A boneca mortal do Squid Games
Antropologia Estrutura & Ocupação Ética Filosóficos

O jogo estrutural da vida feat. Squid Games

Introdução

Urge no jogo da vida que a Filosofia, especialmente a Ética, mais do que antes, adentre, acompanhada das outras ciências afins, ao deserto minado da realidade para decifrar os factos e números que “gritam” para serem percebidos como são, realmente, sem véus, ainda não totalmente retirados.

No deserto hostil e angustiante da realidade, estão expostas todas as crises que, para o bem da verdade, sempre existiram, tanto quanto existe a sociedade humana, mas agora com uma das mais novas e “promissoras” hecatombes providenciais, que atualmente denominamos de crise humanitária, que expõe tais dados, factos e questões indecifradas à crescente parcela humana desprovida de quaisquer possibilidades. Os números, afinal, ainda não nos mentem.

Tal desprovimento das possibilidades, supracitadas, são as “mesmíssimas” que Rawls classificou como bens primários[1]. As crises[2], que sempre foram ingredientes da reprodução capitalista, continuarão funcionais? Haverá algum ponto de rutura? Um ponto de não-retorno?

Já se está a perceber, e a caminho de ser incontestavelmente aceito como facto evidente, de que o sistema em que vivemos, ao menos na dimensão econômica (e projeções), já não está a comportar[3] a todos, enquanto seres produtivos e devidamente encaixados socialmente. Ao nível mínimo de ocupação e emprego, já existe para muitos a falta de meios próprios para sustento, manutenção e obtenção produtiva de renda. Esta constatação é dada pela frieza e sinceridade angustiante das estatísticas, ainda mais pessimista se aliadas às previsões dos cenários da automação, progressos exponenciais na inteligência artificial e produtividade, com consequente minimização ou anulação completa de trabalhos ditos básicos e/ou não-qualificados, que antes absorviam e empregavam as massas trabalhadoras.

A discussão de formas de obtenção de renda mínima universal e políticas (fracassadas) de reinserção, para além do colapso provável dos sistemas de segurança social, é o atestado de que os números não são sazonais, mas tendenciais e a se consolidarem progressivamente. As possibilidades, antes universais, poderiam ser mesmo prováveis aos que se esforçavam e se enquadravam no sistema. O que se percebe agora é que tais possibilidades, cada vez mais restritivas e apenas disponíveis para pequenas parcelas, nada universais, são ainda assim improváveis. São quase uma mentira, mas ainda necessária à manutenção da ordem simbólica.

Toda a conceção de justiça, anterior, estava baseada na distribuição, o mais equitativa possível, destas possibilidades, a perceber como possível (e provável) a distribuição de riquezas a quem fosse merecedor. Hoje, a improbabilidade da equidade, que não se deixa mais ocultar, leva ao questionamento sobre quais bases ainda estarão fundados os ideais de justiça, ou apenas sonhos de alguma equidade, das “possibilidades impossíveis” a todos, face à realidade fria dos números e dos factos. Até quando se poderá prometer uma mentira? Essa é uma questão que precisa ser feita, pois a manutenção de toda a ordem social, e de qualquer nação, portanto, está sempre calcada por uma ideologia. E as ideologias são, basicamente, crenças e desejos provocados e compartilhados. E a mentira, sempre, nalgum dia, acaba por se revelar. A questão não é como isto ocorrerá, mas sim quando teremos a rutura da ideologia vigente! E o que virá a seguir?

O falhanço do atual sistema já é realidade evidente para os marginalizados e desalocados[4] da estrutura produtiva e consumista. Todavia, este falhanço é ainda ignorado (conscientemente) por aqueles que defendem a viabilidade da iniciativa individual como diferencial para ascender ao topo da estrutura, na mais pura e obscena meritocracia, como se a vida fosse mesmo um jogo e as regras (e condições) fossem iguais para todos. A “subida” de um implicará na “descida” de outro: os “lugares” não são apenas limitados, mas estão decrescentes e irregularmente distribuídos (que nos digam os movimentos migratórios).

Por isso, provoco esta análise ao assumir, cinicamente[5], o jogo da meritocracia como ainda justo e possível, verdadeiro e válido, como alguém que também o jogou, na vida real, nas diversas posições em que as estruturas podem oferecer possibilidades que levam sempre à adesão dos jogadores, atraídos pelos prêmios que já não lhes são tão possíveis quanto antes.

(1 – Eis o jogo da vida…)

 

Parte I | O Jogo da Vida

Há um nascimento. Há uma morte. Em meio a isso, há o ser no mundo, o ente, o sujeito, o indivíduo ou ainda o cidadão, de algures, ou nenhures. Mas, o facto, é que há o “há”. E o existir é o ponto de partida para o jogo da vida. O ser existente precisa de nutrição, hidratação e oxigênio. Precisa de abrigo, de proteção contra os riscos e agressões diversas, de cuidados e manutenção da saúde. Precisa de afeto. Precisa do último modelo de telemóvel, do melhor veículo automotivo e da mais destacada posição em sua comunidade. Precisa de morar no melhor bairro e com todas as facilidades à porta. Precisa de serviçais à disposição, dia e noite. Precisa viajar para lugares paradisíacos e comer nos melhores restaurantes estrelados. Precisa.

Mas, o que difere, acima descrito, lato sensu, o que é realmente essencial, atualmente, para o ser que está sempre a precisar, de mais e mais? Qual o verdadeiro nível da mínima saciedade humana em nossa conceção de sociedade? O que se sabe, talvez, não é o que se pressupõe saber com o artifício do véu de ignorância. Não é tão objetivo assim. O essencial, o básico, o imprescindível se refere ao nível mínimo de sobrevivência. Mas, ainda assim, o básico “ideologizado” está muito distante disso, pois ninguém quer apenas sobreviver, mas sim viver, em sua máxima expressão, com o máximo gozo que é prometido ser possível. O consumo é o mote da sociedade contemporânea e o indivíduo não é tão autônomo quanto se imagina ser.

Eis que o “jogo” que se está a jogar – o jogo da vida – apresenta suas inúmeras regras e complexidades. E há os prêmios, afinal, que estão claramente prometidos aos vencedores: os gozos em sua máxima expressão. Aos perdedores, todavia, não são lhe dadas informações[6] precisas sobre o que os aguarda, na amargura da derrota.

Esta perceção de similitude entre a ideologia e o social gamification da vida despertou, em mim, o interesse (também lúdico, pela indigestão que o tema causa) em adotar como modelo organizacional de sociedade e de justiça, em análise crítica às teorias de Rawls, a obra Squid Game, o seriado mais popular, até o momento, da Netflix e que causou comoção mundial ao ponto de muitas formas de reprodução[7] deste jogo estarem a ser replicadas.

Mas o que leva estas pessoas a procurarem tais jogos? As respostas são as mesmas que levam as pessoas a continuarem no jogo ideológico da vida: acreditam na sedução das possibilidades que representam os prêmios prometidos aos vencedores, e possuem uma relação platônica com tais possibilidades, tão desejadas quanto mais distantes estiverem. Mesmo no jogo, o que dava a certeza aos jogadores de que receberiam mesmo aquela fortuna? E mesmo aos espectadores do seriado, a ocorrência da premiação dificilmente foi motivo de dúvida na trama. Certezas.

O Squid Game termina a primeira, e ainda a única temporada, contraditoriamente, com o vencedor, o jogador 456, a refutar uma posição de “VIP” no mundo, pois naquele momento possui mais dinheiro do que poderia gastar em toda a sua vida, uma fortuna que lhe garantiria todos os prazeres que nunca teve, mas possui também com ele, conscientemente, a verdade da descoberta das injustiças sociais e da crueldade da realidade, estampada pela dor e culpa das mortes, literais, causadas para que tivesse o seu patrimônio.

Afinal, surge, ali, algo platônico. Pois, nos últimos instantes da temporada, decide abandonar o topo e retornar[8] ao jogo, ou melhor, à caverna, tal qual aquele que retorna com a missão autoimposta de provocar o saber nos que nunca viram o sol e a verdade última das coisas.

A trama, desde o início, vai se afunilando para que o duelo final, entre o protagonista e o jogador 218, o executivo neoliberal e amigo de infância, se enfrentassem tal como se “enfrentariam” a ética do dever[9] e a ética utilitarista[10], se tivessem um embate mortal entre elas, algures. Sai vitorioso o representante da ética do dever, dos imperativos categóricos kantianos, mas penalizado e sem vida verdadeira, sem alma nem conteúdo: já é algo não-humano, dessubstancializado, pois é um ser que não busca o gozo que o prêmio lhe permite ter. O vencedor[11] fica irreconhecível como humano ao “negar-se à fruição”, por mais de um ano, a vegetar asceticamente em um mundo repleto de prazeres, agora, realmente possíveis a ele.

É um jogo, e apenas ficção, mas reflete simbolicamente (e cirurgicamente precisa) o que é a estrutura do jogo da vida, pois o grande prêmio, o “topo” do mundo, é algo inconcebível pelas probabilidades, ainda que sempre exista a possibilidade. Assim, o que há como prêmio, para o vencedor é apenas uma possibilidade, e nada além disso. A verdadeira questão racional, todavia, não está nesta ilusória possibilidade, mas sim na ínfima probabilidade[12], esquecida, ignorada ou mesmo escondida propositalmente, visto que é isto mesmo, ínfima, quase impossível de se perceber como existente. Nem tudo o que é possível é provável. O que está em causa já agora, e tão necessária, é a reformulação das perguntas que precisam ser refeitas.

(2 – Eis o jogo da vida…)

 

Parte II | O Véu da Ignorância

Pressupor um véu da ignorância, creio, foi não apenas necessário, mas sim a única[13] possibilidade disponível a Rawls. Mas, tal impossibilidade se deve, pois, há, no humano, um componente que não é possível ser suprimido: a sua humanidade. E esta humanidade incorpora, dentre tantos, a inveja, o desejo pela falta, pela diferença que há na relação com o outro, seja este próximo ou distante, vizinho ou celebridade, rico ou pobre. O véu da ignorância tentou resolver isso, ingenuamente, mas, ao tentar resolver, resultou, para aquele que veste o véu, um “observador neutro” que é tudo, menos humano. Uma “unidade básica de deliberação e responsabilidade” sem considerar o componente irracional e desejante que todos nós, enquanto humanos, carregamos connosco.

Esta humanidade é justamente o que nos deixa preso ao jogo, imantados às possibilidades. É a inveja alheia que leva às necessidades de proteção da nossa propriedade individual, por medo das ilimitadas possibilidades em aberto. É a nossa inveja que dá existência de possibilidades perigosas, quando das oportunidades que se apresentam, e que leva os outros a se protegerem de nós. O Estado surge para prover esta proteção, contratualmente, mas não eficientemente. O conceito de justiça é o instrumento conceptualizado para permitir a melhor forma de manutenção da ordem social, dos relacionamentos e da máxima proteção entre todos.

Afinal, existiria a necessidade da Justiça, instrumentalizada pelas suas instituições autônomas, e o Estado, sem que existisse antes a inveja humana? Mas, não só. Para além do aspeto negativo, existiria também o progresso, e a sociedade como a conhecemos, tecnologicamente desenvolvida, sem que a mesma inveja fosse a mola propulsora das ações e dos progressos? Rawls tira a humanidade do observador neutro, e crê, sob o véu da ingenuidade, que este observador neutro e “imparcial” carrega consigo algo real, apenas pela sua considerada capacidade racional, isenta de paixões e nada tendenciosa, portanto, por não conhecer sua posição futura. Mas esta posição futura sempre será a projeção realizada do desejo pelo topo, pelo gozo, oras! A posição futura sempre será, necessariamente, a realização da possibilidade.

O que é, afinal, a dita racionalidade humana, se isolada das “afeções” emocionais? O que resta de humanidade? E, como perceber o impacto desta humanidade desejante, presente em todos os humanos, como elo de conexão ao sistema de crenças e desejos compartilhados, que sincretizam as normas formais e informais da organização social, do sistema vigente, e que podemos chamar de ideologia, em lato sensu, doravante.

O humano carrega consigo crenças e desejos, vontades e instâncias racionais e irracionais de deliberação e ação. Possui a capacidade da linguagem e da estruturação do pensamento, da mente, conforme certas regras e ordenações. Se crenças e desejos são mais fortes (e geralmente são, conceitualmente), então há um maior pendão para ações irracionais – as determinadas, condicionadas, viciosas ou habituais, meramente emocionais e imprevisíveis. A inveja, por exemplo, habita as crenças das possibilidades destes desejos não realizados, quando conjugadas, compostas e mescladas por fatores que alimentam e retroalimentam a mente.

O ser humano é um ser de necessidades, desejos, invejas e insaciedades. Para o “bem” e para o “mal”. Não há fragmentação nem dissociação possível desta complexidade, sem o risco de resultar algo que não seja mais um sujeito, mas sim um objeto, resultante do sujeito castrado e reificado em um sistema, e que não mais atua por suas próprias capacidades autônomas e racionais, mas sim como mero objeto de atuação operacional, um autômato dotado de desejos.

(3 – Eis o jogo da vida…)

 

Parte III | A aderência ideológica no Jogo da Vida

No Squid Game, quando os jogadores percebem que o preço da eliminação é a morte, literalmente, desistem de continuar. Mas, ao saberem da possibilidade dos ganhos multimilionários, se dividem, e o voto de desempate, proposital, é do falso jogador (e o “dono” do jogo), que está infiltrado. Depois de saírem do jogo e perceberem que o mundo “real” é igualmente cruel e injusto, mais de 90% decide retomar o jogo. E é mesmo assim, pois a promessa é tentadora, visto a capacidade desejante que todos temos, em grau maior ou menor.

E a decisão por continuar no jogo não só é levada a cabo, mas também ferrenhamente defendida por todos que voltaram ao jogo. Buscam vencer a qualquer custo: “se para sobreviver significa ter que matar o próximo, que seja, pois serão menos competidores”. A banalidade do mal em sua mais sincera expressão, a seguir as regras e sugestões dadas pelos poderes superiores e seus pares. Desobediência civil nunca foi uma opção, pois afastaria a todos do prêmio desejado.

O sistema idealizado é político, corrupto[14], tem também brechas e falhas. Mas todos os esforços e intervenções[15] são unicamente para manter o jogo com máxima verossimilhança. É preciso.

(4 – Eis o jogo da vida…)

 

Parte IV | Conclusões

Quando defendo que o sistema do jogo é político, a partir dos conceitos defendidos por Arendt, defendo que a “ativação” do espaço[16] entre os jogadores é provocada, sem restrições, pelos organizadores, que representam o Estado, ou o governo, ou a justiça. Tal dedução vem de colocarem a todos a dividirem o mesmo território e a se organizarem livremente em equipes. A ordem de uma formação organizacional política pode estar invertida, mas há espaço para todas as manifestações individuais, desde que sempre estejam a jogar (que é o “nosso” equivalente a “produzir”, na modernidade capitalista – de estar produtivamente inserido[17] na sociedade).

O que impede, ali, a possibilidade da organização política? Há a plena e total liberdade de expressão, destacada por Arendt como a prática e contemporânea[18] liberdade. Nenhum tipo de censura é imposto. Podem, inclusive, votar para “derrubar” o sistema (parar o jogo) e serem totalmente livres, que, para Arendt, deve ser a direção substancial da verdadeira ação política. Há “muita” democracia no jogo. Contudo, não existe, como dito, intenção à desobediência civil.

A questão principal, que espero ter demonstrado a contento, é mesmo sobre a necessidade de suspeição dos sistemas ideológicos que deixa a todos aderentes ao sistema vigente, inclusive da Ética enquanto conivente ideológica. É para esta ideologia, tanto racional quanto irracional, mas nunca a-racional, tal como o humano, que as novas questões se fazem necessárias surgir.

O véu da ignorância não é uma alternativa, todavia, pela inviabilidade de buscar abordar racionalmente[19] algo irracional, por vezes. Até mesmo o próprio ato de se colocar o véu é baseado na aceitação verdadeira e onipresente desta irracionalidade. Até mesmo o dito véu seria objeto de se escolher, se tangível, de facto, em meio ao nosso universo essencialmente consumista, sobre diferentes marcas[20] e cores. Como seria, afinal, esta primeira escolha, pré-véu? Faltarão, sempre, elementos ocultos nesta equação ideológica. Ocultos, mas nunca ausentes: eis o que se está a buscar, afinal. Eis aí, então, um novo jogo a ser jogado e contra a verdadeira inimiga: a ignorância sobre a ideologia. O primeiro passo é trazê-la à luz. Confrontá-la talvez não seja possível, ainda, pois primeiro será preciso dar fim à nossa ingenuidade. É preciso reconhecer este poder oculto que nos domina, capaz de se fazer invisível e manipulador.

(Fontes – Eis o jogo da vida…)

 

Bibliografia

Arendt, Hannah. O que é política? Tradução de Reinaldo Guarany. 3ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. ISBN 85-286-0640-6.

Miguens, S. (2003). Identidade Pessoal e Posição Original Rawlsiana. Revista Portuguesa de Filosofia, 59(1), 139–170. http://www.jstor.org/stable/40337884

Popper, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos; tradução de Milton Amado. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, ed. da Universidade de São Paulo, 1974.

Rawls, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ISBN 85-336-0681-8.

(Notas de rodapé – Eis o jogo da vida…)

 

Notas


[1] Os bens primários listados em Uma Teoria da Justiça são: as liberdades básicas de pensamento, de consciência, etc, a liberdade de movimentos e de escolha de ocupação num fundo de oportunidades diversas, poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade, rendimento e riqueza e as bases sociais do respeito próprio (o sentido que cada pessoa tem do seu próprio valor e a convicção de que a sua conceção de bem merece ser posta em prática, juntamente com a confiança de levar a cabo as intenções). (Miguens, 2003, Página 141)

[2] É importante perceber que mesmo no maior símbolo emblemático neoliberal que conhecemos, os Estados Unidos da América (EUA), o número de presos, desabrigados e desempregados estão em seus níveis mais elevados, tanto quanto os números que expressam a quantidade de milionários e bilionários, também a crescer exponencialmente. A diferença, portanto, se amplifica. Os conceitos de justiça, existentes, tornam-se inexequíveis. Todavia, ainda são os EUA o grande sonho de quase todos os imigrantes (e o destino) – legais ou ilegais – e/ou refugiados, por representarem a possibilidade, eis o poder sedutor do self made man inserido no american way of life! Lá, está o paradigma do grande “jogo”! (Os EUA são os campeões mundiais dos destinos migratórios, com mais de 50MM de imigrantes. Fonte: website da ONU, acedido em 12 de dezembro de 2021).

[3] Em 2022, 274 milhões de pessoas precisarão de assistência humanitária e proteção. Esse número é um aumento significativo, em relação às 235 milhões de pessoas há um ano, que já era o mais alto de sempre. Fonte: Global Humanitarian Overview, da ONU, no website, acedido à 12 de dezembro de 2021 em https://gho.unocha.org/.

[4] É bem prudente perceber que isto vale tanto para indivíduos como para nações, em que as barreiras econômicas e limites sociais levam às discrepâncias em que as diferenças se amplificam a cada ano.

[5] Na conceção contemporânea e vulgar do cinismo, de algo vazio de ideais, com doses cavalares de causticidade, ironia e lamentação. Diferente do Cinismo, como escola filosófica, que considero válido, extremamente atual e ainda necessário como antídoto aos tempos sombrios atuais, tais como os percebo.

[6] E, a bem da verdade, ninguém pergunta por isto, pois estão todos convictos de que ganharão. Uma espécie de obsessão que direciona a visão para um único objetivo, e todo o resto é desnecessário. Possuem certezas inabaláveis. Afinal, o jogo é aceito como obrigatório, sem opção de deixá-lo sem ter graves consequências.

[7] Há as reproduções públicas, como as do Korean Cultural Center / Squid Game Event, dos Emirados Árabes, mas também na Itália, UK e nos Estados Unidos, lúdicos e sem nenhum tipo de castigo violento aos eliminados. E há as reproduções clandestinas, como as de Londres, onde as eliminações podem originar em sessões de surras ou aceitar ser baleado no rosto, com armas de pressão, ao invés da morte verdadeira que ocorre na ficção (e assim esperamos, mas com alguma abertura às dúvidas). O mais impactante, são as crianças a brincarem, talvez por se identificarem com os jogos infantis da obra, e em tentativa de recriarem os jogos nas escolas e vizinhanças, e causarem comoção entre pais, educadores e no público em geral, com algum grau de bom senso que ainda lhe resta. O jogo, por ser aderente tal qual a vida, encontrou um eco surpreendente.

[8] Não seria ilusório pensar que ele, se novamente inserido na condição de jogador, seria um alvo fácil daqueles que se recusarão a largar o jogo e as possibilidades, e então ele teria (ou terá) um duplo desafio – de manter-se vivo (ou seja, vencer, novamente, o jogo) enquanto busca resistir à fúria e aos ataques dos seus “semelhantes” que desejam manterem-se nas ilusões das possibilidades, ainda que remotas. Tal qual uma vida dentro das corporações capitalistas, organizações políticas, educativas e demais instituições que conhecemos. Não há hipótese de “fuga”.

[9] A ética do dever é evidenciada, como predominante, no protagonista por diversas vezes em que, para ele, as pessoas são um fim, e não um meio. É claramente possível percebê-lo como humano, nos aspetos que nos identificam sensorialmente, emocionalmente, ao nível empático, mesmo em meio ao seu evidente fracasso como indivíduo social, responsável e autônomo: um pai fracassado, sem relacionamento afetivo nem sexual, desempregado, a morar com a mãe, sem objetivos na vida e nenhuma qualificação profissional, desatualizado em relação à moda, marginalizado, a viver de pequenos trabalhos temporários e apostas, quando possíveis, a dever para agiotas e, por isso, ser implacavelmente perseguidos por eles. Mas, ainda, a acreditar que tem possibilidades, ao ponto de prometer coisas para a filha, alheio à própria realidade, sem perceber que nem mesmo a criança acredita nele e nas possibilidades que julga ter consigo.

[10] A ética utilitarista se mostra no antagonista ao procurar e utilizar insiders informations, sem compartilhar com sua “equipe”, para seu exclusivo proveito e o “bom” andamento do jogo. Tudo isso possível pelas brechas e interpretações dúbias que sempre existem nas regras, tal quando “ganha” uma disputa por uso de uma batota contra um amigo seu, que o tinha como mestre e estava em vantagem no jogo, mas que ainda assim se permitiu ajudá-lo, como esperança para que todos vivessem, e que teve a morte deste como resultado da eliminação, assim como todos os outros “perdedores”. Por suas próprias mãos, além do amigo, indiretamente morto por outro, ele “elimina” um jogador, no quinto jogo, e a amiga do protagonista e também jogadora, antes do último jogo, sem hesitações ou remorsos. Ao final, argumenta ao protagonista que todos morreram não eram inocentes, e que estavam a jogar sob as mesmas regras e condições, mas que estavam lá pelos seus esforços pessoais e trabalho intenso, dentro da mais pura lógica meritocrática.

[11] Antes de ser declarado vencedor, tentou desistir do jogo e do prêmio já dado com certo, “apenas” para manter a vida do amigo utilitarista, mas este se suicida, à sua frente, para que ele garanta o prêmio e que nada tenha sido em vão. É o utilitarismo do amigo suicida em sua mais intensa e possível expressão: ser “útil” a qualquer custo, no mais amplo e transgressor consequencialismo, pois pede que o amigo vencedor ajude sua mãe, lesada por ele próprio, o filho utilitarista que usa até a própria mãe como meio, e não como fim. Portanto, o representante da ética do dever sai vitorioso, mas apenas pelos atos utilitaristas do antagonista, que, pela primeira vez, assume que a mãe, ao menos, precisa agora ser um meio. Uma refinada dupla ironia, inquietante.

[12] Num dado momento, isto é exposto, em um dos jogos, por um jogador, que é matemático, e calcula sua probabilidade de sucesso, e chega à conclusão de que tinha apenas uma chance em 32.768 de sair dali vivo. Não saiu. Mesmo assim, continuou, pois era demasiado tarde para recuar e desistir e demasiado tentador para saber se conseguiria vencer – pois ainda tinha aquela única chance de vitória, dentre tantas outras de derrota. E assim foram seus últimos segundos de vida, a acreditar na possibilidade absoluta, onírica, sem levar muito a sério a quase impossibilidade probabilística, real. A racionalidade humana, todavia, sempre fica abaixo das camadas emotivas, fantasias e onirismos da mente que está absorta, a “jogar” e a fantasiar com o prêmio.

[13] Pois, pressupor outra forma como, por exemplo, um véu da sabedoria ou do máximo conhecimento, ou o que o valha, lhe seria impossível. E, esta impossibilidade, não se deve à capacidade de conceituar tal véu da onisciência, ou onipresença, já concebido e defendido, hasta la muerte, por aqueles que teorizam sobre a existência de Deus, por exemplo. Seria até bem mais fácil e menos combatido do que o conceito do véu da ignorância, daria menos “trabalho” ao Rawls assumir uma visão divina acerca da justiça ao invés de defender-se dos ataques que sofreu, merecidamente, diga-se.

[14] Um policial se infiltra a procurar o irmão desaparecido, corpos são desviados para venderem os órgãos clandestinamente, tráfico de informações é realizado para dar vantagens a um jogador, o médico que realiza a extração dos órgãos dos mortos. Tudo o que bem conhecemos de nossa sociedade atual lá está, fidedignamente.

[15] Quando o líder executivo (o governo) descobre haver um intruso, acaba por castigar com a morte os que fazem o tráfico de órgãos, mas não pela iniciativa “comercial” deles em traficar órgãos, mas sim por transgredirem a igualdade em que todos acreditam existir, pois eles davam informações privilegiadas ao médico, sobre os próximos jogos. Óbvio, pois sem a crença na igualdade como válida e vigente, os participantes deixariam de acreditar também nas possibilidades: na “justiça”, na vitória e na premiação. O “sistema” ruiria. Acreditar nas possibilidades é o que mantém os jogadores aderentes ao sistema, e isso se chama ideologia: o sistema de crenças e desejos compartilhados, nutridos e defendidos, conscientemente e inconscientemente, por todos.

[16] “A política surge no Intra espaço e se estabelece como relação.” (Arendt, 2002, Página 8)

[17] No Squid Game, o ser não inserido, o falhado, é eliminado de forma imediata, literalmente: é “morto”. O passivo deste é devolvido como ativo aos demais: como riqueza potencial. Eis uma reflexão aos 274 milhões que se enquadram nas estatísticas do que consideramos de crise humanitária, que representam, friamente, isto: passivo.

[18] “Ao mesmo tempo, a mais importante atividade para o ser-livre desloca-se do agir para o falar, da ação livre para a palavra livre.” (Arendt, 2002, Página 21)

[19] “Dessa forma, o racionalismo não pode oferecer uma interpretação adequada nem mesmo da atividade aparentemente racional do cientista. Mas, como o campo científico é excecionalmente favorável a uma interpretação racionalista, devemos esperar que o racionalismo fracasse ainda mais espetacularmente ao tentar lidar com outros campos de atividade humana.” (Popper, 1974, Página 368)

[20] “Tudo” vira produto e fetiche de desejo no sistema capitalista. Assim, talvez a Gucci produza um modelo irresistível de “véu da sofisticada ignorância”, por algumas dezenas de milhares de Euros, frente às opções básicas e de gostos duvidosos da Primark. Ou, ainda, existam versões antialérgicas ou contrariedades sobre o véu, dos movimentos negacionistas à igualdade proposta, na era da máxima racionalidade humana: o terceiro milênio

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