glossário do esquema conceitual do possível serdual - o bem

O Bem

“Pois a formação dos conceitos do que seja bom ou mal, na moral, se dá exatamente como na relação entre o senhor e o escravo[1]. Sob a perspetiva do escravo, este fundamenta primeiro o seu valor moral negativo, o mal. Nietzsche atribuiu ao escravo o primeiro passo na formação da moral fundamentada na oposição entre o bem e o mal.

Para ele, neste caso, o conceito ou o predicado do mal surgiu a partir da ameaça (e não da impossibilidade real) imanente que a figura do senhor representava para ele, primordialmente. E somente depois disto, da perceção do mal, o escravo passou a instanciar em si o que seria o bem. E este conceito de bem se fez presente quando ele passou a deter para si possibilidades de, por exemplo, se vingar daquele que o oprimia, o senhor, e se libertar, sair da vida que possuía.

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Se visse o senhor como impossibilidade real, nada poderia fazer, e ficaria prostrado na condição desumana. Percebia a liberdade, a tinha como possibilidade, real e atual e, assim, precisava ultrapassar a ameaça instanciada, que o castigaria, ou mataria, se se rebelasse ou fugisse. É uma subversão da teoria criacionista cristã que se fundamenta no bem, e não no mal, mas Nietzsche está plenamente em linha com o que se defende aqui, ou melhor, humildemente, estamos plenamente em linha com o que ele nos deixou acerca da moral do bem e do mal.

Mas que resultou em ser mesmo a possibilidade de vingança, que seria o bem para o escravo (e uma ameaça para o senhor, portanto) que lhe deu um vislumbre do poder que poderia obter, e então o poder foi tido também como um bem ainda maior, recebido por quem o merece e seja capaz de bloquear o mal. Sempre, portanto, é preciso perceber que a busca pelo poder é, em si, uma busca pelo bem, na perspetiva do buscador. E, como sabemos, há muita relevância e centralidade do poder na Filosofia de Nietzsche.

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Mas, e se analisássemos o contrário? Para o senhor, todavia, detentor do poder, o escravo é tanto uma possibilidade quanto uma ameaça – tanto é o bem, quanto o mal. E é ameaça justamente pelo poder que este detém sobre o que seja o bem do senhor, sem o saber, como gerador de possibilidades para o senhor – gerar riquezas pela utilização compulsória de sua mão-de-obra. O escravo é valiosíssimo para o senhor, e responsável direto por este ser quem é, pois, se o escravo se torna uma impossibilidade real, ou seja, se deixasse de existir escravo, o senhor não mais poderá ser senhor, pois depende deste escravo para sê-lo, tal como deus depende do diabo para ser deus, funcionalmente, e que triunfa sobre as supostas impossibilidades.

O escravo correlaciona-se com o sujeito da estrutura, mas o senhor não se correlaciona com o espírito obsessor, pois este criou uma correlação deste senhor com a ameaça, a dar-lhe status de impossibilidade, e ficou oculto, a manejar seu jogo sem que seja exposto, ou referenciado abertamente. É apenas um conceito empoeirado nos pensamentos filosóficos mais indesejados, que geralmente levam à subversão do sistema instituído e tido como ideal. Eis aí sua verdadeira faceta conservadora.”  (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)


Notas

[1] Usaremos, a partir daqui muitas das vezes, a palavra “escravo”, como a considerar pessoas, de forma geral, que estejam “na situação de” escravos. Pois, não há mesmo como se aceitar que alguém seja um escravo, de facto, por ordem da natureza – isto é inaceitável. A escravidão, como concluiremos a seguir, é um ponto muito lamentável na Filosofia de muitos grandes pensadores, até mesmo os que são admirados atualmente, como Hegel e Nietzsche, dentre tantos, pois há claros indícios de que não eram contrários a tal prática, como também existem indícios de que possuíam opiniões favoráveis a respeito.

No mínimo, há a omissão da maioria dos pensadores até o Século XIX, quando a escravatura começa a ser abolida pelo mundo, o que já é profundamente lamentável, dada a condição intelectual que possuíam. Sem um julgamento politicamente correto, seguiremos a expor os pontos de vistas acerca disto, ainda que nas partes finais retomaremos estes posicionamentos acerca da relação escravatura e os filósofos.

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