Singularidade
Filosóficos

O uno e a processão do múltiplo, em Plotino

Abstract: O uno e a processão do múltiplo, em Plotino

A partir do conceito apresentado do uno, segundo Plotino, e de sua emanação, pretendo realizar uma interpretação crítica de sua Cosmologia à luz de uma análise prioritariamente teleológica. Eis o artigo: O uno e a processão do múltiplo, em Plotino.

De suas hipóstases inteligíveis compostas pelo uno, pela inteligência e pela alma, disforme e imaterial, até aquilo que percebemos como tendo forma e matéria, ou seja, o mundo sensível, há um conceito extremamente fértil e de inúmeras possibilidades acerca de um possível propósito para tudo o que há e conhecemos, situando – ao final – o homem, nesta jornada composta de espaço e tempo.

Ao final, ainda que não conclusivamente, pretendo mostrar quais seriam as possibilidades abertas a partir dos conceitos de Plotino e apresentar ao menos uma destas possibilidades, em termos conceituais, transcendendo do “como” ao “porquê”.

 

Introdução: O uno e a processão do múltiplo, em Plotino

O modelo apresentado por Plotino de uno como a transcendência de todo o ser, do conhecimento e de definições que podemos engendrar para defini-lo plenamente é a motivação que me leva a fazer o caminho inverso, buscando no retorno ao uno a compreensão de forma reversa, obviamente esbarrando nos limites do ser, a dificuldade em alcançar o próprio uno, mas necessária ao seu melhor nível de conhecimento.

Todavia, tais dificuldades, muito além das incapacidades plenas de abstração, devem servir para iniciar a investigação bem além do “como” se instancia a processão considerada, dada sua impossibilidade, e sim buscar uma visão crítica e teleológica sobre o “porquê” do uno, ou de suas instâncias de processão. Eis o exato ponto em que a Filosofia de Plotino se diferencia de seus antecessores clássicos, pela essência profundamente teleológica, se não na defesa explicita desta teleologia, mas propriamente na abertura para que ela se desenvolva.

Por que, afinal, há todo este conjunto de componentes interligados, contemplativos e em movimento constante – exceto o uno – em busca de algo, ou motivado por algo, sem considerar um propósito ou destino? Se este destino é a própria origem, ou seja, o uno, por qual razão haver tal movimento, se o próprio contém a imobilidade? Se há uma inteligência e uma causa, quais motivos seriam suficientes para iniciar uma investigação sobre tais questões teleológicas?

Um trabalho consistente seria possível a partir do que Plotino apresenta, visto que seus conceitos são a consolidação de um pensamento livre, não cristão, portanto que não personaliza um deus criador, idealizado pela imaginação humana e influenciador direto de questões mundanas. Tal deus cristão, afinal, deriva não só da imaginação humana como também da influência do pensamento clássico, atingindo seu clímax através no Neoplatonismo. Plotino conceitua o homem como algo não criado, não planejado, não vislumbrado – ou seja, o homem é fruto de algo que resulta do uno, contém o uno, mas não é sua vontade, pois não há vontade no uno. O homem seria fruto das ideias intelectivas, da multiplicidade que o intelecto possui, e que o afasta do próprio uno quando objetiva alcança-lo. Não havendo vontade no uno, há esta vontade ou mesmo o desejo em sua multiplicidade? E daí, nesta multiplicidade, haveria uma sede para um ente criador, que rege e interfere, que possui necessidades e desejos? O intelecto seria a sede do “deus criado à imagem e semelhança do homem”? São questões válidas que poderão surgir e se mostram interessantes fontes de investigação e discussão filosóficas sobre Plotino.

Eis que tal processo criativo divino poderá existir em uma instância da processão do uno – e é este o ponto em que podemos alcançar, buscando esgotar as possibilidades de uma teleologia de tudo o que há, buscando afinal o propósito maior da Filosofia, seja este qual for, independente da escola e da posição filosófica considerada.

Eis, portanto, a proposta deste trabalho, que é além de demonstrar o conhecimento sobre o uno e sua processão, com fins de avaliação, também oferecer elementos pensados de forma filosófica sobre uma abordagem das possibilidades teleológicas do próprio uno e/ou da sua processão, e também sobre a alma particular humana.

 

A “mecânica” das hipóstases

O Uno, na limitada tentativa de defini-lo positivamente, seria algo como o pensamento do pensamento – o que é indefinível pela limitação linguística, de abstração e de conceituação restritas que a mente humana poderia conceber. Seria possível dizer o que não é, e pela negação buscar uma aproximação de algo que não seja nem potência nem ato, a partir de Aristóteles – ou seja, a definição negativa do uno.

Ao contrário de Aristóteles, Plotino considera que algo material que seja potência produtiva já seria em si um ato, deixando a matéria como simples ato sem potência, esta última exclusiva das hipóstases, pois são pura potência, eternas, e não simples ato causal, produtivo ou mesmo gestores da matéria. Assim, o que é material só contém ato, e não mais potência. Se a inteligência, que é eterna, não possui ato, o que ela causa é tomar o ato de algo que já esteja em ato. Assim, para Plotino, a madeira não possui a potência da cadeira, mas algo pode se apropriar do ato do ser madeira e passar ao ato da cadeira, a partir das ideias.

A partir deste pensamento, o uno teria em si a potência absoluta, sem ato, e excedendo a si mesmo de forma indeterminada, sem limite tangível, que não pode ser concebido. Pela sua emanação, ou processão, conseguimos iniciar uma compreensão mais acurada da inteligência cósmica, imaterial, inconcebível se isolada do uno, eterna como o uno e também o que vem a seguir, em semelhantes condições, definida como a alma do mundo, em sequência à inteligência. O intelecto contém em si a potência e o ato transcendente, apropriado de outro ser que já esteja em ato. A natureza, portanto, material e transcendente às hipóstases, contem em si todo o ato e é também o ato das hipóstases, pela inteligência manifesta na alma do mundo e nas almas particulares, animando o ato do ser material, como se existissem caminhos opostos que se atraíssem, ou mesmo se chocassem, quer seja pura potência, quer seja puro ato, gerando os movimentos de processão e contemplação.

Plotino usa da metáfora da luz para explicar as hipóstases – mesmo sendo a luz imaterial não a exime de ter uma origem, uma fonte. Eis que esta fonte, mesmo desconhecida, não limita a percepção da luz que ela emite, revelando tanto mais o que mais está próximo desta fonte, e diminuindo seu efeito a distâncias mais elevadas.

Uma interpretação mais simplória poderia ser de que o uno seria, então, a fonte desta luz – o intelecto, seria a própria luz, que permite a visão de tudo pela multiplicidade que já se encerra em si, a atração pela contemplação em altas instâncias aquém do uno, e que leva a ele, e que também é ele. A alma do mundo, potência iluminada pelo intelecto múltiplo, representa para o desejo aristotélico da matéria o belo, o perfeito, é o ser revelado à natureza, portanto também ao homem pela contemplação primeira – além da natureza, da matéria e da escuridão, ou do mal.

Esta extensão do uno é revelada como o não ser, mas sendo. A perfeita harmonia não entre opostos, mas a origem e o destino de tudo o que há, que dele provém e a ele retorna, como se tudo fosse alheio a ele, mas que não o é. A força do uno não se divide, mas é desejada e também causa o movimento do ser pelo desejo, pela contemplação, até atingir o uno.

Com as definições de hipóstases estabelecidas, Plotino estabelece uma relação com a natureza material e as almas particulares, que animas os corpos, como por exemplo o homem, dotado da capacidade de introspecção em busca do uno que há em si, quando sua alma adquire a capacidade de examinar a alma do mundo, e com isto perceber o belo, o perfeito, alcançando pelo pensamento a luz do conhecimento, que levará ao uno, ao êxtase e à plenitude do ser. Tal compreensão, todavia, difere dos conceitos gnósticos que consideravam as hipóstases como meios intermediários, pois não há o sentido em Plotino de espaço nem tempo, sendo este contato possível de forma imediata, sem uma jornada que situe o homem em uma determinada posição espacial ou temporal, e o uno em outra diferente.

 

A alma particular do homem

Para Plotino, o fim da alma é o próprio contato com a luz, ou seja, com a inteligência alcançada pelo pensamento humano. E este contato é possível pela própria visão que esta origem luminosa proporciona. Ou seja, para ter contato com a luz é preciso a conexão ao uno. Para tal, portanto, é preciso algo um tanto místico como citado por Plotino que considera necessário para alcançar esta iluminação direta, que consiste em retirar dos olhos, em sentido lato dos sentidos, tudo o que a projeta e que a faz oculta do nosso conhecimento: «a visão se confunde com o objeto visível; o objeto visível é tal como a visão e a visão tal como o seu objeto» (Enéada V, 3, 8). Ou seja, é preciso entender que a forma seja algo que lá não estará, nem o tempo, nem o espaço, aferindo aí a capacidade de abstração do pensamento humano em perceber a plenitude do uno, podendo ser alcançado apenas em pensamento e um contato direto além do que se mostra pelos sentidos, mas sim pela conexão superior.

Se o homem está situado em um espaço e tempo, em uma matéria animada por sua alma particular, que decai e que pretende ascender ao uno, pelo apreço do belo, pelo pensamento até alcançar o êxtase, pelo desejo ou contemplação, revertendo por si só a processão do uno, sendo um ato que deseja ser potência não criadora, mas puramente emanadora. Eis então o caminho que nos diz Plotino sobre a teleologia da alma particular humana, que busca transcender a sua essência e pensamento para além da essência e do pensamento, atingindo um estado de uno, que não necessita de nada além de si próprio. A retirada daquilo que não permite enxergar é chamado de purificação. Purificar, portanto, é desintegrar a multiplicidade contida no homem. É direcionar a alma à unicidade, tornando os círculos anímicos concêntricos.

 

A Teleologia da Alma Particular do Homem

Conclusão: O uno e a processão do múltiplo, em Plotino.

A emanação do uno penetra no intelecto, que a fragmenta em ideias (Eneadas VI, 7,15), sendo o intelecto múltiplo pela diversidade de ideias que possui e pensamentos que envolvem desde si até a matéria. O pensamento humano, em similaridade, então, possui a multiplicidade e busca ascender ao belo e ao intelecto. Ao contrário do uno, que sendo perfeito nada procura, tanto o intelecto procura o uno quanto o pensamento procura o intelecto e, a partir deste, busca a transcendência ao uno. O intelecto, na própria busca do uno, tornando-se múltipla, afasta-se dele, pois não há multiplicidade no uno, e este contraste poderia representar um movimento cíclico, alternado entre ascenso e descenso, ou contemplação e emanação. Estes movimentos geram a vida, a multiplicidade, e assim é preciso deixar claro que a totalidade da multiplicidade não é uno, pois o uno não é a somatória de partes múltiplas, estando além disto, sem estar e também sendo além, sem sê-lo.

E qual seria o propósito da alma, afinal? Enquanto ser pensante, poder-se-ia dizer que possui a mesma “mecânica” do intelecto? Enquanto alma particular, poder-se-ia dizer que possui a mesma mecânica da alma do mundo?

Se o intelecto ao pensar o uno se afasta dele, tornando-se múltiplo e dispersando-se em ideias, gerando a alma, que gera a natureza e tudo o que conhecemos sensivelmente, então busco desenvolver a hipótese de existir a impossibilidade de alcançar o uno pela contemplação do múltiplo, partindo-se da premissa da transcendência à própria processão, em busca de um estado no qual a perfeição da alma humana, sendo possível, se equipararia ao uno, fundindo-se ao mesmo, em estado de êxtase pleno ou equivalente.

Eis, provavelmente, a razão pela qual Plotino por vezes invoca o homem ao desnudamento de si mesmo, e em outros que sugere o mergulho em si, na busca socrática pelo autoconhecimento de si como caminho para deus. A purificação plotiniana está, a rigor, em ambos os conceitos pois desnudar-se é manter somente a essência, retirando as “roupas” que seriam algo fora da essência anímica, permitindo que o mergulho em si seja livre e profundo.

Eis que surge um idealismo pela capacidade única de o homem de alcançar este estado de êxtase em si mesmo, pois não havendo nem espaço nem tempo entre si e o uno, não haveria outra busca a se engendrar além da capacidade de racionalização, domínio de seus males materiais e a elevação de sua alma a um estado natural, remetendo às origens de sua existência, se for possível tal precisão.

Eis que o uno, então, nunca esteve tão “próximo” do homem, acessível em seu próprio interior. Se assim fosse – e não significa que não o seja, por qual razão o próprio intelecto não o acessaria? Não teria desvendado este “atalho” e evitado sua multiplicidade?

Afinal, o caminho dual ao uno se mostra como um dos pontos mais profundos da alma humana. Eis a importância de sua teleologia, então.

 

Bibliografia – O uno e a processão do múltiplo, em Plotino

Plotinus. Enneads. Harvard University Press. Translation by A. H. Armstong. E-book.

Brun, Jean. O Neoplatonismo. Edições 70, ISBN 9724407802 

Narbonne. Jean-Marc. A metafísica de Plotino. Paulus Editora. E-book, 2015. ISBN: 9788534940986

Gerson, Lloyd P. (org). The Cambridge Companion to Plotinus. Cambridge University Press, 1996. ISBN 0521470935.

 

O uno e a processão do múltiplo, em Plotino: conteúdo protegido.

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