irmãos blues brothers - SerDual - - Há uma “intencionalidade naturalmente ética” nas ações humanas?
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Há uma “intencionalidade naturalmente ética” nas ações humanas?

Abstract

Há uma “intencionalidade naturalmente ética” nas ações humanas? Este artigo tem como proposta investigar a intencionalidade da ação humana sob a perspetiva de uma suposta ética natural, se existente, a partir de uma formulação de um conceito da existência de um sistema de crenças individual e também do conceito, em Slavoj Žižek, de ideologia.

Portanto, a busca será a origem teleológica da ética e sua análise enquanto exercício livre de uma ação natural dentro de uma cadeia de relações sociais e/ou a partir de algo provocado ou imposto pelos meios de controle existentes – da ordem estabelecida – tais como sociais, políticos, econômicos, religiosos, etc, e que influenciam, originam ou cessam a intencionalidade das ações éticas.

O artigo coloca em pauta as seguintes questões, mas não só:

  1. A intencionalidade, em si, é dotada de algum componente ético?
  2. A relevância do sistema coletivo nas ações humanas – como forma de controle nas origens da intencionalidade até na efetiva ação;
  3. A ética como instrumento do sistema de controle e dominação – uma suspeição necessária;
Palavras-chave

ética, intencionalidade, ação, autonomia, crenças;

Introdução

Nuseir Yassin é um jovem e popular israelense das mídias sociais, conhecido por Nas Daily, e retrata, dentre vários temas contemporâneos, a cultura palestina e judaica com suas diversas crenças, idiossincrasias e contradições com algum sincero grau de profunda e legítima autocrítica, agregada a uma necessária e ajustada irreverência. Seu sucesso é merecido.

Em um de seus vídeos[1], ele defende que, para o ser humano na condição religiosa de judeu ou muçulmano, mais grave do que consumir bebidas alcoólicas, praticar sexo casual, tornar-se criminoso ou mesmo qualquer outro comportamento estranho à religião é comer carne de porco. Até considera que muitos até podem cometer certos “crimes morais e religiosos”, mas nunca cederão ao desejo (que aparenta ser relativamente inócuo, exceto para o animal, obviamente) de comer carne de porco. E qual a principal razão que ele atribui a tal negativa alimentar?

Simplesmente pelo facto de que os pais falam sobre isto aos filhos desde a mais tenra idade, e estes passam a formar um sistema de crenças morais com bases tão profundas [2] que transcendem à própria condição crítica do indivíduo supostamente livre para agir conforme seus próprios critérios deliberativos. O próprio Nas Daily, sabedor desta dinâmica, e sem ser praticante religioso não consome carne de porco, tamanha é a sua enraizada dimensão moral limitante impressa e ativa em sua consciência a bloquear seus desejos, sentidos e ações de consumo. O mero odor do bacon a fritar que é tão sedutor para muitos, por exemplo, passa a significar uma rejeição visceral para outros. E isto é a ideologia activada pelo seu marketing, que é capaz de dominar completamente quem está sob seu efeito.

Este é apenas um dos milhares de factos que ilustram o poder destas orquestrações das ideologias que operam sobre as bases morais mais profundas (que tanto as estabelecem como as consolidam). Aqui, podemos expor este tema como questões práticas sobre a ética e a moral, a tentar extrair alguma lógica desprovida de falhas em que possa explicar claramente a última instância da ação[3] humana desejável – que é sempre a “melhor” ação humana possível: racional, ética, moral, em que esteja de acordo[4] com o “bem”, com as virtudes, com a máxima expressão da razão humana em seu exercício de bem viver com justiça e equidade social.

A construção que será feita neste texto é que toda conclusão de qualquer teoria ou fundamentação ética deverá ter como premissa o agente humano, sua plasticidade quanto à adequação normativa ou mesmo sua aderência a tal prática ativa da vida social.

A esta principal instância da ação posta em causa podemos dar o nome de intencionalidade, a partir de uma abordagem já feita por Franz Brentano (1838-1917) em que todos os estados conscientes são intencionais e de que todos os estados intencionais são conscientes. A intencionalidade se faz sempre presente, afinal, para a consciência. E merece ter seu papel de destaque.

Eis o objetivo nada simples: identificar no agente as condições necessárias e suficientes de intencionalidade que definirão suas ações serem éticas ou não, morais ou não.

Afinal, o que considero ser ético ou moral?

 

 

A Ética e a Moral

A ética essencial a ser considerada preliminarmente neste trabalho será o substrato conceitual resultante quando do sucesso da intencionalidade. Será, todavia, algo que é um resultado de uma ação, consequencialista, e não um princípio que precede e dirige a ação, necessariamente. Este substrato é dinâmico, visto que é impactado constantemente. A ética tem, portanto, sempre correlação majoritária com alguma instância exterior ao sujeito, a quem este se curva obedientemente quando assume determinada posição.

A moral, contrariamente, é algo que precede a ação, pois a deliberação passa necessariamente pelo crivo da moral, a rigor, e por isso tem necessariamente correlação majoritária com alguma instância interior do sujeito, ainda que progressivamente seja menos dinâmica com o passar dos anos, e que também seja mais facilmente subvertida em momentos desconexos da realidade. Ambas[5] – ética e moral – tem estreitíssimas correlações com algo maior do que o próprio sujeito – que é a ordem simbólica, ou seja, a ordem externa a ele e á qual ele está inserido e, assim, que possui grande influência sobre o mesmo.

Desta forma, Nas Daily supostamente não come carne de porco, em nenhum lugar, em nenhum momento, mesmo que não professe mais das morais religiosas judaicas, o que deixa de ser relevante, como percebemos, pois a crença já lhe está profundamente interiorizada, a anular seus desejos suíno-gastronômicos de forma quase absoluta. Todavia, outro estímulo[6] exterior (e até aqui inexistente) poderia suscitar-lhe um novo e inédito desejo que possa quebrar a moral existente e arraigada que ele possui acerca do consumo de carne de porco.

Como suposição, caso ele decidisse frequentar uma comunidade liberal-hedonista que não professe nenhum tipo de proibição gastronômica, ainda assim comer a carne do porco seria ainda para ele uma atitude moralmente reprovável, e também eticamente indesejável, ainda que aceitável para a comunidade a qual está a participar. Com o tempo, esta perceção poderia ser modificada quando seu vínculo com esta comunidade fosse consolidado – a apreender e a compartilhar novos conteúdos e valores – tanto quanto possui com seus antigos vínculos parentais, ainda mais se houvesse alguma pressão na comunidade ou nos relacionamentos que tivesse para que a transgressão fosse uma característica comportamental para ser aceito integralmente como novo membro. Para fazer parte de algo, sempre é preciso transgredir a própria individualidade e se anular parcialmente em detrimento do que se é exigido como prova de integração e compromisso com a comunidade que está a se abrir, e nisso os membros assumem uma nova ideologia comunitária em troca de outra anterior, mas nunca sem deixar de ter uma ideologia externa a ditar parâmetros do agir. Uma mera troca de ideologia, mas esta sempre continua presente em tudo o que fazemos, que temos e o que somos. Não há o possível sem a ideologia, afinal. Sem ela, apenas o impossível.

Por isso acusamos aqui a importância em perceber a função da moral como basilar nas deliberações das ações e da formação da ética, que pode ser considerada como uma resultante porterior das ações, a priori – e que consiste em algum tipo de juízo superior e exterior que afere as próprias ações realizadas, e o próprio agente, em um grau de consciência que tangencia e se destina ao transcendente, para além da imanência da agência. E, não podemos esquecer que, por ser a ética derivada da consciência (ou inconsciência) coletiva, ela também é intencionalidade, mesmo que de forma subvertida.

Em síntese, a moral fica alocada como matéria-prima desta intencionalidade individual e coletiva. A ética fica como o valor resultante desejado da ação intencional e racional, o produto final do melhor agir. A ética, por sua vez, como resultado das ações, retroalimentará o que se chama de moral a alterar as representações mentais e juízos do sujeito, em uma simbiose dialética em que a intencionalidade passa a assumir um papel relevante e ativo frente aos estados emocionais oriundos dos juízos acerca das representações mentais do agente, a estimulá-lo ou a reprimi-lo. É uma função extremamente dinâmica e profundamente simbiótica, como causação imanente.

Com base na ação humana individual é possível questionar se existe uma função da intencionalidade ética que seja natural – e que tenha como propósito ultrapassar os limitados sistemas de crenças, desejos e vontades que definem a ética[7].

Assim, podemos abordar questões como “existe uma ética ‘universal’ possível?” ou “seria possível construir uma ética consensual ‘universal’?” ou “como proporcionar a adesão voluntária a um sistema ético ‘universal’?” ou “a ética pode ser realmente autônoma ao sistema vigente?”. Universal, aqui, a considerar que seja viável tal conceito, o que contestamos em diversas outras publicações. Mas, para efeito argumentativo, deixemos assim.

 

 

A Estrutura da Intencionalidade

Para Brentano, os estados mentais estão categorizados em três instâncias integradas e sequenciais: as representações mentais, os juízos e as emoções.

Assim, as representações mentais se fazem presente reificando as ações da consciência. Tais representações mentais são confrontadas com os juízos e que resultarão em emoções, como os desejos, crenças ou vontades, por exemplo. Este é o processo descritivo e muito simplificado da intencionalidade.

O importante é perceber que a intencionalidade a que se refere este objeto (ou ação) está acima da linguagem – e é precedente a esta. Isso permite que animais possam, assim, ter algum grau de intencionalidade[8]. Bem como uma criança recém-nascida, desprovida da comunicação verbal. A diferença estaria na complexidade das intencionalidades, e apenas nisto. E assim é possível determinar a possibilidade tanto da rudimentar “intencionalidade animal” quanto da complexa “intencionalidade ética” de um humano adulto.

Se ter consciência de algo independe da linguagem, ter consciência de si (consciência da consciência) é algo inato, mesmo por que a linguagem que será adquirida é ambígua, na maioria das vezes, pois possui um sentido e uma referência, nem sempre coincidentes. Possuem as formalidades escritas e as informalidades convencionadas de um grupo[9], para além da simples significação e que expressam um acordo informal regulador bem presente e influente nos comportamentos, pois estabelece uma forma de pacto entre os membros que se comunicam. E isto é relevante nesta argumentação.

 

 

A Estrutura Simplificada da Ação Humana

Toda ação consciente é sempre precedida de intencionalidade e esta, por sua vez, é precedida ou constituída por crenças, desejos e vontades. O não agir também contém intencionalidade, se filosoficamente abordado, pois o não agir é o agir pela manutenção de algum status quo, pela continuidade deste status vigente. A ação se dá na instanciação do próprio devir.

É preciso verificar conceitualmente alguns destes constituintes da ação humana, a considerar a existência de algum grau[10] de livre-arbítrio. E minha proposta será realizar isto a partir de uma leitura de Slavoj Žižek, que por sua vez adota uma hermenêutica “hegel-lacaniana”.

Por isso, abordarei antes os conceitos de crenças, desejos, vontades e, por fim, a intencionalidade humana.

 

 

As crenças e os desejos – uma profunda simbiose

A crença é basilar na questão existencial. Um animal, à mínima alteração do ambiente, acredita que existam predadores que irão lhe atentar a vida e se coloca em alerta. Uma crença que vem do seu instinto inato de sobrevivência: um condicionamento determinístico em que o mesmo não consegue (nem tenta) contrariar.

As crenças têm correlação última com a permanência vital, ou seja a sobrevivência dada pelo afastamento da possibilidade do risco da morte, que por sua vez tem vínculo com o desejo de continuidade que surge nas relações existentes, em suas amplas formas de manifestação – seja pela busca de um senso de segurança, de conforto ou prazer, ou mesmo pelo artifício de continuidade genética, dado pela reprodução. Crenças e desejos podem ser (e são) distintos estados emocionais, nunca facilmente dissociados, entranhados como se fosse uma única potência.

Os humanos evoluídos desde sua ancestralidade animalizada e tida como irracional ainda possuem algum grau instintivo que se reflete em crenças que fogem do risco de morte e que buscam o sentido da sobrevivência. O corpo que percebe um risco letal reage com uma descarga instantânea de adrenalina que dá força para uma fuga ou enfrentamento da situação interpretada como de risco, como se desligasse as funções racionais e emergisse o “animal” ainda vivo do homem rudimentar. O medo vem das crenças na morte, na limitação temporal que existe e que comprime o indivíduo à paralisação, o que é a impossibilidade, a repulsante impossibilidade. Eis que a pulsão da morte descrita por Freud é necessária para que a pulsão da vida seja possível. Um antagonismo de pulsões a coexistir e a movimentar o homem dialético, sempre a repulsar a morte e a finitude, em suas diferentes dimensões espaciotemporais.

A destruição de algo é necessária à manutenção do sujeito – as relações caçador e coletor ambas levam à destruição de algo, em última instância, para a alimentação humana. O antagonismo entre a racionalidade humana e o animalismo ancestral é uma realidade no homem finito, limitado e que acredita ser superior, já pelo ego formado a partir destas pulsões. Deste processo individual, o homem verificou ser necessária a formação de parcerias, da vida em comunidade, para que suas pulsões de sobrevivência e prazer fossem saciadas, ainda de parcialmente. As chances de sobrevivência no coletivo[11] são superiores ao individualismo solipsista ou niilista.

O homem se faz social pelos seus medos mais viscerais e seus desejos mais obscenos.

Portanto, as crenças, mesmo as complexas como o patriotismo, religião, política ou acerca de Deus trazem à superfície a questão de sobrevivência, pois remetem à necessidade de manutenção da segurança e satisfação por permitirem ao sujeito continuar em determinados grupos com os quais se identifica conectado e, portanto, seguro e livre para o “gozo máximo”.

Romper com os vínculos sociais é algo impensável para a maioria esmagadora que prefere, tal como Zaratustra, descer das montanhas a ficar na solidão da sabedoria em pura contemplação do nada. O humano precisa de “testemunhas” para se afirmar, como veremos em breve ao abordarmos o espaço simbólico, e isto acarreta a necessidade de um outro ente externo a si, que não só testemunhará como direcionará suas ações de forma especular.

As crenças quando prioritárias na ação humana levam ao condicionamento da ação, ou do comportamento fundamentalista – e revela um homem pouco racional. Se há fome, se come. Se há sede, se bebe. Quando se age como um autômato, a responder determinados estímulos. O estado emocional mais determinante das crenças é o medo, justamente este advindo da impossibilidade especulativa da sobrevivência ou da permanência.

Sobre os desejos, parte majoritária das pulsões vitais, quando excessivos, determinam uma espécie de antecipação irracional pelas crenças do prazer iminente, e geram os vícios, por exemplo, que escravizam o agente em ações irracionais em busca deste prazer cada vez menos intenso.  As culpas são formadas a partir destes estados emocionais desajustados, a partir de uma instância da realidade externa do sujeito – a crueldade da realidade. Se há fome, por que não desejar o que o outro possui, pois parece que é algo melhor do que possuo. A inveja[12] se origina, e não só ela. Pelos desejos, surge a inveja. Pela inveja, surge a ambição e o ato de subtração do alheio, a ameaça que passa a representar o ambicioso e o invejoso. Daí, são necessárias instâncias superiores que delimitarão as ações, e estamos a perceber o sentido de necessdade das regras e das formas de justiças. Há que se ter potência, ou poder, ou vontade.

 

O que seria, então, a vontade de um sujeito?

Pode-se ter crença em algo, desejo por este algo, mas não haver forças para o agir. A questão da vontade seria colocada em uma instância mais complexa do que as crenças e os desejos. A vontade tem profundas correlações com a racionalidade e a identidade do sujeito dentro de determinada localização espaço temporal, relacional, mais precisamente dentro de uma comunidade. É a identidade psicológica, portanto, a emergir e a tentar se adequar socialmente.

Mas, entre esta identidade psicológica do sujeito e o espaço simbólico em que ele está inserido há um abismo a separar. O sujeito adentra ao espaço simbólico não como ele mesmo, mas como uma representação de si. Não poderia estar “como ele” é originariamente, pois suas crenças e desejos nunca estarão completamente alinhadas com o espaço simbólico construído. Não há, de facto, nenhum tipo de universalidade pura e genuína – nem mesmo há alguma universalidade possível. O sujeito então se apresenta com uma máscara e assume um título simbólico em uma universalidade simbólicamente construída e incompleta, sempre criada pelas mentes humanas que a constroem como a dimensão do possível, a abrigar todas as possibilidades e a isolar todas as impossibilidades. O indivíduo passa a agir de acordo com esta personagem que passa a representar, nesta dimensão do possível. Surpreendentemente isto não traz lhe fraqueza, pelo contrário, o fortalece e o estimula a continuar a representar e a aperfeiçoar esta personagem. E, quanto mais forte, mais consegue se isolar do impossível – e crê que nisto está sua realização, sua completude e felicidade.

O poder que é adquirido vem do desejo – das relações de poder. Este desejo humano é essencialmente o desejo do outro. Um desejo que pode ser pelo outro em si, pelo desejo de ser desejado pelo outro ou mesmo um desejo pelo que o outro deseja.

O desejo nunca é introspetivo, pois é sempre uma projeção, pela falta de algo, pela diferença percebida. Este confronto com o outro gera a necessidade de conexão, de posse ou apreensão, e surge uma identidade diferenciada que busca a dominação. O ser dominante é aquele que provê, que oferece segurança, que se sobrepõe ao resto do “bando”. Essa dominação ou a necessidade de ser diferente, de se destacar[13] que leva à individuação, à formação do ego, do self.

O capitalismo, desta forma, é perfeito para este sistema de forças em que o consumo passa a ser uma espécie de fetiche, no qual o produto em si não é apenas um produto, como identificou Karl Marx[14]. Isto é oriundo deste desejo humano que, sem limites coercitivos superiores, leva invariavelmente à irracionalidade da ação e que fez com que a inveja fosse a grande fundadora da justiça. Pois sem a justiça, através das coerções e punições, as sociedades ruiriam apenas pela inveja tornada ação, deste desejo irracional e intenso do homem em relação ao próprio desejo de desejar. A vontade, afinal, é em última instância o quantum energético-emocional a ser desprendido para atingir os desejos e satisfazer as crenças. Se a justiça precede a ética, enquanto formalização deontológica (ou mesmo distributiva), já podemos perceber a instância limitada e dependente da ética ao ente exterior – e superior – que a instanciará.

Desta vontade superior, da conexão relacional entre os indivíduos (enquanto personagens), surge um sistema de crenças compartilhado e desejos comuns que são projetados e criam um ente externo a todos e que assume uma dimensão credível, quase tangível. O que seria isto?

Jacques Lacan chamou de o “grande outro”. Sigmund Freud chamou de “super eu”. Este grande outro não existe fora da comunidade. Existe apenas para quem o faz existir. Deus, por exemplo, assume para determinadas comunidades uma faceta única que é exclusivamente aceita e compartilhada pelos membros. Outras conceções distintas de deus podem (e são) formadas por outras comunidades que o sustentam ideologicamente. Caso todos deixem de acreditar, o grande outro deixa de existir. Se apenas alguns acreditam, o grande outro se enfraquece e se dissolve. Mas o fato é que este grande outro assume sempre uma função superior, como se tomasse vida própria e passasse a dominar e fundamentar as ações do ser. Percebemos bem a vastidão de uma abordagem lacaniana nas questões éticas contemporâneas.

Não só deus, mas o capitalismo, os sentidos de nação, de patriotismo, de povo, de padrão de comportamento formam diferentes instâncias macro e micro de composição de grande outro. Quais as instâncias superiores de grande outro?

Antes poderíamos pensar que os poderes político e religioso deveriam ser o máximo expoente do poder do grande outro. Atualmente o capital[15] pode estar muito bem no primeiro posto de máxima instância do grande outro – a que podemos apelidar de “sistema”. O sistema está acima das opções éticas majoritárias, de forma impenetrável e com distância abissal das possibilidades de entendimento pleno. Como definir e normatizar o capital, ou mesmo deus? Seria o capital o novo deus no terceiro milênio? Ou seria o capital a forma de deus se materializar? Os caminhos são muitos para serem interpretados, mas o poder que emana destas representações são incontestáveis, caso existam de facto como entes ou mesmo sejam apenas devaneios coletivos mentais.

Eis um exemplo. São clássicas as problematizações teóricas sobre trens que se movem descontroladamente e que o decisor (nunca um filósofo[16], por bem) precisa agir ou causar a morte para um grupo x de pessoas ou de único indivíduo. As discussões eram hipotéticas, até recentemente.

As grandes corporações estão a desenvolver veículos autônomos em que a inteligência artificial seja responsável pela condução do mesmo e vem a questão, prática, real, do que esta inteligência decidirá quando precisar escolher qual dano letal fará a algum ser vivo. As comissões éticas (todas sustentadas pelas próprias corporações, embora se digam autônomas e realmente éticas) estão a discutir acaloradamente este problema.

Obviamente, para um entendimento isento, alheio ao sistema, isto por si só já expõe a submissão ao sistema, ao capital, ao macro grande outro. A decisão mais sensata seria: não construa! Aborte o projeto assassino! Mantenhamos a vida e os empregos!

Por que deveríamos construir algo que terá potencial de tirar a vida humana? Tão simples quanto isso. Ao se construirem veículos autônomos terá não só esta questão impossível de se responder eticamente, além da própria eliminação de postos de trabalhos que agravam ainda mais o frágil sistema social em que vivemos. De forma surpreendente, esta opção de não construir sequer existe. O sistema não permite obstáculos à sua expansão e domínio, pois busca a maximização de tudo o que é “bom”. E é preciso perceber isto melhor, antes de tudo: o que é o bom? Eis a questão que será necessário se perceber, logo que possível.

O sistema precisa sempre progredir e os agentes atuam de acordo com este grande outro, são dominados. Assim funcionam os fundamentalismos religiosos e políticos, os corporativismos profissionais, os nacionalismos, as identidades de gênero, e todas as projeções que instanciam coletivamente este (ou estes) “grande outro”.

E dentro desta ideologia estamos obrigatoriamente todos inseridos, e sem termos condições de sairmos dela. A impossibilidade fora dela é total, e não a queremos, pois queremos apenas o possível. E, pelo possível, fazemos tudo. Se estamos todos dentro desta ideologia, estarão também nossas ações e intencionalidades. O grande outro possui sua própria instância de intencionalidade, como visto. A ética, portanto, fica submissa a esta projeção coletiva ideológica, inserida no espaço simbólico coletivo. Portanto, para se colocar a ética como suspeição requer, antes de tudo, colocar o grande outro também na condição de suspeição.

Pois é plenamente possível que mesmo a ética possa ser um elemento de dominação e controlo na qual o sistema se sobreponha “legitimamente” à própria humanidade. Ainda que isso vá contra os que creem na ética como uma instância quase sublime ou religiosa, devocional, é preciso perceber que a suspeição se faz necessária, sempre, nestas abordagens.

O sistema não para de evoluir, de se transformar e de ampliar suas teias de dominação. Precismos fazer novas questões acerca de tudo, pois as respostas que temos tido não são suficientes, nem úteis, muitas das vezes. O que será do futuro? Estamos em uma posição hegeliana de apenas interpretar a história ou adotamos uma posição em que seja possível transformar o mundo? A interpassividade[17] se faz presente, pois antes dela a passividade passou a ser uma imposição do que seja o bom, o seguro e o otimizado: o indivíduo feliz é aquele pacífico e recatado, talvez do lar. Mas há sempre as consequências, pois tudo se conecta no movimento, nos desdobramentos.

Há um limite para o capitalismo, menos veloz do que seus efeitos. Atualmente a alta produtividade deixa à mercê uma população realmente inativa, sem alocação na cadeia produtiva, ainda que possamos usar eufemismos como “em situação de inatividade”, o resultado é realmente o mesmo e o medo do futuro é pulsante, denso. Nem seriam precisos eufemismos pois as pessoas não são culpadas diretamente por suas situações, pois poucas chances possuem de reverter este isolamento compulsório – e mesmo que fossem todos extremamente qualificados por algum ente, as alocações produtivas não lhe são suficientes. São condenadas à marginalidade e a prova é a base estatística entre crescimento vegetativo populacional e criação de postos de trabalho.

Uma parcela da população está condenada a esta marginalização: a concentração de riquezas está quase irreversível e a se ampliar cada vez mais; o poder político, com o legislativo seduzido (ou comprado) pelo lobby legalizado; o executivo que foi “adquirido” pelo capital e que no cenário atual assume a missão de controlar o judiciário – um vislumbre em que o pessimismo facilmente poderá tomar conta de quaisquer previsões.

Quais chances tem a Ética, como ente possível de, ao menos, criar resistências? Ou está a Ética travestida de agente de controlo e conformidade para a perpetuação do sistema? A loba a se revelar em pele de cordeira?

 

 

O Espaço Simbólico

As pessoas não querem o conhecimento, mas sim as certezas, como deduziu Bertrand Russell. E eis que a realidade nem sempre emerge como uma busca voluntária, mas a partir das fissuras oriundas das inconsistências estruturais da ordem simbólica.

A ordem simbólica incorpora as regras formais da sociedade. E também as informais, como as constituições não escritas, mas incorporadas pela linguagem e atos. Esta ordem simbólica é formada pela coletividade. E só existe enquanto ela a sustenta. Ao ruir a ordem simbólica, tudo ruirá ao redor, e uma espécie de caos se instalará, na ausência de outra ordem a substituir a anterior. Mas nunca há ausência, mas sim substituição de simbolismos – e geralmente é a mesma coisa, apenas travestida de forma diferente, como as revoluções comunistas, por exemplo. Sem ordem simbólica, não existe a referência de humanidade tal como conhecemos.

Este espaço simbólico envolve o sujeito que passa a agir de acordo com os preceitos deste grande outro. Não só age como justifica suas ações pelos desejos ocultos desta entidade superior. Assim, pode exercer seu direito ao gozo sem remorso ou culpa, até os mais obscenos, como matar pelo Estado ou mesmo por Deus, pois age não só autorizado, mas justificado de sua missão nobre.

Constrói carros autônomos que matarão semelhantes pois o sistema assim exige, e fará parecer ou apenas prometer que estatisticamente as perdas serão menores (e todas justificadas eticamente, pelas comissões que validaram as decisões dos algoritmos), argumenta, no mais puro utilitarismo que podemos presenciar. Este grande outro está sempre presente e a individualidade é sublimada.

O grande outro pode ser tão perverso que o sujeito é levado a agir como se fosse realmente livre, como se as opções tomadas contra si e sua própria comunidade fossem mesmo suas. Fazer o mal é meramente um lamentável erro de cálculo, que nunca poderia ser considerado um ato culpável. Assim, o prazer fica posto como uma obrigação.

 

Conclusão: Há uma “intencionalidade naturalmente ética” nas ações humanas?

O prazer forçoso imposto ao sujeito também coloca a Ética como suspeição, pois coloca o gozo como uma forma de dever ético. Algo que projeta com os desejos individuais e retorna, reificado, como uma determinação superior.

“Seize the day”, “carpe diem”, “hakuna matata”, “just do it”, “estou a serviço de Deus[18]”, “keep walking”, “ninguém é de ninguém” conforme o meio em que esteja inserido são a tônica da obscenidade comportamental insana em busca do gozo supremo, não importa lá a que custo ao próximo que se coloca distante do grande outro.

Não seria de se espantar que a depressão, considerada o mal do século, ataca mais impiedosamente aqueles em que estão na esfera mais privilegiada[19] da sociedade. A culpa da contemporaneidade não vem daquele que consegue aproveitar a vida ao máximo, obscenamente sem limites, mas sim daquele que não consegue aproveitar tudo que está à sua disposição.

Talvez ao tentar ter um pouco de vida privada, sem a exposição compulsória a que é submetido, o sujeito se diminui e se deprime pelo choque com a realidade que lhe abate o ânimo. O “ter” passou a ser um castigo aprisionador e sufocante, afinal o suposto possuidor é o verdadeiro possuído, o sujeito reificado dentro da própria ideologia. O “ser”, já não existe como antes, pela quase privação à vida interior e o “expor-se” compulsivamente às redes sociais que nos revelam como alguém artificialmente construídos.

Se este grande outro é que permite e “obriga”[20] ao máximo proveito, seria equivocado dizer que sem ele tudo seria permitido e o caos reinaria. Ao contrário, sem ele nada extremo seria permitido, pois é ele quem valida a ação humana extrema, que não só mostra, como abriga em seu cerne, a ética que leva invariavelmente a algum tipo de fundamentalismo.

Mesmo as causas nobres, filantrópicas, ecológicas e relevantes (não só à condição humana, mas também ao próprio sentido da humanidade) são reificadas. Ao adquirir um produto dito “ecológico” ou “sustentável”, termos que já viraram commodities, o consumidor, em nome de determinado e obsceno pendor ético já paga pela sua redenção – e a redenção deveria ser posterior à culpabilização, mas já se antecipa o pagamento antes de a dívida estar realizada. O sistema é suficientemente sagaz para lidar com suas próprias vulnerabilidades. O sujeito compra também a ilusão (gozo) até consciente de estar redimido por contribuir, sem culpa alguma advinda da irracionalidade excessiva de consumo que está a devastar os recursos naturais do planeta. Daí surge o consumo “sustentável”.

A ética, portanto, fica vinculada ao grande outro. A questão de uma ética universal, ou máxima, de acordo com Adela Cortina, fica longe de uma autonomia necessária que reflete uma equidade imprescindível. É a inviabilidade das teorias de John Rawls[21] pela incapacidade da própria natureza humana de desejar o próprio desejar e, com isto, invejar e agir, ao ponto de ser necessária a constante coerção e a punição da justiça e de seus agentes. Uma ética mínima, na contemporaneidade, é possível, mas não totalmente universalizável. Ou não provável de se estabelecer e se manter, por assim dizer.

A intencionalidade assume uma questão mais ainda central, pois como o exercício das capacidades racionais do homem, inserido em determinada comunidade afim ao uso racional e consciente desta intencionalidade, às instâncias filosóficas e lógicas do agir, será possível, mas também não provável, uma ética consistente e de acordo com as diferenças entre os sujeitos, a propiciar uma forma de vida quase utópica, frente à realidade dos dias atuais.

Longe de ser uma leitura pessimista acerca da Ética e do futuro da humanidade, a busca pelas fissuras de nossa sociedade é a forma de encontro com a realidade que nos evoca a algum tipo de ação realmente redentora da nossa própria “predestinação”. A Filosofia Moral se constitui, ainda, um refúgio imprescindível à depuração das ideologias e ao amadurecimento da consciência humana em busca de elucidar caminhos para uma autonomia necessária à ampliação do quantum de livre-arbítrio proporcionado pela intencionalidade racional, frente ao determinismo ideológico irracional comum a todos presos à animalidade ancestral, mas não para sempre.

 

Bibliografia: Há uma “intencionalidade naturalmente ética” nas ações humanas?

Brentano, Franz, The true and the evident, Taylor & Francis e-Library, 2009.

Brentano, Franz, The Foundation and Construction of Ethics, Taylor & Francis e-Library, 2009.

Vieira, António Bracinha, Etologia e Ciências Humanas, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Vila da Maia, Portugal, 1983.

Žižek, Slavoj, Violência, Boitempo, 2014.

Žižek, Slavoj (org), Um mapa da Ideologia, Contratempo, 1994.

Žižek, Slavoj, How to read Lacan, Granta Books, Londres, Inglaterra, 2006.

 

 

Recursos Audiovisuais: Há uma “intencionalidade naturalmente ética” nas ações humanas?

Yassin, Nuseir, Nas Daily, “Por que não como carne de porco?” – Página Nas Daily em Português, Facebook, 2020. https://fb.watch/544cuUVIal/


 

Notas: Há uma “intencionalidade naturalmente ética” nas ações humanas?

[1] Yassin, Nuseir “Nas Daily”, “Por que não como carne de porco?”.

[2] O fundamentalista seria aquele que não apenas crê, mas que “sabe” diretamente, como se o saber estivesse a ser atestado diretamente em uma fonte transcendental superior. Este saber legítimo, privilegiado e incontestável é apresentado de forma que a mera crença não se faz mais necessária, pois a adesão ao saber é inabalável.

[3] Considero que a compreensão da ação humana seja o principal ponto relevante para a Filosofia Moral ou Ética. Pois a ação é a materialização de uma série de gatilhos e que resultarão em algo com significado ético e/ou moral, ou não. A própria Filosofia, ou a simples busca pelo saber, é uma ação humana que incorpora crenças, desejos, vontades e uma intencionalidade claramente definida em obter respostas que levarão a algum objeto de desejo intangível além da própria individualidade.

[4] A proposta primeira deste texto não é apresentar ou defender nenhum tipo de ética que nos foi proposta, desde Aristóteles, mas sim revelar questões que colocam a Ética e a Moral como dependentes de fatores se não alheios às mesmas, ao menos estranhos para uma análise definitiva sobre o tema.

[5] Esta é uma definição que está afim com os conceitos em que Adela Cortina (Ética Mínima, Cap. II, 2006, e-book) propõe uma correlação da moral com a linguagem (que entendo por motivos do conteúdo subjetivo implícito nesta) e da ética com a metalinguagem (em que os questionamentos racionais se fazem presentes, como que em busca de uma “intencionalidade coletiva” cada vez mais apurada e consciente).

[6] Estímulos capazes de mudar o sistema de crenças é facilmente verificado em estados alterados de consciência pelas experimentações das paixões, por exemplo, quando dos fanatismos religiosos ou mesmo experiências de relacionamento arrebatadoras, que modificam ainda que momentaneamente as ações do sujeito.

[7] Seja pela noção de “dever universal” kantiano ou mesmo pelo “utilitarismo”, além de outras abordagens que fundamentam a Filosofia Moral, a questão imprescindível da racionalidade como parte causal da ação humana é universal no pensamento filosófico. O sujeito racional é um dos objetos de estudo, portanto.

[8] A Etologia corrobora que existam os “movimentos de intenção” nos animais, ou seja, a “intencionalidade animal” está inserida no próprio ato em andamento e na linguagem expressa: “os movimentos de intenção podem ritualizar-se a passar a intervir na comunicação intraespecífica.” (Vieira, 514).

[9] Se os fenómenos do psiquismo humano são sempre referentes às representações mentais, a produzir um conteúdo consciencial, este, por sua vez, é estabelecido nas convenções de linguagem subliminar de um grupo.

[10] A partir do antagonismo radical entre livre-arbítrio e determinismo, opto por adotar a possibilidade intermediária de existência de livre-arbítrio quando ações dotadas de grau considerável de intencionalidade ocorram, a partir de decisões racionais que antecedam à ação, embora reconheça a impossibilidade de mensuração ou pureza de tais questões isoladamente, para além de uma premissa a priori desta possibilidade. Todavia, por não ter crença completa nem no determinismo radical, nem no livre-arbítrio radical (tal como pela animalidade irracional presente no “humano, demasiadamente humano”), esta situação alternativa se mostra não apenas viável e factível, mas também como fértil campo para o exercício filosófico.

[11] Fazer parte de uma tribo com outros noventa e nove membros é ter um porcento de chance de perecer em função de um ataque de predador, enquanto a sós a probabilidade da morte seria integral. A vantagem da vida em sociedade tem seu preço, que também é o estabelecimento de limites entre os estados emocionais próprios com os da coletividade, além de complexas convenções que se estabelecerão em uma teia conflituosa de relações. Ainda assim, milhões de anos de convivência social humana se traduzem em conflitos ainda não superados integralmente, tal qual a complexidade destas relações e a impossibilidade de uma paz.

[12] A inveja é, portanto, a origem da justiça. Pois o ato de agir pelo desejo do que o outro tem ou é levou às ações arbitrárias, que no passado culminou em princípios de justiça como os de Talião (dente por dente, olho por olho) e mais adiante o severo Código de Justiça escrito pelo Rei Hamurabi, a cerca de quatro milênios. Obviamente que a justiça evoluiu tanto quanto a sociedade e suas funções são mais sofisticadas e com menor grau de inflexibilidade, ao acreditar na reeducação do homem pela punição correcional, por exemplo. Mas, ainda, todos os crimes que se praticam possuem ao menos um dos três componentes: sexo, dinheiro e/ou poder. Sexo como símbolo dos desejos. Dinheiro como símbolo das crenças/sobrevivência. Poder como símbolo do ego/autoafirmação e dominação do próximo. Como escreveu Gilles Lipovetsky: “O indivíduo contemporâneo não é mais egoísta do que outrora, apenas exprime, sem rodeios, a prioridade individualista das suas escolhas”.

[13] Biologicamente percebemos isto (de forma rudimentar) também nos animais, em que o exibicionismo é realizado para se elevar frente aos outros da espécie e atrair os(as) melhores parceiros(as) para procriação.

[14] Em O Capital, volume I, Karl Marx discorreu sobre este conceito como o “fetichismo da mercadoria”.

[15] Estatisticamente, há um claro decaimento religioso nos países mais ricos e desenvolvidos. As grandes corporações passaram a assumir um papel não só influenciador como manipulador das questões políticas, como por exemplo nos casos da Cambridge Analytica nas eleições presidenciais norte-americanas, no Brexit e outros casos relevantes.

[16] Possuo uma teoria em que as decisões não fazem parte da essência filosófica e talvez seja esta a razão para que as comissões de ética contemporâneas prescindam cada vez mais dos filósofos, pois sempre há um retorno destes para uma nova verificação e retro análise constante, a retroagirem incessantemente o processo investigativo, sem nunca chegar a uma conclusão para uma ação final. Talvez por tal razão a Filosofia pouco esteja comprometida com este grande outro, e ainda seja um refúgio para pensamento da realidade.

[17] A interpassividade seria a delegação total da atividade para um terceiro, de forma estrutural e comum a todos os sujeitos da comunidade. Ou seja, convencionalmente instituída, aceita e incentivada. Podemos perceber o que seria a interpassividade como quem não vive a experiência em si, como contratar em um funeral as antigas “carpideiras” que chorariam aos pés do defunto, no velório, enquanto todos os outros interagem, redimidos, sobre temas diversos, alheios à própria cerimônia fúnebre. Ao residir na Tailândia, ao visitar templos budistas (e foram incontáveis) pude observar que havia algumas árvores artificiais que eram dispostas para receber as orações escritas em um pedaço de papel. Ora, bastava escrever o petitório, afixar na árvore e ela faria todo o resto. Libertador para quem não crê muito nas divindades, mas quer agir de acordo com as convenções. A interpassividade é, em última instância, o contrário da “astúcia da razão”, de Hegel, na qual um sujeito é ativo através de outro. Neste caso, passivo através de outro, e liberto para gozar dos prazeres que lhe são impostos.

[18] Jake e Elwood, personagens no filme “The Blues Brothers”, 1980, interpretados respetivamente por John Belushi e Dan Aykroyd agem nas mais absurdas aventuras, nem sempre “éticas” ou “morais”, para salvarem um orfanato da ruína, a justificarem suas ações por estarem a agir em nome de Deus. Obviamente que existem exemplos mais impactantes do que este, como nos casos de terrorismo ou mesmo violências familiares, mas sempre será melhor pensarmos nas sutilezas cômicas deste filme como algo suficiente para exemplificar o exposto.

[19] Mera especulação, embora coerente, mas sem embasamento estatístico e suficiente em termos confiáveis acadêmicos, e sim alguma leitura de artigos de Psicologia Cognitiva que abordam este “facto” recorrentemente.

[20] Antes mesmo de Hannah Arendt, Stanley Millgram demonstrou, em laboratório, sobre a ação deste “grande outro” ao estabelecer um instrumento de poder em que voluntários aplicavam, realisticamente iludidos, um choque elétrico naqueles que davam respostas erradas. O sadismo das pessoas floresceu pelo gozo da ação (muitos demonstravam claramente prazer em punir), na maioria, e o questionamento ético foi realizado por muito poucos. Ao serem questionados por que razão executaram os castigos, a resposta foi única, tal qual as dos nazistas (como, por exemplo, Adolf Eichmann): “- Fiz por que executava ordens. Estava a cumprir com minhas obrigações”. E assim ainda caminha a humanidade, sem tirar nem por mais nada. Algo demasiadamente humano, afinal. Pois a verdadeira crença não se correlaciona à factualidade contextual e sim a uma dimensão incondicional de um compromisso ético profundo com esta entidade externa e superior ao sujeito cocriador.

[21] Em Uma Teoria da Justiça, 1971, respetivamente às igualdades democráticas, com os princípios da diferença e da oportunidade justa.

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