Nazistas em Marcha
Estética Filosóficos

Uma visão da estética nazista como vontade e representação

INTRODUÇÃO

Pureza. Uma palavra que assume, ainda que inacreditavelmente, a posição central e aspiracional de toda a estética nazista e foi a grande responsável pela manifestação da ideologia concebida por Adolph Hitler e enriquecida por outros, capaz de controlar as massas e levá-las ao ponto de o mal tornar-se banal ao produzir, ou destruir, o que podemos considerar a mais impactante guerra já travada na história da humanidade, em seus mais tristes trechos, até então. Eis, então: uma visão da estética nazista como vontade e representação.

Eis que me surgiu a perspectiva de analisar, sob a óptica de Arthur Schopenhauer, em especial sua fundamentação sobre vontade e representação, o que seria esta estética, ou filosofia da arte, vista sob a óptica nazista, e daqueles que as conceberam, a nutriram, a aplicaram e a seguiram. Como foram capazes de, através da arte, consolidarem seus nefastos intentos?

A propaganda foi o meio de difusão da estética nazista às massas – um facto indiscutível. O cinema foi largamente usado e permitiu atingir as massas nas projeções realizadas para impactar ao máximo possível mesmo aqueles que estavam distantes das exposições das grandes cidades. Um dos mais impactantes filmes produzidos chamou-se justamente “O Triunfo da Vontade”[1] e que muitos especialistas consideram ser o marco do impressionismo alemão. Neste filme, a estética[2] é exaltada, a pureza, a ordem, a unidade e a superioridade atribuídas a tais instâncias. A música clássica é parte importantíssima no vídeo, que tomou o lugar da narração.

 

Estética nazista - 1

Um tema que é demais abrangente, mas que limitarei ao máximo ao entendimento sob a análise estética, em especial ao que se refere à força do ente denominado vontade e a representação, individual e coletiva, dos produtos da ideologia nazista.

Uma visão da estética nazista como vontade e representação

O “NASCIMENTO” DA IDEOLOGIA NAZISTA

Quais seriam, então, as primeiras influências estéticas tomadas como válidas e atualmente conhecidas na mente de Hitler? Eis ume questão que se respondida não definirá totalmente o que veremos, mas ao menos possibilitará uma linha coerente sobre o desenvolvimento do “produto estético” do Terceiro Heich, ainda que não signifique arte, em si.

A resposta primeira está na música, em especial na de Richard Wagner. Hitler era um fã incondicional de Wagner e teve uma espécie de insight[3] sobre a ideologia nazista ao assistir à ópera Rienzi, na qual está em destaque a pureza do protagonista, Rienzi, em duelos de interesses com a nobreza, com o clero, a família e com o povo. Uma trama repleta de traições e que, ao final, o protagonista sucumbe, traído, por permitir em boa parte a nobreza dos sentimentos cristãos afluírem, como o perdão e a compaixão – algo que poderia ser, em Schopenhauer, a própria ferramenta de supressão da vontade.

O impacto desta obra em Hitler foi profundo ao ponto de ter em sua posse o guião original da obra, além de usar dos modelos de estandartes para a produção dos próprios símbolos nazistas, como se tentasse reviver iconograficamente a obra, ao imprimir ao Estado a grandeza do Império Romano e assumir para si o papel de Rienzi, com os mesmos ideais, mas sem os erros da compaixão que o fez sucumbir.

Ainda no primeiro ato da Ópera, o Cardeal incentiva Rienzi às ações políticas a que estava propenso realizar pela grandeza da Itália, mas receoso dos efeitos colaterais compassivos, e declara a Rienzi que os fins justificam os meios, a exemplo de Maquiavel. Perfeito para Hitler, perfeito para o nazismo, que já “nasce” através de uma contemplação artística.

Hitler, assim como muitos dos altos membros do Partido Nazista, era um artista. O fato de o considerarem frustrado, assim como os demais membros, não o desqualifica para o entendimento do que uma obra de arte pode produzir e expressar. E assim este alto escalão foi um excessivo colecionador, por diferentes e questionáveis formas de aquisição, das obras de arte durante o conflito. Produziram, mesmo antes da guerra, diversas exposições, com uma característica muito singular de abordar a arte, ainda que para as elites.

A característica principal já era a configuração da estética nazista em nome da pureza. Havia uma separação em dois tipos bem distinto de arte.

O primeiro grupo era composto por produções dos artistas nazistas que espelhassem os ideais de pureza e superioridade, acompanhados dos clássicos e das obras renascentistas, exibidos com distinção nas galerias produzidas como arquitetura que também estava inserida nesta estética.

E aqui vale uma breve observação, pois Schopenhauer não estava mais vivo para perceber a arquitetura nazista como a principal manifestação artística da vontade, pelo contrário, para ele a arquitetura estava nas últimas posições possíveis de representação artística.

A arquitetura nazista, concebida pessoalmente por Hitler na posição central criativa, não só resgatava a arquitetura clássica, mas também dava uma dimensão extrema a ela, que representava sua equiparação como o principal meio de representação da vontade. A nova Berlim, se finalizada, seria a pura representação desta vontade distorcida do nazismo.

Toda esta concepção nazista foi manifestada para alterar a realidade das massas. A estética, e estrutura do poder, a propaganda e todas as ações eram pensadas para que esta realidade fosse suficiente para permitir o que afinal ocorreu, em nome da pureza, da dita superioridade e da enaltação de um líder que pretendia unir as nações arianas, subjugar e minimizar os povos “inferiores” e atingir, afinal, uma idealização de paraíso como império.

O segundo grupo era composto pelas artes consideradas degeneradas, que concentravam a modernidade “inferior”, disforme e distorcida, pela classificação nazista. Esta arte, todavia, não era destruída, escondida ou proibida. Era exposta mesmo que em ambientes sombrios, apertados, com quadros pendurados de forma desalinhadas, assimétricas.

Esta experiência da exposição intencional da “feiura”[4], da desordem e inferioridade era proposital. Podemos pensar como uma experiência inversa do sublime, a partir de Kant, em que há dois momentos bem distintos, mesmo que sem o recurso da natureza retratada como implacável e assustadora. A superioridade era o próprio ariano, que assumia o papel da natureza, e assim deveria ser grandioso e temido, não o contrário. O primeiro momento é o desprazer da visualização das obras – pois não era raro que uma obra de arte fosse acompanhada de uma figura humana com alguma enfermidade, uma espécie de oposição ao belo, de propositada repulsão promovida no momento de contemplação. O segundo momento, do prazer, seguia-se ao reafirmar o expectador como o belo, na estética nazista. Isto dava ao observador a repulsa ao degenerado e simultaneamente a sensação de superioridade, ao assumir ser a perfeição e o escolhido para dominar a todos os outros.

Ainda que as artes puras não fossem perceptíveis às massas, pela ignorância da temática. O próprio contraste com as “artes degeneradas” levariam, pela comparação simplista da comparação, ao enaltecimento do puro e ao menosprezo pelo impuro. Tudo era calculado.

A repulsa criada no ariano se justificaria como necessária para as políticas de extermínio que seriam aplicadas para o próprio povo alemão que apresentavam enfermidades, como também para o holocausto. Eis o direcionamento da vontade para a representação.

Nesta filosofia da arte, seria impossível não verificar traços da influência de Hegel. O idealismo nazista, em uma visualização hegeliana, seria a figura dada à estética como representação da ideologia como uma verdade absoluta incontestável, todavia alcançável pelo direcionamento do Estado Alemão, que alcançaria uma grandeza nunca antes alcançável, dado que tudo é mostrado com um certo ar de misticismo superior, como que uma determinação do destino reservado aos arianos.

A melhor questão acerca do idealismo de Hegel é a intervenção na questão da subjetividade. Não há, todavia, na estética nazista um espaço para a subjetividade individual que levaria o sujeito, através do objeto, a algum tipo de verdade autopercebida. Não seria interessante aos propósitos totalitaristas. Mas a subjetividade existe sempre, não pode ser extirpada do sujeito, não pode deixar de existir. Percebe-se, então, a massificação da ideologia por outros caminhos, que leva as massas a um determinado estado alterado de consciência em que a subjetividade passa a ser coletiva, massificada e igualmente alterada artificialmente. Muda-se o sujeito até o ponto em que sua subjetividade seja a desejada como útil ao poder.

E este ponto é o sistema de poder. E assim percebe-se a conformidade com o que Hannah Arendt escreveu[5], que a veracidade dos fatos perde a relevância frente à coerência do sistema em que está o sujeito inserido. A tal realidade alternativa que foi representada.

Estes foram, até aqui, um mínimo apanhado sobre uma profunda, extensa e complexa rede de manifestações estéticas que reuni para que pudesse situar a compreensão acerca da análise que farei, principalmente a partir de Schopenhauer, mas não restrita a este.

 

 Uma visão da estética nazista como vontade e representação

 

ALGUMAS DAS PRINCIPAIS OBRAS CONTEMPLADAS POR HITLER

Até 2008, o Museu de História alemã havia catalogado 4371 obras de arte pertencentes a Hitler. Estas acima, todavia, são apenas uma pequena amostra, e consideradas dentre as preferidas por ele, visto que ocupavam um lugar de destaque e em referências.

O que poderia haver de comum a estas obras? De forma a não especular indefinidamente sobre as diversas possibilidades e abordagens críticas, o fato que mais chama a atenção é o sentimento de posse que os dois primeiros quadros suscitaram nos artistas que os produziram. Tanto Vermeer quanto Böcklin não venderam suas obras. De uma paixão tamanha que tiveram, mesmo Vermeer endividado não vendeu o que considerou ser sua maior obra. Resistiu possuí-la mesmo sem condições de fazê-lo.

Böcklin manteve o original consigo e reproduziu ele mesmo, mais quatro cópias a quem via o original e insistia para comprá-lo. Pintava uma nova, até mesmo a customizar as encomendas, e que a última reprodução foi parar na coleção pessoal de Adolph Hitler.

Em Hitler, percebo um sentido de poder em possuir para si tais obras. Um poder que afinal o levava, além da qualidade técnica e artística das obras, a um simbolismo próprio sobre suas capacidades de deter grandes preciosidades artísticas. Afinal, o poder, os desejos e as crenças acabam por ser manifestações particulares da vontade. Vontade que busca sempre por uma representação, quando não suprimida. Representação que deixa o ser sempre em estado de sofrimento, tal qual percebido em tais obras, seja pelo sofrimento de reviver experiências da vida, seja pela incapacidade de se manifestar artisticamente ou mesmo pelo inconsciente a perceber que nunca existira a tal superioridade ariana, nem mesmo a predestinação de se estar onde estava. Sem desejar a adentrar no escopo psicológico de Hitler, mas a interface com sua predileção estética é irresistível.

Já a terceira obra acima destacada, produzida por um artista nazista, dentre tantos que eram enviados aos campos de batalha para retratarem as cenas que lá se encontravam, remete à dor da guerra, à realidade cruel do amargor da derrota, visto que foi exatamente isto que ocorreu em Estalingrado, após fracassada campanha contra o exército russo, derrotável, mas não para o rigoroso inverno a que estiveram expostos, fatal para a empreitada. Hitler havia, afinal, perdido. Quantas horas a olhar para este quadro não o remeteu ao sublime kantiano, ou ao idealismo da subjetividade da verdade e/ou realidade hegeliana? Tanto transcendência quanto subjetividade. Difícil dizer, mas afinal, o novo Riezi de Wagner estava novamente a sucumbir às próprias fraquezas em si, às determinações da própria vontade, incapaz de controlá-las, agora protagonizado por Hitler.

 

VONTADE E REPRESENTAÇÃO NA ESTÉTICA NAZISTA

A estética nazista proporcionou não só uma mescla dos grandes princípios filosóficos sobre a arte, mas também uma ruptura aos fundamentos que Schopenhauer estabeleceu para a estética – conseguiu ressignificar e manipular a vontade e a representação do sujeito, individual e coletivo. Através desta estética, a vontade “alheia” foi dominada, alterada e direcionada para uma representação de realidade alternativa, delirante e ufanista da sociedade em que estavam inseridos.

Uma das críticas de Schopenhauer a Kant foi justamente acerca da possibilidade de o conhecimento acontecer somente no campo fenomênico, a diferir o conhecimento abstrato do intuitivo, que este atribuiu às instâncias do tempo, espaço e causalidade as únicas possíveis representações cognoscíveis, também as dos seres que nascem e perecem em uma infinidade de vezes, em uma sucessão infinita. Para Schopenhauer, afinal, as ideias são estritamente intuitivas, e não abstratas. A vontade serve como este ente metafísico, alheia às representações, mas não muito distante das mesmas.

A vontade, ainda que metafísica, não é divina. Não há deus. E, portanto, o nazismo assumiu esta dimensão metafísica como ele mesmo a significar a divindade que levaria a raça superior ao seu verdadeiro papel na história, ou ao seu paraíso, em deleite eterno e longe das ameaças que precisariam ser esterilizadas. A pureza era a chave para este novo mundo.

A vontade que era, afinal, a coisa em si em Schopenhauer, passa a ser produto necessário à dominação totalitarista. A vontade passa a ser alimentada com as ilusões, representações.

As formas de quaisquer tipos de ascetismo não sobreviveriam aos ideários nazistas. Pelo contrário, significaria sinal de fraqueza, de inferioridade, a exemplo das minorias atacadas. A santificação suposta ocorreria no estado final da supremacia racial a dominar uma nova realidade de mundo, instanciada em um utopia, ou como paraíso para o qual Hitler estava a guiar todos as arianos, que estavam crentes nos preceitos de uma nova religião revelada, sentiam-se parte de um movimento espiritual de altíssimo significado espiritual.

A vontade era, todavia, instigada. E, quando instigada, levava a uma exponencial irracionalidade. Os prazeres eram oferecidos. A estética era apresentada de forma a saciar momentaneamente os sentidos. Os corpos perfeitos, o belo como padrão humano, a superioridade humana dos arianos. Tudo a conspirar para a consolidação das crenças, a amplificação dos desejos e a necessidade de diferenciação, pelo poder cultivado racial frente às minorias, aos “diferentes”.

Assim, assegurava-se sempre que nunca haveria de acontecer nenhum tipo de contemplação desinteressada. Todas seriam de profundo interesse, a suscitar desejos, ratificação de crenças e consolidação superior do ego. A arte desvirtuada como instrumento de aprisionamento, longe de sua essência.

Para Schopenhauer, a arte independe da verdade e representa as ideias captadas pela pura contemplação das representações materializadas, dos fenômenos. Do particular para o universal, a arte expande seus limites e leva às paragens que a estética nazista, aqui apresentada, direcionava. Assim, a razão não estava submetida à contemplação. A irracionalidade poderia ser provocada, pela própria arte, previamente direcionada às massas pelos ideários nazistas através do desvirtuamento da vontade.

 

CONCLUSÃO

A Análise aqui realizada demonstra a funcionalidade apresentada por Schopenhauer do mundo através da vontade e da representação. Pela arte foi possível dominar uma nação ao ponto de provocar a irracionalidade, o que faz perceber que tanto a vontade como a representação são, de fato, possíveis de explicar filosoficamente não só a estética, mas também outras vertentes filosóficas.

Agradeço à oportunidade deste conhecimento. E lamento profundamente os efeitos de tão nefasta política, ainda hoje a apresentar reflexos que nem deveriam existir.

Escrito à 06 de junho de 2020

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah.  Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das letras, 1989.

FREITAS, Ana Paula Nazaré de. Imagens do nazismo: ensaio sobre uma política cultural totalitária. Passagens: Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação – UFC, Fortaleza (CE), v. 2, n. 1, dez. 2011.

PEREIRA, W. P. (2008). O império das imagens de Hitler: o projeto de expansão internacional do modelo de cinema nazifascista na Europa e na América Latina (1933-1955).

ROSEFIELD, Jayne. Wagner’s influence on Hitler – and Hitler’s on Wagner, 1998. Academic Journal Article. History Review.

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação, 1819. Rés Formalpress, 2005.

 

 

REFERÊNCIAS AUDIOVISUAIS: FILMES E DOCUMENTÁRIOS – Uma visão da estética nazista como vontade e representação

WAGNER, Richard. Rienzi, der letzte der Tribunen, 1840. Ópera. Gravada em Wiesbaden, 1982. (YouTube)

RIEFENSTAHL, Leni. O Triunfo da Vontade, 1935. Filme.

COHEN, Peter. Undergångens arkite (Arquitetura da Destruição), 1989. Documentário. Suécia. (YouTube)

 

 

Notas – Uma visão da estética nazista como vontade e representação


[1] Filme “promocional” da ideologia nazista, de Leni Riefenstahl, 1935.

[2]As imagens que o filme traz remontam à ideia de ação, movimento e disciplina, recheado de representações plásticas monumentais e espetaculares como os desfiles das tropas nazistas e de discursos inflamados que vendiam a certeza da vitória, a força de um regime inabalável. O filme mostra uma Alemanha unida e unânime exaltando o nacional-socialismo, em torno de seu líder, reverenciado e filmado com técnicas que o faziam parecer brilhante, iluminado, alto e onipotente.” (Freitas, p.9)

[3] “Hitler alegou que sua cosmovisão era derivada de Wagner. Sua reação juvenil a Rienzi o levou a exclamar 30 anos depois: “Tudo começou naquela hora”.” (ROSEFIELD)

[4] A feiura referida é exclusivamente sob a óptica nazista, obviamente. Assim como os retratos de enfermos, que não representam atualmente a ideia de qualquer inferioridade, aos olhos da compreensão isentos da dominação ideológica racial.

[5]Não acreditam em nada visível, nem na realidade de sua própria existência; não confiam em seus olhos e ouvidos, mas apenas em sua imaginação, que pode ser seduzida por qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente em si. O que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam fatos inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte.” (Arendt, p. 401

 

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