanente e o transcendente." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. X)
- Violação-
"Por isso, sempre há por parte do humano desejante a fantasia de ser, por si mesmo, o objeto de desejo do outro, a fantasia de ser uma fantasia, de se relacionar. E isto pode levar à violação.
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Isso provoca inúmeras aberturas interpretativas, até mesmo as que, por vezes, podem vir a serem conflituosas como nos casos de violação, por exemplo, no caso dos estupros e diversas formas de violência sexual praticadas por, supostamente, aquele que busca satisfazer incondicionalmente seu desejo orgástico, mesmo que pelas condenáveis formas violentas e não consentidas de relacionamentos, em que este desejo se mostra superior às convenções sociais estabelecidas, como leis e normas de conduta.
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Assim, é alegado por muitos violadores (e também por doentios religiosos, extremistas políticos e falsos moralistas, se é que exista diferença conceitual destes com os violadores) que a motivação para um determinado estupro referenciado surgiu devido à provocação da própria vítima, seja pelas roupas insinuantes que estava a usar, ou pelos trejeitos, olhares, formas de se expressar, enfim, tudo o que levou o violador a crer que a vítima estava a desejá-lo – e a declarar – que o criminoso fizesse o que fez. É preciso perceber bem a diferença entre o que está a ser defendido como conceitos acerca dos desejos e das fantasias e invalidar totalmente as interpretações canalhas e desvirtuadas destes conceitos evocados, indevidamente, para justificar atos criminosos.
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Ora, se a vítima estava a ter e a estimular uma fantasia, isso é legitimamente humano e não incorre em nenhuma declaração de permissividade para que os outros venham, e tomem e lhe privem do que é seu, do que esta pessoa detém como sua exclusiva propriedade, que neste caso é o seu próprio corpo, que para a vítima não é uma possibilidade, transcendente e, portanto, é algo realmente imanente, e de sua exclusiva propriedade, tangível, se visto desta forma.
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Para o agressor, o corpo da vítima é apenas uma possibilidade e, portanto, é algo transcendente, para além de si, e por isso não possui o direito sobre ele, pois não é um bem protegido pela legislação da propriedade privada, que só pode referenciar o que seja imanente a ele, depois de um acordo comercial formalizado, com todas as condições definidas. O violador pensa que o direito sobre as transcendências não está nas legislações mundanas, mas nas instâncias suprassensíveis, divinas ou sagradas, das que habitam os fanáticos chauvinistas e extremistas, inclusive. O que é do outro é “sagrado”, não deve ser tomado a qualquer custo. Mesmo se houvesse alguma concessão dada pela vítima, caso esta concordasse em fazer sexo, esta concessão nunca seria total, irrestrita e incondicional, caso ela não declarasse isso explicitamente.
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Os termos e condições sobre o próprio corpo sempre são próprios a cada um, e a ninguém mais. É um direito inalienável e inquestionável, em todas as condições possíveis. A máxima permissão apenas acontecerá nos estados de mútua paixão, na fantasia mútua e extrema entre dois amantes, que se entregam incondicionalmente no calor dos desejos desesperados por serem saciados, e tudo com espaço e tempo definidos, mas nunca isto pode ser estendido para as relações doentias em que se foge ao próprio autocontrole. E a certeza é que, tais atos, são ruins. Ou melhor, uma péssima e indevida apropriação, nem ao menos uma relação pode ser considerada, nem mesmo uma má." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. IX)
Violação: Conteúdo Protegido.
- Visceral-
"É o visceral, uma dimensão bem mais forte e superior ao obsceno. Enquanto o obsceno se manifesta na estrutura, e se dá não pela falta, mas sim pelo excesso de pudor existente, o visceral se manifesta nas proximidades do abismo, quando se passa a percebê-lo nos limites entre o possível e o caos, e assim ele é sentido pelas próprias vísceras, que se remexem a se comunicarem com a dimensão abissal.
No abismo, não há nem linguagem e, portanto, nem idiomas ou sequer expressões e palavras, apenas existem sentimentos viscerais. Onde a pura consciência passa a perceber o vazio completo sem nenhum poder para além da própria busca intencional, sem que haja nenhum feedback para si. É a mente que fala ou urra ao cair nas profundezas abissais, e nada mais há para além disso. Mas, “apenas” isto é muito mais do que a consciência consegue perceber ou conceber. O obsceno, todavia, contrariamente é impavidamente suportável.
Pois são estas fagulhas temporais que fazem parecer que a eternidade se instala nos ínfimos instantes em que ela está a durar. E é um efeito tanto quanto se sente a hesitação, quando parece que o tempo para de correr e se percebe uma eternidade nos instantes em que se vive o estranhamento. É quando se abre um abismo entre o modo de ser e o modo de existir do sujeito. É o abismo, o nosso velho e conhecido abismo, também o abismo de Nietzsche, que tanto pode ser um vazio completo, de um niilismo submergente, quanto pode ser um local em que os monstros estão a aguardar o impotente e hesitante niilista para ser consumido a partir de suas vísceras.
visceral
Uma escuridão na qual se percebe olhos a nos observar, mas não enxergamos os tais olhos, mas sentimos que lá estão, a nos acompanhar sempre. Como saber dos perigos do abismo? Só há um meio: e basta pular nele. Pule! Pule! Feche os olhos e imagine-se a pular, a cair no vazio, a perceber os olhos a se aproximarem, e com os olhos as garras e bocas famintas, as entranhas de uma dimensão que a tudo absorve. Pule e sinta o que ocorre em seus pensamentos, o que irá lhe suceder…
Provavelmente, neste momento, você hesitou, ou algo parecido, ao ler estes imperativos. Se hesitou, já pode perceber que este abismo é a hesitação, a brecha, a fissura que leva a lugar nenhum, que é tão desprezível que seduz, que atrai e faz com que todas as vísceras se movimentem. É o visceral, uma dimensão bem mais forte e superior ao obsceno. Enquanto o obsceno se manifesta na estrutura, como vimos e veremos, o visceral se manifesta no abismo, nos limites do caos, e é sentido nas próprias vísceras, que se remexem, a se comunicarem com o abismo. No abismo, não há linguagem, nem idioma, nem palavras, apenas sentimentos viscerais, apenas consciência e poder sem resultados. É o corpo que fala, ou urra, a cair, e nada mais.” (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. VI)
- Volição-
"A vontade se dá pelo surgimento da oportunidade que surge da relação consciente, pois é uma força quase imanente, a buscar o potencial imanente. A volição se dá pela autoconsciência, a se posicionar dentro de todas as possibilidades, pelos próprios conteúdos que possui e que, assim, adentra às dimensões das regras, da ordem simbólica e de sentimentos como a empatia, por exemplo. Animais possuem isto, mas nem sempre de forma suficiente para que sua volição seja superior à sua vontade." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XI)
"Assim, a ética está muito mais enraizada nas razões consciente para agir, ao nível da volição. Nos nossos constrangimentos autoimpostos que precisam estar sob a judicie racional e dotada de valores compartilhados. E isto é muito mais ambicioso do que apenas focar nos objetivos da ação, que são as possibilidades. Os constrangimentos da volição, pela autoimposição que sempre fazemos a nós mesmos, sacrificialmente, em nome de algum bem maior que vislumbramos, são o que melhor percebemos da prática ética – e que sempre nos acaba por consolar, pelas renúncias jogadas no abismo.
Por isso que é a ética as possibilidades das possibilidades, a desejar a eliminação dos obstáculos e dos conflitos para atingir o mundo ideal, sempre a aspirar a ser ela própria a produtora do nosso 'bom feitio'. É por isso que uma condução ética, sem deixar de se preocupar por chegar a um determinado destino, busca definir a melhor forma de conduzir até lá, eficientemente, e não necessariamente a mais vantajosa, e que não seja dotada de nenhum tipo de ameaças, prejuízos ou danos, para ninguém." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XXXIV)
- Vontade-
"O importante é que, em última instância, perceba que nem tudo o que lhe chega como sugestão ou inspiração para alguma ação seja mesmo seu, ou que tenha origem em sua própria individualidade e em seus voláteis estados mentais, mas que, ao fazê-lo, as consequências dos seus atos passam a ser de sua única responsabilidade, ao encampar o gatilho da ação (oportunidade) como seu, a legitimar a propriedade destes pela própria vontade excitada, mesmo que nem sempre seja fácil perceber a origem exata de seus desejos, pois tudo se mescla na estrutura em que se está inserido.
Assim, ainda a despeito das violações sexuais que ocorrem, a partir do oportunismo do acaso, em que os mais “animalizados” possam estar por perto, em nome do bom senso os atos de exibicionismo deveriam ser parametrizados por quem o faz, em nome da própria segurança, e levar em consideração os fatores humanos imprevisíveis dos ainda oportunistas, que podem querer fazer do imanente alheio, como corpos ou bens, algo seu, ao tomá-los à força. Estes “animalizados” possuem consciência, mas não uma autoconsciência desenvolvida à altura da sociedade minimamente aceitável. Possuem a vontade, mas não a volição. A vontade se dá pelo surgimento da oportunidade que surge da relação consciente, pois é uma força quase imanente, a buscar o potencial imanente." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XI)
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"E a vida, afinal, vivida sob a certeza da finitude, seria esta espécie de jogo em que todos apenas desejam se manter nele. Embora alguns desistam e optem por sair, antecipadamente, por vontade própria, e ainda há outros que não consigam sequer jogar, excluídos por razões próprias ou alheias a si, e que passam toda uma vida, ou parte dela, apenas a verem os outros jogarem, distantes, ou ficam a torcer a favor ou contra, docilmente seduzido pelo que vê ou com imenso azedume pelo que não pode fazer." (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XXIV)