Teias Estruturais
Ação-Mente-Linguagem Ética Filosóficos

O problema do mal, em Agostinho de Hipona

Abstract

Buscarei interpretar a questão do mal nas ações humanas, através do livre arbítrio, levando a uma análise sobre a dualidade de deus (bem e mal) ou a separação antagônica entre Bem e Mal e suas implicações nas ações humanas a partir do livre arbítrio concedido. Eis, então, o problema do mal, em Agostinho de Hipona.

O objetivo deste trabalho é analisar as origens do mal, sob a óptica de Agostinho de Hipona (Santo Agostinho), e suas correlações com as ações humanas de livre arbítrio.

Através da evolução do conceito do mal, a partir da Mitologia e da Filosofia Clássica, evidencio que este conceito foi profundamente estabelecido por Santo Agostinho, a partir de uma nova Filosofia na qual a ação humana é vista como ente destacado, ainda que subordinada a um poder maior, de deus.

 

Introdução

O problema sobre o mal pode, em princípio, parecer demasiado teórico ou irrelevante, mas definitivamente não é. Muitas das construções das ações e relações humanas são realizadas com base em conceitos dualistas entre o bem e o mal.

Implicações[1] diretas e indiretas nas relações humanas e sociais são umas das mais importantes aplicações morais e éticas práticas que levam à necessidade do entendimento do problema do mal, em especial no que tange às ações humanas voluntárias e conscientes, chamadas de ações de livre arbítrio. Pois definir o grau de domínio das ações e conceituá-las como boas ou más – que fazem o bem ou o mal, em resultados – é definir e qualificar a responsabilidade do agente. Eis que o entendimento do que seja bem ou mal é um importante conceito necessário para o progresso humano e de suas relações com o todo, desde uma aplicação imanente até ao aspecto transcendente.

A Filosofia Medieval possibilitou um grande avanço à questão e ocupa destaque em abordar este problema sob uma rigorosa óptica racional, ainda que sob a tutela da moral cristã, mas que não invalida ou deprecia os desenvolvimentos filosóficos de tão importante e profundo tema, ainda que não se possa afirmar que o problema esteja cabalmente resolvido até os dias atuais.

Assim, pretendo mostrar as considerações gerais sobre o mal, em especial sobre o que tange a ação humana, a partir do grande impulsionador deste problema, que foi Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho, em sua obra-prima chamada O Livre Arbítrio.

 

Sobre o mal

Afinal, o que é o mal? Esta foi justamente a primeira questão levantada por Santo Agostinho[2].

Mas o mal não é um conceito claramente definido ou imutável. O mal, assim como o bem, assume diferentes dimensões, das relativas às absolutas, e sempre se transforma com o progresso da humanidade, a evoluir com os novos conhecimentos científicos e novas construções sociais[3].

Por considerar relevante a necessidade do entendimento sobre este conceito à conclusão deste trabalho, investirei em buscar as reminiscências desta questão, ainda na Filosofia Clássica e até antes, na Mitologia Grega.

O conceito de mal surgiu como registro ainda antes das fases mitológicas da humanidade, em diferentes civilizações ancestrais[4]. No Panteão Grego, a partir de uma leitura sobre a caixa dada a Pandora por Zeus, que apresenta o mal como forma de punição ao roubo do fogo divino do conhecimento para os homens. A abertura da caixa libertou todas as paixões e dores da alma, que trazem o sofrimento, ou seja, o mal. O importante neste mito é que Zeus foi o responsável por inserir o mal entre os humanos, como fator corretivo ou punitivo, e o mal era formado pelos maus sentimentos, sensações e vícios, sem ser personificado, pois não era um κακό daemon[5]. E, assim, o mal se fez presente na humanidade, como forma de punição divina frente ao que futuramente foi chamado de pecado, na Era Cristã. A punição dada por Zeus foi irreversível, a partir de um certo tipo de pecado original, onde toda a humanidade foi punida com o mal, ainda que com o consolo da esperança.

E, no mundo filosófico grego, o mal (kakón[6]) assume diferentes fases, a iniciar por Sócrates, motivado pela necessidade de uma resposta aos sofistas sobre as considerações sobre o que é considerado bem e mal, a estabelecer limites para a busca de uma verdade absoluta, e também em busca de respostas para o desenvolvimento de sua Ética. Contudo, Sócrates assume que a virtude (arete) e o bem (agathon) são as únicas existências, e que o mal não seria possível, exceto apenas pela ausência do conhecimento, o que significa a equiparação do mal com a ignorância, com o agir sem saber das coisas, por não ter compromisso com a verdade. Agir ou não agir pela ignorância pode ser considerado o início sobre a questão da ação humana através da Filosofia.

Platão continuou o desenvolvimento do conceito socrático, através da separação entre conhecimento (episteme) e opinião (doxa), a considerar que a alma poderia provocar tanto o bem como o mal, através de sua capacidade volitiva,  e assim a introduzir filosoficamente a liberdade de ação inerente ao homem, a introduzir também o conceito dual entre bem e mal, em duas essências distintas, que coexistem. O mal, aqui, foi genuinamente instanciado às capacidades racionais e volitivas humanas. Pela primeira vez, a ação humana é exposta destacadamente como uma capacidade de produzir resultados pelos quais ela é a responsável direta. Algo como causa e efeito que a alma traz consigo em potencial ao encarnar em um corpo.

A própria coexistência entre o bem e o mal, evocada por Platão, tem origem antes mesmo de Sócrates, através da Doutrina dos Opostos, de Heráclito de Éfeso, que defende que nada existe sem haver seu oposto, não em um ciclo eterno opositivo, mas sim em um equilíbrio estabelecido entre tais opostos, ou seja, a mesma coexistência considerada por Platão.

A seguir, Aristóteles, todavia, refuta Platão e correlaciona o mal diretamente com os excessos, com a desmesura, em conformidade com o domínio das paixões da alma, das emoções descontroladas. O mal, ainda que abordado de forma diferente em Aristóteles, continua a ser igualmente o resultado de uma ação humana que, ao decidir pelos excessos, pelo desequilíbrio, não se realiza no bem, e não é virtuosa, e faz com o mal aconteça.

Para os epicuristas, o mal é também o resultado da ação humana, e reside fora do prazer, ou seja, na dor, no sofrer, seja pelo corpo, seja pelo espírito. E o que leva ao prazer? É a busca do homem, também pela ação, prioritariamente. Mais uma vez a ação humana é colocada como a responsável pelo bem e mal.

Com os estoicos, a relevância do mal se fez mais presente, e ampliada, ecoando a versão mitológica já citada, de que o mal se fundamenta como punição divina aos homens, com caráter educativo, propositado. Ainda que o mal seja, para os estoicos, uma suposta ferramenta punitiva, só “pune” aqueles que agirem contra o que seja considerado o bem, supostamente. Ainda assim, a ação humana possui correlação com o recebimento do mal, mesmo que indiretamente.

Estes argumentos que correlacionam as ações humanas com o mal já existiam antes de Santo Agostinho, mas não foram as únicas abordagens. Há uma outra abordagem para o mal, que transcende à ação e à natureza humanas, e apresenta o mal como substância isolada do homem, como um ente, de formas tanto teísta quanto metafísica.

Por um lado, Aristóteles identifica esta possibilidade latente na matéria (a matéria resiste à forma[7]). Platão e os pitagóricos recorrem, mais uma vez, à dualidade dos opostos, com a possibilidade de o indeterminado (apeiron) ser um princípio coparticipativo do ser, quando reinterpretado além das definições originais de Anaximandro (o apeiron como o não-limitado). Se há o determinado – o bem – haveria de haver o indeterminado – ou o mal. O que é matéria sensível, então, passa a uma condição maléfica, das paixões, das limitações, da não realização da alma humana, ou seja, a matéria passa a correlacionar-se com o mal.

Plotino não desenvolve tal fundamento dualista. Para ele, o bem emana do Uno. O Uno não pode ser definido pelo bem, nem por nenhuma qualidade humana, pois o conceito do Uno é ser e não-ser, além das capacidades humanas para compreendê-lo ou defini-lo. Suas processões, sucessivas, degradando-se e excedendo-se a si, levam à matéria, que não se opõe a nada, apenas é, em si, e que também se degrada de inteligível à sensível, e portanto com uma menor “influência” remanescente e regressiva do bem advindo das processões iniciais do Uno. Eis que na matéria mais sensível, degradada, residiria a ausência do bem, ou o mal, que se manifesta pela escassez e distanciamento do Uno, como que fosse a escuridão por não conter em si, a luz do Uno. Esta visão de Plotino teve também influência em Santo Agostinho, em relação à Trindade.

Proclo, contemporâneo a Santo Agostinho e sob intensas influências cristãs, por fim, refuta Plotino nesta questão por entender que a origem do mal é estritamente moral, e não metafísica, retornando à ação humana como a única geradora do mal.

O mal, enfim, e em síntese, como visto, possuía ao menos duas formas de manifestação. As duas possibilidades foram consideradas por Santo Agostinho, na referida questão inicial de sua obra, possivelmente para refutar os postulados maniqueístas deste segundo viés.

O primeiro viés, o mais considerado, o mal assume uma forma passiva, a manifestar-se através das ações humanas, quando tais ações fossem contrárias a determinados conceitos considerados como o bem.

O outro viés, mais próximo do Maniqueísmo, o mal assume uma forma ativa, quando considerado como substância, a atuar e a interferir diretamente nas ações humanas, podendo até ser personificado, a adquirir vida, materializado, volitivamente antagônico ao bem e também sobre-humano, influenciando e prejudicando diretamente o homem em seu meio, a duelar.

 

Santo Agostinho conceitua o mal

A questão original, para Santo Agostinho, é justamente o caminho que leva à origem do mal, em especial no que se refere ao postulado criacionista, que defende que tudo o que há vem de deus. Portanto, se tudo o que há vem de deus, o mal também haveria de ter sido criado por deus. E eis o primeiro grande desafio de Santo Agostinho para definir a resolução deste problema.

A abordagem é iniciada pela inserção do conceito de pecado humano. E o pecado é algo exclusivamente ocasionado pela ação humana, neste caso uma má ação. Tal ação poderá levar o homem ao distanciamento de deus, e ao que pode ser considerado mal. Eis que Santo Agostinho considera que a crença em deus deve ser prioritária, e todo o seu fundamento está nesta crença original nas qualidades divinas do deus Criador, sumamente bom e justo.

Este deus Criador deu a capacidade ao homem de possuir o livre arbítrio. Portanto, se há o mal para o homem, é fruto da própria capacidade de o homem agir, e também receber o castigo pelas más ações que empreende, assim também para colher seus frutos pelas boas ações praticadas. A justiça divina, portanto, é considerada sob o aspecto individual da ação humana. A providência divina nunca poderia ser responsabilizada pelo mal que há.

Se deus cria o homem e o homem “cria” o pecado, que o leva ao mal, então seria errado dizer que deus criou também o mal? Sim, para Santo Agostinho. Pois ele demonstra a diferença conceitual entre gerar e criar. deus gerou tudo o que há, e criou o homem e todas as coisas, mas não é o único criador. Pois a capacidade dada por deus ao homem através da livre ação também permite ao homem criar, a partir da geração de deus. E esta criação humana se faz exclusivamente pela capacidade de exercer o livre arbítrio. O mal vem, então, de toda ação humana que o afasta de deus. E deus o permite existir como fator de correção, educativo, ou castigo, dado aos homens para que possam retornar à verdade de deus.

Santo Agostinho considera que a razão é a mais alta capacidade humana, com importância menor apenas em relação a deus. Portanto, sempre o homem deverá buscar a deus e à razão, em detrimento de suas paixões, do corpo e da alma. A razão, portanto, é o fator que determina se a ação é um ato volitivo, racional, e livre, ou se a ação se dá somente pela baixa vontade, desejos ou mesmo crenças irracionais, animalizadas.

O mal provém, antes mesmo das ações, das paixões interiores da alma. A mente que não é capaz de agir conforme sua intenção cria o mal ou é punida com este. E nem mesmo precisa agir.

Ainda que o homem não realize ação nenhuma, mas tenha em si a má intenção, já é o produtor do mal. O ato, em si, neste momento, passa a ator secundário e oferece o destaque da origem do mal para a mente que possua más intenções, mesmo antes de realizá-las. Na intenção já há a culpa, já há o mal. A intenção, portanto, seria a origem da ação – da boa ação ou do pecado. De fato, poder-se-ia deduzir que a ação humana só é livre se houver a intenção humana em deus, a racionalidade, a fugir de um determinismo do meio frente ao homem, o que leva à discussão acerca do determinismo e do livre arbítrio.

Há uma preocupação nos argumentos de Santo Agostinho de distinguir as leis divinas das Leis civis, estas últimas abaixo das considerações. Tais argumentos de Santo Agostinho colocam que, em determinados casos, é possível que ações oriundas de certas paixões possam ser desculpadas pelas leis civis, mas não pelas Leis divinas. E vice-versa. As possibilidades dadas pelas leis civis não devem ser consideradas como deveres. Por exemplo: ter o direito de matar um agressor em determinadas circunstâncias previstas na lei não deve significar que se deva fazê-lo, todavia. O mal estaria em matar motivado pelas paixões, pelas más intenções, mas não pela motivação de defender a si ou a outrem. O bem seria fazer o melhor, sob a ética divina, além da moral legislativa, ainda que resultasse na morte de alguém. Isto reforça a ideia da “ação em deus”.

Santo Agostinho também defende uma série de objeções que ele mesmo apresenta e conclui que o mal produzido pelo homem não afeta a harmonia que deus dá ao mundo, assim como também o mal que é visto em situações anômalas, como o sofrimento em crianças inocentes e até mesmo nos animais, mas que possuem aspectos educativos para a humanidade. A ideia de deus é apresentada, reforçada e até mesmo comprovada, através de uma hermenêutica da ação humana.

Uma outra objeção seria sobre o pecado original, que poderia levar às questões mais profundas como por exemplo a preexistência da alma, suscitada por Platão, mas que Santo Agostinho não aborda ou ataca, que certamente abririam objeções profundas e difíceis à Teologia Cristã.

 

Conclusão

O mal, em si, é algo que surge do íntimo da capacidade humana de criar. Surge através da má intenção, sem a racional volição que direciona e leva somente a deus, no processo da ação, e antes mesmo que esta aconteça. O mal pode ser materializado em uma má ação, mas não é a ação, pois sua origem é metafísica, e que dá ao homem, indiretamente, a capacidade co-criativa semelhante a deus, mas que ainda é imperfeita. O mal vem das paixões da alma.

O mal como castigo educativo revela um caminho em que o homem está inserido a evoluir. A ação humana, portanto, recebe em Santo Agostinho um inédito e exclusivo destaque. O homem, antes sujeito, passa também a ser objeto de estudo a partir de suas ações, portanto.

 

Fontes bibliográficas – O problema do mal, em Agostinho de Hipona

Santo Agostinho / O Livre-Arbítrio; Tradução, organização, introdução e notas de Nair de Assis Oliveira; Revisão de Honório Dalbosco. São Paulo: Editora Paulus, 1995.

Eriúgena, Juan Escoto / División de la Naturaleza (Periphyseon); Tradução de Francisco José Fortuny. Barcelona: Ediciones Orbis, 1984.

Gand, Henrique de / Sobre a Metafísica do Ser no Tempo; Textos Filosóficos; Lisboa: Edições 70, 1996.

Kirk, Raven & Schofield / Os Filósofos Pré-Socráticos; Geofrey Kirk, J.E. Raven e Malcom Schofield. Tradução de C.A. Louro Fonseca. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

Kenny, Anthony / Nova História da Filosofia Ocidental – Volumes 1 e 2 – Filosofia Antiga e Filosofia Medieval; Lisboa: Gradiva, 2010.

Leroi-Gourhan, André / As Religiões da Pré-História; Série Perspectivas do Homem; Lisboa: Edições 70, 1983.

Peters, F.E. / Termos Filosóficos Gregos – Um Léxico Histórico; Tradução de Beatriz Rodrigues Barbosa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1977.

 

Notas – O problema do mal, em Agostinho de Hipona


[1] Faço referência às legislações civis e criminais, como exemplo, que resultam somente ao atribuir responsabilidades pelos atos praticados para que a justiça possa ser aplicada, como nos crimes.

[2] Santo Agostinho, pg. 25. Livro I, Questão 01. Em sua primeira resposta a Evódio, que questiona se a autoria do mal cabe à deus, Santo Agostinho propõe antes conceituar o que seja o mal.

[3] Podemos perceber que diferentes esferas podem influenciar nas definições do “mal”, desde as religiosas e/ou políticas, por exemplo, assim como questões educacionais, culturais, econômicas e sociais, dentre tantas possibilidades.

[4] Leroi-Gourhan, André, pg. 26. Ainda no Paleolítico, o simbolismo praticado pelos primeiros humanos mostra a preocupação contra o mal (ameaças) como um fato religioso, pois não é explicável pelas necessidades práticas de sobrevivência material frente às demandas diárias, como que em uma negociação metafísica com a vida.

[5] Criatura do mal, ou demônio do mal, que supostamente personifica o mal e influencia as ações humanas.

[6] Kirk, Raven & Schofield, pg. 116

[7] Aristóteles / De generatione animalium, IV, 770.

 

O problema do mal, em Agostinho de Hipona: conteúdo protegido.

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