glossário do esquema conceitual do possível serdual - ansiedade

Ansiedade

“Em linhas gerais, por não se conseguir responder sobre o futuro, sobre algo que ainda não aconteceu, pergunta-se mais abertamente pelo passado, como se este ficasse a martelar a mente humana para completar os buracos epistemológicos existentes na linha do tempo existencial, sempre imaginada como linear. Isto poderá derivar muitas coisas, dentre elas, a ansiedade, mas não só.

Ainda assim, o futuro não é desprezado, pelo contrário, pois passa a ser “projetado” pelas mesmas capacidades imaginativas da mente humana, racionais ou não, que buscam sempre preencher o vazio dado pela dúvida da existência do futuro, que de tão incômoda passará pela própria pressuposição axiomática de que haverá mesmo o futuro, para começar. Por isso, principalmente, pela fuga da dor mental que traz a incerteza, o futuro não é somente assegurado, ao menos mentalmente, como também passa a ser uma função vital prevê-lo para dar vida aos pressupostos inconsistentes e inventados.

E a mente continua a construir uma realidade a partir de sinais elétricos que chegam ao cérebro e que formarão uma teia que aspira ser capaz de perceber o que virá, a seguir, que já denominamos como consciência. E tudo isto se dá em nome de uma necessidade de continuidade existencial da vida e do mundo, ambos a transcenderem à possibilidade da finitude dada pelo acaso de que algo possa vir a ocorrer e que “tudo” deixasse de existir. Esperanças, apenas esperanças. Isto surge em paralelo ao problema da indução, já acusado pelo filósofo britânico David Hume[1] (1711 – 1776), em que há a “certeza” de que sempre haverá um novo dia, um amanhã, a formar uma ilusão da continuidade linear da existência. Sair desta condição intelectual é desconfortável.

O que seriam das séries realizadas pelos serviços de streaming, como a Netflix, sem a indução? Afinal, o que seria a ansiedade? Se assim considerássemos a necessidade de simultaneidade de acontecimentos que tem o ansioso, a buscar as certezas em que ocorrerão as coisas que existem com incertezas, percebemos que a inovação da Netflix, ao disponibilizar muitas de suas séries com todos os episódios liberados é algo que atende aos desejos íntimos de muitos ansiosos, aqueles que nem sempre contam com uma alta confiança na própria capacidade indutiva que possuem acerca do futuro, e por isso querem tudo no agora, no antecipar de qualquer acaso contrário possível que lhes possam privar da fruição do objeto de desejo para além do devir. Ou, talvez, contrariamente, possuam eles uma confiança em excesso ao julgarem que o que estará no devir deixará logo de existir, e assim queiram realizar suas fruições de forma imediata, a apreender o próprio fluxo da existência.

A origem da ansiedade vem também de uma relação problemática de indução, acerca dos ajustes mal feitos sobre os tempos percebidos. Mas isto não é uma teoria sobre a ansiedade, ainda, mas uma provocação para percebermos que nada fica alheio à temática, quando na selva. Maratonar uma série já disponibilizada na íntegra é uma busca por garantir chegar ao fim de algo que se deseja no imediato, mas ainda a sofrer pela dúvida que ficará acerca da existência de uma nova temporada futura, o que prenderá o assinante até que isto possa ocorrer, e que não perderá nem um segundo quando houver o aguardado lançamento.

Não há como se afirmar tal coisa, mas me parece que sempre que se assiste a assim anunciada última temporada de uma série que se gosta, a pressa deixa de ser tão intensa quanto nas temporadas anteriores, a tentar postergar o que já está dado como terminado. Em muitos casos, posterga-se chegar ao final. É uma impressão que tenho, em minha particularidade. De todas as formas, eis que nunca se pode fugir desta desgastante incerteza acerca do futuro, que também vira produto, como tudo, mas sempre se pode recorrer aos processos indutivos para se manterem as aflições suportáveis, e a continuar a produzir e a consumir, enquanto se aguarda impacientemente. (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIII)


[1] «Se as ideias fossem inteiramente soltas e desconexas, só o acaso as juntaria; … Este princípio de união entre as ideias não deve considerar-se uma conexão inseparável, pois tal conexão já foi excluída da imaginação; contudo não devemos concluir que sem ela, a mente é incapaz de juntar duas ideias, visto que nada há mais livre do que essa faculdade… As qualidades em que se origina esta associação e que desta maneira levam a mente de uma ideia para outra, são três: a semelhança, a contiguidade no tempo e no espaço e a relação de causa e efeito.» HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, p. 39.

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