glossário do esquema conceitual do possível serdual - o mal

O Mal

“Podemos perceber os mecanismos destas operações, tais como quando a versão personalizada e negativa de deus (que representa o bem), seria supostamente o diabo (o malvado da história). Assim pensam os crentes religiosos acerca do bem e do mal. E o diabo é apenas um de seus infinitos nomes atribuídos, de suas inúmeras predicações maléficas, ou do próprio mal substancial atribuído a “ele”, que o eleva a uma condição diferenciada em oposição a tudo o que seja bom.

Mas, mesmo assim, “ele” não é, em si, uma impossibilidade dada como real e não atual, visto que até mesmo pode se disfarçar como uma cobra falante e causar grandes estragos aos planos de deus – e é isto mesmo o que ele faz – sempre a ameaçar os planos do bem em todos os tempos do passado, do presente e do futuro, com a atualidade garantida, a ser ilusoriamente tomado como real, a transitar no tempo e no espaço, a ameaçar tudo o que há, mas nunca a impossibilitar o bem de ocorrer, ou de triunfar sobre ele.

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Pois, afinal, na realidade, o diabo nunca existiu. Nunca há a impossibilidade real que se origina causada pelo mal ilusório, por pior que este possa ser considerado.  Não é mesmo curioso, visto sob esta ótica? Talvez haja um pequeno bug na mente de muitos leitores, a perceberem que muito do que eles próprios pensam sobre o mal se desfaz quando se desfazem os frágeis conceitos acerca da universalidade.

Então avancemos novamente. Perceba mais uma coisa: em todas as histórias que nos chegam, o diabo nunca impede nada, realmente, mas pelo contrário, geralmente excita e incentiva o pecador potencial para sê-lo realmente, de facto, em ato, a fazer tudo o que dizem ser proibido por deus, mas que lá no fundo ainda fica no pecador, assim constituído, um potencial ainda existente, e uma imensa vontade de pecar ainda mais, pois passa a uma condição de ser completamente insaciável sob a influência do capeta.

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O pecado não é mesmo o que há de mais gostoso e tentador nas religiões, ao menos em sua maioria mais conhecida?

As regras estabelecidas são tanto as que criam quanto as que proíbem o pecado, mas já na dimensão humana, a partir dos representantes que assim estabelecem. Agostinho de Hipona, por exemplo, definiu o livre arbítrio como possível e outorgado por deus; definiu que o mal é a ação do homem, sob a égide do livre arbítrio e, por fim, apenas a intenção de pecar, ou os pensamentos voltados ao pecado, já se configura o pecado, mesmo que nada se faça para além dos próprios devaneios mentais.

O diabo seria, desta forma, se “ele” existisse mesmo, um libertador das regras e dos representantes da ordem estabelecida, em termos conceituais. Mas o que o diabo supostamente faz é apenas ameaçar que as regras não sejam cumpridas, e nem os representantes sejam obedecidos, e combater isto passa a ser a cruzada que todos os devotos passam a se engajar, em nome da possibilidade que nunca perceberam mesmo existir, mas que está ameaçada pelo capiroto. E não é nada mais do que isso.

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A função diabólica é, portanto, ameaçar (nos filmes de suspense, ou terror, a iminência do ataque é sempre mais aterrorizante do que o ataque, em si, por vezes patético e cômico) – pois ameaçar é uma função essencial para que o bem se estabeleça, pois, este sempre precisa fazer com que o diabo “perca” para provar sua superioridade ontológica, para provar que o que é suposto ser o bem seja mesmo o “bem”, ao final dos embates viciados travados com o cramulhão, pois o bem sempre “precisa” vencer teatralmente o mal para se afirmar como tal. É, assim, essencialmente funcional para o espírito obsessor a ação diabólica, pois só a partir dela é que este se pode afirmar como superior e desejável.

Se o céu fosse uma empresa de fast-food, com aqueles pósteres de funcionários do mês, o diabo seria sempre a fotografia presente no mural dos funcionários em destaque, pois a cada avanço da fé significaria que ele estaria a prestar melhores serviços. Algumas instituições religiosas deram e outras ainda dão destaques aos demônios, a contratarem atores representantes para que estes possam ser “possuídos” e “despossuídos” – de forma verossímil – pelos representantes do bem, os líderes de tais instituições, quando em frente aos devotos ansiosos para constatarem a efetividade do poder do bem que lá está às suas disposições. Tais espetáculos se deram no passado medieval dos exorcismos e ainda estão em cartaz em muitas religiões, seja ostensivamente ou veladamente.

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Não deve ser fácil contratar bons atores, pois além da qualidade dramatúrgica da representação, deve-se ter uma quantidade suficiente de atores no casting para que não se repitam endemoniados nos cultos semanais, pois um mesmo devoto possuído rotineiramente representaria uma efetividade de libertação muito aquém da aceitável, pois assim seria o poder do representante do bem muito curta e ineficiente, portanto. Afinal, em nome deste poder, o ator não pode resistir muito tempo em sua encenação, pois o líder do bem pareceria fraco e limitado.

Há que se acertar os tempos, e por vezes não dá muito certo, pois quase sempre se passa do drama à comédia, ou o ator encena muito mal o seu papel, ou é demasiado rápido, ou demasiado lento, ou quer imprimir alguma profundidade excessivamente dramática como, por exemplo, rotacionar 360º com a cabeça ou com os olhos, ou até mesmo se contorcer mais do que conseguiria um ator do Cirque du Soleil. Os problemas são rotineiros.

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Mas ainda há o risco de o ator ser muito bom e atrair para si o protagonismo do show, tal como quando o vilão é mais bem quisto do que o próprio herói, ainda mais se o herói for “alguém” tão insípido quanto o Batman, e há um vilão tão rico quanto um Joker a lhe fazer frente. E por qual razão isto ocorre? Pelas próprias qualidades dos atores. É preciso, assim, dar valor a quem representa melhor o bem ao se assumir como o mal, pois assim se consegue o que se quer, que o mal promova melhor o bem.

Pois, se assim não fosse, e houvesse o “verdadeiro” mal da impossibilidade, haveria de se admitir que o bem (oriundo dos conjuntos hierarquizados das possibilidades) poderia ser inviável para ser atingido, pelas impossibilidades reais e atuais, oriundas da ação verdadeira do mal, visto que o mal não apenas ameaçaria, mas realmente impossibilitaria o bem, por completo. Seria um imenso problema viver sem possibilidades, e tudo seria diferente, e muito mais sombrio, sem expectativas. Por isso, o espírito substitui o inimigo, e este nunca oferecerá o perigo de ser realmente o impossibilitador de nada, mas sim um ameaçador, no máximo. A “mágica” estará no marketing, que o próprio espírito tratará de promover uma reles ameaça para um status de impossível, para que ele consiga ganhar e se afirmar. O show não pode parar, afinal.”  (em O Guia Cínico e Selvagem dos Jogos da Vida, Cap. XIV)

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